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É o tempo fino que constrói as cidades

Opinião

As cidades são sobretudo feitas de tempo. É o tempo que as constrói através das pessoas que o habitam, lhe dão consequência e o materializam. O tempo tem vida e pensamento próprio. Por isso, a construção dos dias são produto do modo dominante de pensar, logo de ser e estar na contemporaneidade. Habitar cada tempo, projetando-o para o futuro, é essencial para o progresso das sociedades. Não é, porém, tarefa fácil, porque os anacronismos pululam por entre as políticas e a práticas que tendem a sobreviver apenas em meios de estagnação ou falsa e ilusória evolução.

Não há passado sem a formação de identidades, mesmo assumindo que estas se constituem como polissemias em curso. Vão desde as individuais até às grupais e neste contexto, as que se formam nos meios urbanos, pela capacidade cultural das cidades se moverem em circuitos e redes de interconexão, transmitem padrões de vida que tendem a internacionalizar-se. Já antes assim o era mesmo sem o fenómeno da globalização que vivemos.

No quadro das relações entre cidades à escala mundial, estas não deixam de possuir idiossincrasias próprias uma vez que a tendência urbana global, que enforma um pensamento padronizado, sempre tem interpretações locais. É então, desta forma, que o perigo da uniformização do nosso modo de ser e estar, em parte se dilui, no modo como vamos receber, refletir e executar, esse pensamento. Um exemplo muito interessante foi como Aveiro interpretou, por exemplo, a arquitetura “Arte Nova”, com Silva Rocha e outros que marcaram o traço destes edifícios.

Para que o novo, não dissolva, apague ou destrua o antigo, as cidades não são só construção, mas também preservação: dos lugares, que transmitem as sociabilidades fundamentais para perceber as nossas relações do presente; dos sítios, que criam uma imagem de conjunto onde as suas histórias só podiam ocorrer naquele cenário; dos edifícios, que preservam memórias e modos de vida; das ruas, que guardam os segredos mais íntimos dos seus habitantes; dos cafés, que criavam atmosferas de criação e revolução com as suas tertúlias indomáveis; dos cinemas, e o seu poder transformador onde se percebia que a vida podia ser algo de bem diferente; das livrarias, onde acedíamos às histórias secretas dos personagens dos livros.

Quando uma cidade não preserva a sua memória cai no labirinto do seu futuro perdido. Deixam de existir mecanismos cognitivos presentes que executem, em permanência, a transferência de tempos, períodos ou épocas. Estas transferências são exigentes pois a vida da cidade tem sempre um passado, um presente e um futuro, mas não necessariamente por esta ordem. Tal como o caos será apenas uma ordem por decifrar, os quotidianos urbanos estão em permanente recomposição, num modo que muitas vezes parecem desordenados. Assim, para que a vida dos habitantes não esteja sujeita a permanentes sobressaltos, é fundamental existirem pontos de amarração entre os diversos tempos da vida urbana.

Vivemos permanentemente com os olhos no futuro. Trabalhamos uma vida com a aspiração de um dia termos a liberdade para fazermos o que quisermos do nosso tempo, dos nossos quotidianos. Sabemos que somos prisioneiros políticos dos dias que temos. Que eles derivaram de decisões políticas, ainda que possam ter sido estabelecidas por ordens que nunca foram eleitas. O maior exemplo disso é o funcionamento do intitulado “mercado” que ilude, a partir dos seus absolutos desequilíbrios, uma teoria que conforta os mais incautos e cria ilusões aos mais crédulos.

A memória não é algo inerte, muito menos desmaterializada. Ela existe presa a olhares, em frases soltas, em objetos, em ruas, nas cidades e nos seus edifícios. Os edifícios têm uma história para contar aos mais novos que, assim, compreenderão melhor as narrativas de seus pais e avós e com elas crescerão. Esta é a diferença de riqueza pessoal entre ter presente a história, através dos seus edifícios e ruas, ou apenas imaginá-los, algures, entre prédios monótonos e iguais.

Em Aveiro, por exemplo, a arquitetura Arte Nova tem os seus ícones que representavam uma classe social que se expressava, mais do que tardiamente em relação à Europa, pela sua interpretação local deste desenho que, nesta cidade, é idiossincrático. Por isso, todos os pormenores arquitetónicos contam para observar essa genuína diferença.

O estilo tradicional português “Casa Portuguesa” é absolutamente fundamental para que se entenda a base da influência de Raul Lino e deste conceito que tanto serviu o regime político anterior. Esta expressão arquitetónica é marcada por uma ruralidade aqui transferida para o meio urbano, que era visível na Casa Aleluia, em plena Avenida Lourenço Peixinho, em Aveiro, onde os beirais e “pombinha”, o alpendre no cimo da escada, floreiras e painéis de azulejos são as suas marcas incontornáveis e que, mais do que povoarem o país, se inscreveram num modo de explicar as razões de algumas paisagens urbanas.

O modernismo veio introduzir roturas com o pensamento dominante e, em parte com as prerrogativas do regime de então produzir novas linguagens arquitetónicas com inclusão de elementos como o ferro, o vidro, mas particularmente, o betão armado. A sua horizontalidade, a importância da entrada de luz natural, a ausência de pormenores decorativos, o desenho simples, as janelas sem caixilhos e as escadarias como elemento expressivo do interior teve, na casa da Avenida Araújo e Silva ou no edifício central da VitaSal, uma das expressões máximas, na cidade de Aveiro.

Recordar o tempo de cada manifestação arquitetónica das cidades, as forças que se impuseram ou que destes estilos derivaram. O modo como cada tempo aceitou e interpretou, rejeitou ou conformou estas expressões são relevantíssimos para as identidades locais e para o modo como o habitante e o visitante decifra e compreende a cidade.

Os edifícios e o modo como resolveram a sua inserção nas envolventes urbanas, a sua localização e expressão no contexto alargado da cidade é muito mais do que um livro, uma narrativa ou um cenário, é conseguir viver o vivido, é entender que toda a mudança não pode ser feita à custa das memórias coletivas e geracionais.

O percurso pelas suas expressões, na espuma dos dias, a diferença que só reparamos quando, por acaso, esperamos o autocarro e percebemos que os edifícios nos olham, que a sua presença é proporcional às eventuais histórias que se passaram entre aquelas paredes, enriquecem-nos desmesuradamente. Uma história de cidade que não é melhor, nem pior do que outras, mas tem uma enorme diferença: é a nossa.

Quando alguém se julga na capacidade ou no direito de destruir a história de uma cidade por apagão de partes da sua existência, julga-se Deus entre a humanidade, ou talvez o inverso. Se a humanidade reage, pelo menos a que reage, significará, para os poderes fátuos, argumentos que provem de hereges da contemporaneidade, contra um desenvolvimentismo que na realidade é anacrónico e extrativista.

Quando se encontram fundamentos para o apagamento da história em pareceres longínquos das especificidades dos locais ou para queimar livros de história, que são os edifícios de uma cidade, estamos perante a inquisição contemporânea que, por inaceitável, sobrevive na dissimulação da ignorância.

Quando se criam novos Gulag que, na impossibilidade de transferir populações de uma cidade para a outra, lhes retira o seu próprio chão da história para que, ainda que sem saírem dos seus lugares, fiquem desenraizados e desmemoriados, algo estagnou na evolução natural da democracia e do respeito coletivo que a liberdade nos impõe.

É verdade que há limitação de mandatos autárquicos, mas tantas vezes os mecanismos que outrora criavam a possibilidade de os fazer perdurar durante 16, 20 ou 24 dinossáurios anos, são exatamente os mesmos dos três mandatos: o controlo das benesses, o medo da sua perda, a divisão para reinar e, por fim, quando tal parece não resultar, a velhíssima violência tornando os diferentes como inimigos a executar nos pelourinhos do insulto.

As cidades precisam de uma nova governança reconhecendo que a democracia, sendo um processo de aprofundamento constante, exige a recriação, em permanência, com adição de novos modelos. Escutar e ponderar todas as opiniões, desde as largamente maioritárias até às minorias, é um dever da democracia. Talvez se houvesse possibilidade de diálogo, muitas cidades não teriam perdido uma parte relevante do seu futuro, transmissível através do respeito pela sua identidade.

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