AveiroMag AveiroMag

Magazine online generalista e de âmbito regional. A Aveiro Mag aposta em conteúdos relacionados com factos e figuras de Aveiro. Feita por, e para, aveirenses, esta é uma revista que está sempre atenta ao pulsar da região!

Aveiro Mag®

Faça parte deste projeto e anuncie aqui!

Pretendemos associar-nos a marcas que se revejam na nossa ambição e pretendam ser melhores, assim como nós. Anuncie connosco.

Como anunciar

Aveiro Mag®

Avenida Dr. Lourenço Peixinho, n.º 49, 1.º Direito, Fracção J.

3800-164 Aveiro

geral@aveiromag.pt
Aveiromag

Viagens na nossa terra: A minha 086 e eu

Roteiro

Lembro-me de há uns anos ter comprado em Aveiro o “melhor bolo de chocolate do mundo”. Claro que estas coisas são impossíveis de avaliar e além do mais está na cara que são truques de marketing para impelir ao consumo. Mas estas autoproclamações têm muitas vezes o efeito pretendido - aquele bolo de chocolate não me escapou, pecador me confesso.

Com as cidades passa-se o mesmo. Quem chegava a Coimbra por autoestrada deparava-se com um grande letreiro que anunciava que nos estava a ser concedido o privilégio de entrar na “capital da saúde”. Sever do Vouga é a capital do mirtilo. Ílhavo a capital do bacalhau. Alvarenga a capital do mundo (juro, vejam o meu próximo texto). Aveiro a Veneza de Portugal. E por aí fora, os exemplos abundam.

Há casos cómicos. Miranda do Corvo assume-se como a capital da chanfana. Mas Vila Nova de Poiares, 20 quilómetros a norte, não se resignou a um papel secundário e levou a ostentação a um outro nível, difícil de bater: é a capital universal da chanfana. E nesta guerra sem quartel pelo título de capital da cabra velha, patenteou a marca junto do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, cortando veleidades ao rival. Embrulha, Miranda do Corvo.

Para os mais bairristas, em alguma coisa a nossa terra há-de ser a melhor do mundo e arredores. Existe no Facebook um grupo chamado “Aveiro, a mais bela das regiões” – depreende-se que do planeta inteiro. É um exemplo, entre muitos. Estes estatutos informais que as terras atribuem a si próprias são uma exaltação de orgulho bairrista – ou então, para os menos românticos, o sinal de uma certa falta de noção.

Vem isto a propósito da Murtosa. A Murtosa intitula-se como “o concelho com a mais alta taxa de utilização da bicicleta em Portugal”. Cada um tem as suas vaidades. Uns vangloriam-se da chanfana, outros da bicicleta. É um caso, ainda assim, diferente. O crachá não terá sido colocado na lapela por mera ostentação nem por simples observação empírica mas, quero acreditar, fruto de algum estudo sobre o assunto.

Verdadeiro ou não, esse estatuto fez-me ir até lá. Durante o período de verão, até ao início do mês de setembro, o município disponibiliza gratuitamente bicicletas no Centro de Educação Ambiental da Ribeira de Pardelhas, no posto de informação da Porta da Ria e no posto de turismo da Torreira. Fora desse período o usufruto das viaturas requer uma requisição por email ou telefone e foi essa diligência que me apressei a realizar. Na resposta a um email foi-me pedido um contacto telefónico e no dia seguinte uma funcionária camarária, em nome da própria vereadora responsável pelo sector, ligou-me para garantir que o pedido fora aceite e que uma bicicleta estaria pronta para mim na Porta do Sol no dia pretendido. Se era uma forma de me fazer sentir importante, conseguiram. Confesso, porém, uma ponta de desilusão por não ter a vereadora à minha espera acompanhada por uma fanfarra a tocar uma marcha de boas-vindas. Fica a ideia.

Este sábado de meados de setembro está convidativo para um passeio de bicicleta. A chuva dos dias anteriores foi substituída por um dia claro e transparente e a temperatura é amena. A partir de Aveiro, dirijo-me de carro até à Porta da Ria, à entrada da Murtosa, logo depois de uma rotunda em cujo interior um letreiro colorido ainda assegura que “vai ficar tudo bem” e outro anuncia o cartaz da Festa do São Paio da Torreira, já terminada. Estaciono e vou indagar pela minha bicicleta no café anexo. Passados os meses de Verão, o posto de informação está encerrado pelo que é o café que está incumbido de fazer estes atendimentos. Bebo um café e sou encaminhado pela hospitaleira empregada para a divisão onde as bicicletas estão guardadas. Posso escolher a que quiser e após uma breve inspeção à frota disponível – constituída por umas 15 viaturas – acabo por selecionar a 086 para minha companheira de viagem. A minha nova parceira tem os pneus cheios de ar e os travões afinados e está limpa. O cesto metálico à dianteira revela-se útil para acomodar a minha mochila. A rapariga do café diz-me que a procura pelas bicicletas “é por fases” – neste dia pareço ser o único interessado.

É meio da manhã e sigo rumo à Murtosa sem rota definida - como na velha canção dos Trovante, parto sem destino nenhum. Na margem direita da estrada – a Avenida do Emigrante – o largo passeio está dividido a meio entre peões e ciclistas, com um belo renque de árvores a acompanhar. A via está muito bem cuidada e o piso é confortável para quem segue a pedalar.

Ocorre-me que à minha chegada à Murtosa a rádio passava “New York New York” e penso no contraste entre a cidade que nunca dorme celebrada pelo velho Frank e a pacata terra onde estou agora – aqui os arranha-céus são de dois andares e, pelo menos hoje, quase não se veem automóveis a circular. Dois carros parados num cruzamento é o mais perto que estou da hora de ponta na Murtosa.

Cedo percebo que a denominação “concelho com a mais alta taxa de utilização da bicicleta em Portugal” parece realmente fazer sentido. Estão duas bicicletas paradas à frente do Talho Pintassilgo e outras cinco mesmo ao lado, deixadas no passeio por clientes de uma pequena mercearia de bairro. Vejo mais duas em frente ao Núcleo da Murtosa do Sporting Clube de Portugal. Veem-se bicicletas para onde quer que se olhe – e se fosse um dia de semana certamente encontraríamos a entrada das escolas cheias destas viaturas.

Decido fazer uma pausa. Entro num café para um pequeno-almoço tardio e sento-me depois num dos bancos da Praça Jaime Afreixo, o principal largo da vila. Por dez minutos contemplo a vida murtoseira a desenrolar-se diante dos meus olhos e conto 17 pessoas a passar nas suas bicicletas - fora aquelas que estão já estacionadas à porta de lojas e serviços. Um pai carrega a filha na cadeirinha traseira, um velho segue numa pasteleira bonita e bem conservada, um jovem adulto cingido num fato de licra pedala curvado na sua bicicleta de corrida. Várias bicicletas dispõem de cestos ou alforges, úteis para o transporte das compras de sábado. Ao mesmo tempo, na praça, dois velhos conversam num banco à sombra de uma árvore e uma mulher descansa por cinco minutos enquanto dois cães, que segura por uma trela, brincam um com o outro. Quem também testemunha o quotidiano destas gentes é o primeiro-ministro António Costa, cuja sorridente fotografia foi afixada no exterior da sede local do PS, no primeiro andar de um edifício do largo – no rés-do-chão cortam-se cabelos na Barbearia Jorge.

Do centro da Murtosa – onde a antiga escola secundária ao abandono parece um monumento erigido à incúria dos poderes públicos - sigo em direção ao Cais do Bico. A distância não é muito longa mas mesmo assim registo que apenas dois carros passam por mim. São bem mais aqueles com quem me cruzo montados nas suas bicicletas, entre eles um homem que segura uma canadiana numa das mãos.

É possível pedalar na Murtosa sem a sensação de perigo. Quase não há trânsito motorizado nas ruas e existem muitas vias dedicadas. Por isso sigo tranquilamente para o Bico, observando à minha esquerda a antiga Pharmacia Leite, agora fechada, e mais à frente uma casa com duas enormes bandeiras no jardim da frente, uma portuguesa e outra dos EUA. Nas habitações há também muitas manifestações de fé e devoção, como estatuetas ou painéis de azulejos com motivos religiosos. Mas reparo também num grande leão de pedra à entrada de uma casa e nos sete anões no relvado de um jardim, com a Branca de Neve atenta a observá-los.

As boas-vindas à zona ribeirinha são dadas por uma oficina automóvel, por um cabeleireiro unissexo low cost e pelo Café O Moliceiro. O Cais do Bico é magnífico, proporcionando aquela que é seguramente uma das mais deslumbrantes vistas para a Ria de Aveiro.

Um grupo de seis ciclistas chega proveniente de um trilho pertencente à Grande Rota da Ria de Aveiro e algumas outras pessoas também pedalam por ali aparentando ter todo o tempo do mundo. A época balnear na praia do Bico estende-se até 18 de setembro e embora o pequeno areal esteja vazio uma nadadora-salvadora está de serviço, vigilante. Junto ao Monumento ao Barco Moliceiro um conjunto de tabuletas umas em cima das outras aponta várias direções, assinalando a vocação da Murtosa para a emigração: Alemanha, Venezuela, Austrália, Paris, Toronto, Madrid, Brasil, Newark, Mineola. Um pouco adiante, várias caravanas estão estacionadas aproveitando as sombras das árvores do parque de merendas. Um casal de caravanistas de meia-idade montou mesa e cadeiras e contempla a vastidão da ria, com os reflexos dourados do sol refletindo no espelho de água.

Sendo um cais, veem-se muitos barcos atracados. Pequenas embarcações de pesca – o Bruno Filipa, o Petinguinha, o Garça, o Marisa Daniela, o Lutadora – baloiçam suavemente com quatro ou cinco moliceiros como vizinhos aquáticos. Detenho-me a olhar para os painéis, sempre divertidos. Num deles o desenho de dois burros é acompanhado pela legenda “qual de nós os três sabe ler?” Noutro, a inscrição “Ó febra, chega-te aqui à brasa” é ilustrada com uma mulher voluptuosa a ser observada por um homem junto a um fogareiro. Noutro ainda, um homem diz “muito gosto eu da nortada” ao ver uma mulher com a saia levantada pelo vento.

Entro no Café O Moliceiro para matar a sede e depois dos consumos na Porta da Ria e no centro da Murtosa começo a sentir-me como um político em campanha numa feira de comes e bebes, parando em cada barraca. Enquanto bebo tenho por companhia um homem que lê o Record ao balcão. A cozinheira prepara uma caldeirada de enguias e uma mulher põe toalhas amarelas nas mesas, ao mesmo tempo que um homem sai de uma carrinha e deixa um grande saco de pão para servir aos clientes do almoço. O telefone toca e a mulher que põe as mesas dá a má notícia: “já tenho a casa cheia”. O edifício ao lado alberga a sede do Clube de Caça e Pesca da Murtosa, onde um cartaz anuncia para Outubro uma montaria ao javali em Parada de Gonta.

Abandono o pequeno restaurante quando se intensifica o bulício do almoço e deixo também o Cais do Bico para trás. Mas a vontade de experimentar a praia faz-me regressar no dia seguinte. A maré está vazia o que torna a tarefa de chegar à água numa pequena aventura. O lodo é traiçoeiro: numas partes é escorregadio e percorrê-lo obriga a um exercício de equilibrismo a cada passo; noutras é de tal forma mole que me afundo quase até meio da perna. Acaba por ser divertido e a temperatura da água, uma vez lá chegado, proporciona um agradável banho de ria antes do regresso ao pequeno areal. Não sem antes cobrir a pele da cara com uma máscara de lama, o que me faz rejuvenescer e fazer voltar a ter a aparência de 20 anos. Neste dia conto dois nadadores-salvadores, em cujas instalações – um contentor instalado à margem da praia – um gato dorme o sono dos justos.

Regressemos a sábado. A bebida fresca no Café Moliceiro serve de balanço para o retorno à vila. No caminho reparo no que em tempos terá sido uma bela e ampla quinta que está agora em ruínas, com exceção da capela da propriedade. Penso para comigo que valeria a pena a recuperação, até pela localização privilegiada. Uma pesquisa faz-me descobrir que se trata da Quinta da Caneira, uma antiga herdade agrícola de 12 hectares à venda por 1,2 milhões de euros. Para os investidores indecisos, há um brinde que parece capaz de derrubar todas as hesitações: “na compra deste imóvel oferecemos uma semana de férias no Algarve, Madeira, Açores ou norte de Portugal”, lê-se no anúncio.

Prossigo a bordo da minha 086 e reparo, num cruzamento, numa placa indicando o Baloiço da Cambeia mas decido seguir em frente, embora o Cais da Cambeia dos Cardosos também seja merecedor de uma visita pelas suas belezas naturais. Ao invés, paro na Igreja Matriz da Murtosa, deixo a bicicleta à porta e entro. Uma mulher acende uma vela e depois ajoelha-se nos degraus junto ao altar. A poucos metros, uma mãe e um filho pequeno parecem rezar sentados no banco corrido da fila da frente. A nave da igreja é simples e bonita e junto a uma das suas portas de acesso foi colocado um placard com as fotografias de vários bispos de Aveiro e informação útil aos fiéis. A um canto foi afixado com pioneses um cartaz da Liga Portuguesa Contra o Cancro com a imagem de Cristiano Ronaldo. Na igreja do centro da vila lá está novamente Cristiano Ronaldo e num parque ao ar livre alguém escreveu nos tijolos de uma churrasqueira comunitária “sou lindo CR7”. Pelos vistos a ubiquidade é um dom que alguns mortais também possuem.

Saio da Igreja Matriz, em cujo interior um papel com o título “dar voz ao silêncio” exibe os contactos da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e já do lado de fora, num muro caiado de branco junto a um ecoponto, alguém escreveu “Cavaco Silva”, talvez há muito tempo – Cristiano Ronaldo não é o único rei da Murtosa.

A minha 086 e eu estamos prestes a terminar o nosso passeio não sem antes nos cruzarmos, numa rua do centro, com uma mulher já de idade avançada a empurrar um carrinho de supermercado com uma criança lá dentro - não sei com que finalidade nem em direção a quê porque segui outro rumo. A mobilidade sustentável também deve ser isto.

Na Murtosa não há grandes centros comerciais nem MacDonalds nem horas de ponta – cada um que decida por si se isso é bom ou mau. Pelo meu olhar de forasteiro é bom. Gosto da pacatez do lugar, do ambiente de aldeia que se respira. Gosto dos espaços públicos bem cuidados, dos edifícios emblemáticos recuperados, da imensidão da ria. Gosto de pedalar pelas suas ruas, de partir à descoberta dos sete anões e do CR7, das igrejas e dos cafés, dos cais e dos jardins.

Parece-me que a Murtosa tem potencial para ser a capital universal da bicicleta – passo pelo cemitério e constato que é o único sítio onde não vi nenhuma. É, diz o município, o concelho mais plano de Portugal, e essa é uma característica que os murtoseiros de todas as idades sabem usar em seu proveito. Se houvesse a Volta à Murtosa em Bicicleta seguramente não haveria nenhum prémio de montanha. Mas, para além disso, existe uma extensa e cuidada rede de corredores para bicicletas, dezenas de estruturas onde as estacionar e uma frota de viaturas municipais disponíveis para empréstimos gratuitos. Além, claro, de uma cultura enraizada.

É com estes pensamentos que dou as últimas pedaladas antes de devolver a minha Órbita 086 à Porta da Ria. O cheiro a estrume faz lembrar que a agricultura continua a ser a principal atividade económica do município, a par com a pesca, num concelho em que mais de 82% do territóriose situa emzona de proteção especial da Ria de Aveiro. As belezas naturais fazem valer a visita, e muito. Não é uma terra de monumentos - é um lugar despretensioso e esse é um dos seus encantos. O que desta vez me levou lá foi pôr a Murtosa à prova quando diz que é onde mais se anda de bicicleta no país. Sem pretensões de estudo académico, a 086 e eu achamos que passou no teste.

Automobilia Publicidade

Apelo a contribuição dos leitores

O artigo que está a ler resulta de um trabalho desenvolvido pela redação da Aveiro Mag. Se puder, contribua para esta aposta no jornalismo regional (a Aveiro Mag mantém os seus conteúdos abertos a todos os leitores). A partir de 1 euro pode fazer toda a diferença.

IBAN: PT50 0033 0000 4555 2395 4290 5

MB Way: 913 851 503

Deixa um comentário

O teu endereço de e-mail não será publicado. Todos os campos são de preenchimento obrigatório.