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O Mundial do Futebol e os escritos de Afonso Cruz

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Não sei como ainda não tinha falado aqui de nenhum livro de um dos meus escritores portugueses preferidos: Afonso Cruz. Além de já ter lido todos os livros que escreveu e estar sempre ansiosa pelas novidades, sou sempre surpreendida porque cada livro consegue ser totalmente diferente do anterior e gosto sempre muito da forma como o Afonso Cruz consegue juntar tantas formas de arte, desde a escrita, à música, passando pela ilustração e realização é, de facto, um autor fantástico. Neste livro que vos trago hoje as ilustrações também são dele e são maravilhosas.

Mas o que mais admiro nos seus livros é a sua capacidade de compreender e analisar o mundo e as pessoas e de brincar com o que é sério (às vezes é mesmo a única forma!) ou de nos fazer pensar sobre questões sérias e complexas, brincando com as mesmas.

Nas últimas semanas fui constatando que, finalmente, alguns de nós fomos acordando indignados com a atribuição da organização do Mundial de Futebol ao Qatar enquanto outros… nem por isso!! Estranho é que, tendo passado quase dez anos desde esta decisão, só agora se façam ouvir as nossas vozes que, ainda assim, revelam a timidez de quem sabe que nada há a fazer contra quem manda e decide.

Não falando aqui no facto – muito triste também – de as regras impostas pelo país no documento“Qatar: Do’s and Dont’s”dificultarem os festejos mais entusiásticos…. festejar sem poder abraçar aqueles que nos são próximos, sem beber ou até comer uma bifana na rua, vai exigir muita criatividade aos adeptos. Boa sorte para vocês porque eu, por cá, conto festejar com tudo isto e fazê-lo sem imposições gastronómicas e outras, sem limitações ao contacto humano e à direção do meu olhar, sem limites horários e de ruído e sem me serem vedados os locais para o fazer, como manda a boa tradição futebolística.

Quero acreditar que a nossa letargia se deveu apenas ao facto de sermos todos adultos, muito preocupados com as mil coisas que esta vida de adultos responsáveis implica e sem tempo e disposição para pensarmos em mais do que no nosso “mundinho.” E foi por andar a pensar nas razões desta nossa atitude que me lembrei de um livro espetacular, que parece ser para crianças mas a maior lição é mesmo para nós, adultos, que crescemos e perdemos o lado bom da infância.

Falo-vos, esta semana, do livro “Como cozinhar uma criança” que se serve de uma conversa entre dois cozinheiros para nos falar sobre a infância e a criatividade, inconformismo e energia das crianças e do que acontece (ou não) para que percam estas características quando se tornam (através do cozinhado a que são submetidas) adultas.

Não se iludam com o título, com as ilustrações, que também são do Afonso Cruz e são belíssimas, e, muito menos, com a dimensão do livro. E acreditem no que vos digo: são poucas páginas para tanto que nos fazem pensar. Demoram pouco tempo a ler e vão ficar muito tempo na nossa cabeça.

Falando-vos então do livro, assistimos à discussão entre dois cozinheiros sobre qual a melhor maneira de fazer um prato com crianças e porque é que elas são “o seu ingrediente preferido”… e, neste aspeto, todos aqueles que já disseram “és tão fofo que me apetece morder essas bochechas” estão de acordo com os cozinheiros e eu, pessoalmente, fui e sou autora deste crime!!!

“Cozinheiro 1 (interrompendo): ...os nossos ingredientes de eleição são as pessoas mais tenrinhas.

Cozinheiro 2 (aproveitando a interrupção): …. recheadinhas de possibilidades, muito melhores do que as pessoas demasiado cozinhadas, essa espécie de seres humanos que matam milhões em guerras e são os únicos que podem brincar com o fogo: os adultos. Demasiado duros.”

“As crianças não devem chegar a adultos, que isso só faz mal, como aliás se pode ler nos jornais. E, se chegarem, é mantê-las alimentadas e sem necessidade de pensar.”

Além dos diálogos dos cozinheiros, as perguntas das crianças deixam-nos também a pensar: “Uma ideia pode ser violenta?” Pergunta estranha esta, uma vez que a ideia ainda não se materializou, mas a verdade é que, em princípio, todas as ações partem de uma ideia e, neste sentido, se a ideia é violenta naturalmente que isso de vai repercutir na realidade.

A ligação que fiz entre o Mundial no Qatar e este livro tem a ver com as duas visões tão distintas dos cozinheiros sobre os adultos. Enquanto um defende que para “cozinhar” crianças basta fazê-las saltar para a panela e “empratá-las” com requinte, e assim temos adultos conformados e perfeitamente aptos a viver tranquilamente adaptados e sem pestanejar. Não sentem, não pensam, não falam, não se revoltam e, por isso, não incomodam! Já o outro cozinheiro, defende que para cozinhar crianças são precisas doses generosas de paciência, atenção, tempo e dedicação, pois as “As pessoas são feitas de tudo, são o cozinhado mais dilatado do mundo, são feitas de tardes a brincar no pomar, de histórias lidas na cama, dos sonhos que atiramos da nossa cabeça para a rua”. E estas crianças depois de “cozinhadas” tornam-se adultos com mentes criativas, que não se conformam com o que consideram errado e se manifestam contra isso.

Naturalmente que não defendo manifestações violentas, mas considero que temos sempre o direito e o dever (para com os nossos ideais e para com os outros) de defendermos o que consideramos correto e de nos manifestarmos contra o que não o é. E são, como este livro mostra de uma forma tão leve, estes adultos, os adultos que se preocupam com os outros e que não aceitam e não pactuam com violações dos direitos humanos, que reúnem os ingredientes certos para “cozinhar” um mundo melhor.

Podíamos estar a falar só de um país com uma língua diferente e com tradições distintas das nossas – e isso não só não incomoda, como é uma riqueza cultural - , mas estamos a falar de um país que não respeita os direitos das mulheres – que vivem a vida toda como seres inferiores -, de todos aqueles que têm uma orientação diferente daqueles que definiram uma norma, daqueles que ousam falar e se expressar e dos que ousam viver em liberdade! É destes “maus ingredientes” que o Mundial no Qatar é feito e é por isso que o torna um “prato tão indigesto” e como dizem as crianças quando não gostam de alguma coisa: “BLECH não gosto disto… não como!”

Não deixem de ler este livro delicioso, um remédio contra o conformismo e de o ler aos vossos filhos ou outras crianças e, sobretudo, não deixem de torcer muito por Portugal porque o campeonato tem que ser nosso!

Boas leituras e bons festejos nos jogos do mundial!

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A Páginas Tantas”
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