
Na primeira pessoa
Odete Costa*
A memória já não me permite descrever o espaço com exatidão mas não esqueço os cheiros que o calor intensificava, o odor da urina dos acamados e o suor das visitas amontoadas no corredor. De vez em quando passava uma enfermeira que levava consigo álcool etílico ou éter. Esse breve aroma anestesiava por instantes a indisposição que eu sentia. Talvez por essa razão viria a sentir-me bem por entre a maior parte dos cheiros de um laboratório químico.
O meu avô tinha dado entrada no hospital no dia anterior, foi-lhe diagnosticada uma leucemia fulminante, palavras que uma criança de doze anos não consegue descodificar. Mas quando penso nessa visita não é do meu avô que me recordo mas sim de uma maca tapada com um lençol branco. Por baixo, a silhueta inequívoca de um corpo. Um corpo morto que fazia sala na hora da visita. Seria esta uma lição de respeito pela vida ou simplesmente uma marca da indiferença perante a morte?
Nunca soube se o meu avô notou a presença daquela maca. Sei, apenas, que passados poucos dias ele implorou ao meu irmão (onze anos mais velho do que eu, o seu neto mais velho) que o tirasse daquele hospital. Não me deixes morrer aqui, disse-lhe. O meu irmão sempre ágil na ação obedeceu à vontade do nosso avô paterno e conseguiu levá-lo para casa.
Pautada por uma educação católica, não compreendi na época a situação, questionava-me se ele não devia ficar no hospital, ser cuidado para vencer uma doença invencível ou simplesmente prolongar a sua estadia nas nossas vidas?!
Felizmente houve quem respeitasse o Homem que ali estava, consciente da sua vontade, e não deixasse que o egoísmo ou a demanda do espírito de sacrifício se sobrepusesse ao ato de amor e de respeito que lhe devíamos.
O meu avô veio para casa por um brevíssimo instante. E é nos mais breves momentos que encontramos o que queremos eternizar. Eternizo a única vez que lhe dei a mão. Sentada ao seu lado no sofá, envergonhadamente aproximei a minha pequena mão do seu corpo debilitado, ele agarrou-me os dedos e permanecemos em silêncio. Foi o gesto mais íntimo que partilhámos. No dia seguinte morreu rodeado de alguns netos e filhos.
Vinte e tal anos mais tarde recebi uma mensagem de uma grande amiga. Pedia a todos que compreendessem a sua decisão, não aguentava mais os tratamentos, as dores agonizantes, a certeza que percorria um difícil caminho cuja única saída era a morte. Quero paz, disse-nos. Desta vez, abandonados os princípios moralistas da religião, deixei que o egoísmo vencesse por instantes. Queria pedir-lhe para lutar, resistir, ficar connosco por mais tempo.
Guardo mais uma memória de um corredor, desta vez vazio, silencioso. Caminhei a medo até ao seu quarto. Abri a porta e vi um corpo magro, incrivelmente magro, parte de um rosto tapado que deixava adivinhar um sorriso. Os olhos pintados, mais verdes do que nunca, diziam-me que a sua vontade devia ser respeitada. Sei que iria mais além, se a lei o tivesse permitido, mas conseguiu um lugar onde a trataram com respeito. Onde lhe cuidavam do cabelo e lhe pintavam os olhos. Foi naquele olhar delineado que encontrei a maior dignidade de uma Vida.
Acabou por pedir para ser sedada até todos os seus tecidos entrarem em falência.
Eles (o meu avô e a M.A.) ensinaram-me, mais do que qualquer outra pessoa, que não é possível amar sem respeitar. Respeitar um ser humano é respeitar as suas decisões sobre a sua vida e a sua morte. A nossa morte pertence-nos como cada instante da nossa vida, não há coletivo ou lei que se possa sobrepor a isso. É na primeira pessoa, consciente da sua decisão, que as decisões mais importantes devem ser tomadas.
* Autora (escreve no blogue Utopia é a meta)
Açucena Freitas
Bom dia, Odete.
Ambas as histórias me comoveram e ambas se revestem de dignidade e amor. Ambas são histórias que muitos poderão contar na primeira pessoa.
Mas também é verdade que nenhuma destas histórias tem a ver com eutanásia, nem com princípios moralistas da religião. O facto do seu irmão ter levado prontamente o seu avô para casa foi, tenho a certeza absoluta, uma decisão que os médicos que o acompanhavam, respeitou, admirou e abençoou. Além disso, não há nenhuma religião que obrigue alguém a a perseguir a cura sob qualquer preço, embora haja as que proíbam alguns actos médicos capazes de salvar uma vida.
Para mim, a morte medicamente assistida deveria ser apenas como no caso da sua amiga, uma opção que impeça alguém ou algum médico de a fazer tomar qualquer tipo de medicação que lhe prolongue uma vida de sofrimento e lhe roube o que considera a sua dignidade. Serve apenas para garantir que, quem tome esta decisão, não seja abandonado ao sofrimento de um fim de vida doloroso e tenha um acompanhamento paliativo que confira dignidade e “qualidade de morte”. Isso já é realidade e não carece desta polémica toda nem de mais nenhuma legislação.
Para esclarecer, eu sou contra a eutanásia, sou contra porque já vi maus exemplos e sei de outros que neles se podem tornar.
Isto não é um tema fácil e já começam a aparecer provas de que é um tema muito perigoso. A realidade dos idosos holandeses, por exemplo, é angustiante e isto só perceberá bem quem já viveu em países nórdicos e tenha consciência do desapego que reina nas famílias em relação aos seus velhinhos, aliás coisa que já começou a ser igual, em Portugal. Sabe que a senilidade tira muitos direitos e é uma porta aberta para muitos abusos e é isso que tem acontecido. Ainda temos os caso de crianças, em que os pais, tutores ou médicos se substituem a Deus e os condenam à morte como se de cachorros se tratassem, sendo muitas vezes impossível definir a boa ou má intenção.
Ainda temos duas questões essenciais que são a impossível garantia de que amanhã não apareça uma cura, de que a opinião médica é fiável, de que a vontade não surge num momento de desespero que pode resultar em arrependimento.
Põe-se também a questão de alguém que. sendo fisicamente perfeitamente saudável, sofre de uma depressão aguda crónica. O suicídio já foi tentado várias vezes, a vontade de viver vai e vem às golfadas. Por esta ordem de idéias, a eutanásia também seria para ela uma “solução”, já que não se podem nem se devem fazer distinção entre saúde física e mental?
Creio que, toda esta discussão se resume a uma luta política populista que se está a esquecer que estamos a lidar com seres humanos e que, sob nenhum pretexto, se deve banalizar a morte. No mundo sobrepovoado em que vivemos, esse tipo de postura pode sair muito caro à humanidade.
Peço desculpa pelo longo comentário, mas acho que esta é uma daquelas discussões que se deve alargada e séria e eu não pude deixar de comentar.
Obrigada
Açucena Freitas