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Mónica Costeira: “A esperança é a única coisa mais forte que o medo”

Artes

Quando se cresce como a mais velha de quatro irmãs, é normal desenvolver-se uma espécie de instinto protetor, um certo sentido de alerta mais apurado e um cuidado especial para com as mais novas. Pelo menos, assim foi com a médica pediatra Mónica Costeira, natural de São Jacinto. “Desde que me lembro que gosto de cuidar das pessoas que estão à minha volta. No fundo, estou também a cuidar de mim mesma porque me sinto feliz e preenchida ao fazê-lo”, reconhece a aveirense que, aos 34 anos, está no Iémen, a participar naquela que é a sua segunda missão humanitária com os Médicos Sem Fronteiras.

Por volta dos 12 anos, uma nefropatia por IgA – doença renal que, à época, “não se conhecia muito bem” – obrigou Mónica a passar vários meses internada em Coimbra. Naquele hospital, ao constatar o cuidado que tinham para consigo e para com as outras crianças, começou a imaginar-se no papel daqueles profissionais de saúde. Em meia dúzia de meses, criaria as bases de entusiasmo e inspiração que ajudariam a cimentar uma vocação que dura até aos dias de hoje e que, verdade seja dita, até já vinha de trás.

Ainda antes daquela experiência hospitalar, e além do cuidado que sempre demonstrou para com as irmãs mais novas, Mónica havia escrito – numa composição escolar que os pais ainda hoje guardam – algo do género: “Sou a Mónica, tenho 3 irmãs, gosto muito de ajudar os outros e adoro crianças. Quando for grande quero ser médica pediatra”. Pois bem, Mónica haveria mesmo de completar o longo e exigente curso de Medicina, na Universidade de Coimbra, e de se especializar em Pediatria, cumprindo, assim, a sua primordial vocação de cuidadora, a paixão pelo ofício desenvolvida aquando do seu internamento e os desígnios daquela redação.

O envolvimento em atividades de voluntariado com crianças nos centros de acolhimento da Comunidade Juvenil Francisco de Assis, em Coimbra, e na APCC – Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra –, mas, principalmente, na Guiné-Bissau, com um projeto humanitário da organização não-governamental Afetos com Letras, ajudaram-na a concluir que, se queria que o seu trabalho tivesse maior impacto, o seu futuro teria de passar por países em situação de conflito e emergência e junto de comunidades mais frágeis e vulneráveis – pobres, refugiados ou deslocados internos.

A primeira missão de Mónica com os Médicos Sem Fronteiras – ONG internacional que presta cuidados de saúde a pessoas afetadas por graves crises humanitárias – levou-a ao Sudão do Sul, em África, o mais recente país do mundo (independente desde 2011), mas também um dos mais pobres. “Quando me disseram que ia para lá fiquei extremamente contente. Conhecia a história do país e sabia que ia encontrar uma população sofrida e carenciada pela guerra”. Só para se ter uma noção, durante os cinco anos do seu internato de pediatria, no Hospital de Guimarães, Mónica havia assistido à morte de duas crianças. No Sudão do Sul, todas as semanas, morriam várias. Foram seis meses (julho de 2020 a janeiro de 2021) fisicamente extenuantes e emocionalmente excruciantes. “Um grande choque, mas também um grande desafio. Pelas necessidades que encontrei, percebi que, efetivamente, era mesmo ali que eu tinha de estar”, reforça, convicta.

Mónica partiu para o Sudão do Sul já depois do primeiro grande confinamento e em plena pandemia. No entanto, é importante perceber que, naqueles territórios, a situação pandémica não é vivida da maneira à qual, na Europa, estamos habituados. Desde logo, porque “a esperança média de vida não chega aos 60 anos. As pessoas morrem por malnutrição, HIV, tuberculose e infeções que podiam ter sido prevenidas por vacinação ou antibióticos”; além disso, “as comorbilidades causadoras de risco de doença mais grave – como a obesidade ou a hipertensão arterial –, características dos países de alto rendimento socioeconómico, por cá, são raras. Aqui, as pessoas passam fome”, explica a médica. Posto isto, há que olhar para a Covid-19 na perspetiva daquelas comunidades. Ao fazê-lo, facilmente se percebe que a pandemia que tanto nos tem atormentado, naqueles países, “acaba por se diluir nas restantes carências e dificuldades”.

Em muitos casos, não fosse a presença dos Médicos Sem Fronteiras, algumas populações viveriam completamente isoladas, sem acesso aos mais básicos cuidados de saúde num raio de muitas centenas de quilómetros. Dos vários casos que lhe passaram pelas mãos, Mónica recorda de uma forma particularmente emocionada a história de uma menina de 11 anos, sorridente e brincalhona, chamada Nyabol.

Na sua aldeia natal – Kodok, uma povoação remota, junto ao rio -, a criança começou a desenvolver sintomas graves de doença e os pais levaram-na ao centro de saúde local. O médico, suspeitando que a menina tivesse Diabetes Tipo 1 e estivesse em cetoacidose diabética (uma complicação grave que, se não fosse tratada rapidamente, poderia levá-la à morte), decide pagar do próprio bolso a travessia de barco e enviá-la para o local mais próximo com insulina e pessoal médico capaz de tratar a doença: o hospital dos Médicos Sem Fronteiras, em Malakal, a algumas horas de distância.

Com a intervenção de Mónica e da sua equipa, a criança melhorou progressivamente. Mas, se queria sobreviver, Nyabol não podia voltar para junto da sua família. A comunidade onde vivera não tinha as mínimas condições necessárias ao seu tratamento. Recorde-se que a Diabetes Tipo 1 exige a administração de insulina várias vezes por dia, durante toda a vida, assim como uma alimentação rigorosa e prática de exercício físico. Recorde-se ainda que, para manter a estabilidade, a insulina deve ser reservada num frigorífico. Ora, “estas pessoas vivem me barracas sem eletricidade. Não podem simplesmente levar a insulina para casa, têm de vir todos os dias ao hospital de manhã e à noite”, relata a pediatra portuguesa.

“Como explicar a uma menina de 11 anos, que se encontra sozinha num campo de deslocados internos, que tem uma doença para o resto da vida e que tem de vir ao hospital de manhã e à noite administrar insulina? Como fazê-la entender que a vida dela dependia de ela mesma cumprir as recomendações médicas? Como levá-la a compreender que não podia voltar para a aldeia e para junto da família, porque não havia insulina, não possuíam glucómetro, não dispunham de pessoal treinado para fazer o devido acompanhamento da Diabetes Tipo 1, não havia qualquer suporte para lidar com a doença?”, terá desabafado Mónica, numa crónica que, terminada a missão, haveria de ser publicada no portal dos Médicos Sem Fronteiras.

A história de Nyabol acabaria por ter um final feliz. “Conseguimos derrubar esses obstáculos. Levámos insulina para o centro de saúde da aldeia e estabelecemos uma rede de aprovisionamentos para que a criança pudesse recebê-la diariamente; levámos um frigorífico e demos formação acerca da Diabetes Tipo 1 aos profissionais médicos locais, treinando-os de forma a conseguirem agir nas diferentes circunstâncias. Antes do Natal, a Nyabol estava de volta a casa. A alegria de vê-la reencontrar a família e de juntos partilharem a esperança no futuro foi, para Mónica, “um dos momentos mais bonitos e gratificantes de toda a vida”. “Não há melhor recompensa que os sorrisos das crianças que ajudamos a salvar”, consente.

Neste momento, Mónica está no Iémen, um território fragilizado, que vive a maior crise humanitária do planeta, e onde a dor, o sofrimento, o desespero e a morte são assuntos do dia-a-dia. Das primeiras vezes que se viu obrigada a contactar com “sofrimento em larga escala”, a tendência natural de Mónica foi colocar-se “à defesa”, tentando afastar-se emocionalmente das situações. Só assim, pensava ela na altura, conseguiria exercer a sua missão com eficácia e profissionalismo. Cedo entendeu, porém, que “se há tristeza é porque houve amor e entrega a precedê-la”. “Nós só ficamos destroçados quando morre uma criança porque nos entregámos por completo e demos o melhor de nós a cuidar dela, porque criámos carinho e simpatia por ela. Acabei por aprender a focar-me nisso”, constata.

A aveirense gosta de encarar o seu ofício, não só como o de uma prestadora de cuidados de saúde, mas sobretudo como o de uma “mensageira de esperança” para aquelas comunidades. “Muitas vezes, deparo-me com situações em que, por não ter os recursos necessários, não consigo ajudar medicamente uma pessoa. Mas o meu papel não se limita aos cuidados médicos”, esclarece. “Cabe-me também transmitir-lhes conforto, carinho e mostrar-lhes que o mundo não se esqueceu deles, do seu sofrimento, do seu desassossego, que há quem valorize as suas vidas, quem se preocupe e queira ajudar”, continua. “Estas pessoas precisam de tratamentos médicos, claro, mas também de sentir que há alguém que as vê como semelhantes”, testemunha Mónica, recordando uma máxima que aprendera na Grécia, quando estava a cumprir trabalho voluntário num campo de refugiados: “Hope is the only thing stronger than fear” (“A esperança é a única coisa mais forte que o medo”).

E esperança, revela a médica, é algo que se transmite através das atitudes mais singelas: “Dar-lhes a oportunidade de partilharem as coisas boas do seu país deixa-os tão felizes. são pessoas afáveis, carinhosas e muito competentes e trabalhadoras. Adoram oferecer comida, por exemplo. Sempre que nos veem, vêm oferecer-nos comida deliciosa e ficam radiantes pelo simples facto de nós comermos a comida deles, de ouvirmos a música deles, de nos interessarmos por perceber as tradições, celebrações e os dias especiais para eles”, vai descrevendo. “Cuidar é reconhecer o outro, em toda a sua complexidade, como alguém igual a nós”, conclui Mónica.

Nos momentos mais difíceis, em que o sofrimento daquela gente a invade e amargura, em que a sensação de impotência gera angústia e frustração e em que a constatação da distância a casa faz com que a saudade aperte de forma ainda mais implacável, Mónica agarra-se a uma memória que é, ao mesmo tempo, um objetivo a alcançar. “Penso no mar. Tendo crescido em São Jacinto, habituei-me a encontrar no mar uma tranquilidade e sensação de bem-estar muito grandes. É o que mais gosto de reencontrar quando volto”, partilha, revelando que, a cada regresso a casa, a primeira coisa que faz é “ir à praia com a família”. “É aí que me reencontro e me sinto verdadeiramente em casa”.

“Por muito que lhes custe”, Mónica pôde sempre contar com o apoio dos pais e das irmãs. “Respeitam a minha opção e ficam orgulhosos de mim, ainda que, obviamente, as preocupações sejam muitas”. Poucos dias antes de a médica aveirense partir para o Iémen, veio a público a notícia de que três membros dos Médicos Sem Fronteiras (entre os quais, uma espanhola da mesma idade de Mónica) haviam sido assassinados, na Etiópia, num ataque armado que o governo etíope rapidamente atribuiu às forças rebeldes em atividade naquela região. Um “golpe devastador” para a organização e para todos os seus colaboradores e que, a poucos dias de embarcar para mais uma missão internacional, também deixaria Mónica e a sua família abaladas. “Na última conversa que tive com o meu pai, antes de vir, ele confessou-me que tinha medo”, admite.

Tanto na sua primeira missão, no Sudão do Sul, como agora, no Iémen, das centenas de pessoas que Mónica conseguiu auxiliar, foram muitas as que lhe pediram para dirigir um agradecimento especial à corajosa família que a deixara ir para aqueles territórios em conflito. “E eu tento passar-lhes essas mensagens, para que sintam que o esforço que estão a fazer e a aflição pela qual estão a passar são por um bem maior”.

Mónica deverá terminar a missão no Iémen em meados de dezembro, altura em que conta regressar a Portugal para um “período de descanso e recuperação de energias” na companhia da família. Logo a seguir, no entanto, partirá para uma nova missão. “Nunca sei o destino com antecedência. Está sempre dependente da minha disponibilidade e da necessidade dos projetos nos diversos países”, explica a pediatra.

“Daqui a alguns anos”, não põe de parte vir a “progredir na carreira”, assumindo cargos de responsabilidade na coordenação do trabalho humanitário. Até lá, os seus planos passarão por ciclos de “seis meses em missão humanitária, seis de meses com a família a dar uns bons mergulhos na praia de São Jacinto”. Uma fórmula aparentemente simples, mas que, sem dúvida, é garante de felicidade e realização pessoal para esta aveirense.

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