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Rosa Alice Branco, uma poeta e ensaísta de alma salgada

Literatura

Cresceu procurando fazer-se invisível, por entre livros sem fim e narrativas com sal dentro. Hoje, Rosa Alice Branco, poeta, ensaísta, investigadora e tradutora com raízes em Aveiro, tem 12 livros de poesia publicados em solo lusitano.

Escreve “por vício” e acertando a pauta do poema com a pauta do seu corpo. Em casa, tem uma fileira de livros dedicada à bondade, que diz ser a maior qualidade de um ser humano. A sua poesia, traduzida em diversas línguas e presente em países como os Estados Unidos, o Brasil, a Suíça e a Tunísia, reflete isso mesmo – uma preocupação com os mais frágeis. Diz Valter Hugo Mãe, amigo e autor de referência da poeta aveirense, que é “uma poesia muito honesta”, em que está sempre presente uma ética.

Aprendeu a ler aos quatro anos, ao mesmo tempo que se aventurava no Francês. Aos 12, discursava já em público sobre cinema e aos 13 foi coroada rainha do Festival de Cannes. Hoje, com um Doutoramento em Filosofia Contemporânea, Rosa Alice Branco vive no Porto mas continua ligada, por afetos, a Aveiro e à casa do cineasta Vasco Branco, seu pai, que é agora, por iniciativa de Hugo Branco, a VIC – Aveiro Arts House.

Uma infância entre livros e salas de cinema

A infância de Rosa Alice Branco parece, ela própria, brotar de um livro como os tantos que leu enquanto criança movida a curiosidade. Nascida em Aveiro em 1950, foi na Gafanha da Nazaré que, brincando no vasto jardim de sua casa com filhos de pescadores e gente ligada ao mar, foi colecionando as suas primeiras narrativas. “Contavam-me as histórias – das traineiras que não chegavam, de coser as redes, do dia da chegada da carta, do mar estar bravo, da irmã que tinha ficado falada. Eram histórias tristes mas lindíssimas”, recorda. Aos cinco anos, os pais, que aí haviam aberto a Farmácia Branco, mudaram-se para a cidade dos moliceiros. “Para mim, foi o fim das narrativas”, conta Rosa Alice, que, em Aveiro, se viu imersa num sistema que afagava a desigualdade. Foi nessa altura, porém, que se tornou mais íntima de si mesma. “Como fui obrigada a uma reclusão, a observar a cidade e o que era hostil ou não, tornei-me a maior observadora de mim própria”, relembra.

Em casa, viviam-se de forma vibrante a política e a cultura, uma vez que era lá, no estúdio de cinema do pai, o cineasta Vasco Branco, que se reunia a oposição ao regime de Salazar, liderado por Mário Sacramento. Rosa Alice, em jeito de tudo absorver, procurava fazer-se invisível. “Punha-me num cantinho e assistia a todas as coisas que se passavam”. Eram sessões políticas mas também culturais, que iam alimentando o espírito de uma jovem irreverente e interessada, que cresceu a ver Fellini, De Sica, Antonioni e Visconti, entre tantos outros eternizados nomes do cinema. A sua casa era, por isso, o seu castelo, onde devorava livros no escritório do pai e fazia problemas de Matemática, outra das suas grandes paixões.

Fora das quatro paredes, passava grande parte do tempo com Isabel Côrte-Real, com que teceu amizade muito cedo, e com Adelaide e Jaime Borges, dois grandes amigos com quem discutia e vivia cultura.

Em 1963, o pai recebeu a menção especial do júri do cinema amador num festival de cinema independente em Cannes para O Espelho da Cidade e foi convidado a presidir ao júri dos cineclubes no festival francês. No ano seguinte, Rosa Alice acompanhou Vasco Branco nessa viagem que lhe abriu mundos e não saiu da sala de cinema durante toda a pré-seleção, encantando o diretor do festival com o seu interesse genuíno. Não poderia ela ter adivinhado que, aos 13 anos, por todo o seu entusiasmo, lhe seria colocada sobre os cabelos a coroa do Festival de Cannes.

Queria dedicar-se à Matemática e à Filosofia mas o pai pediu-lhe que estudasse Farmácia, visto que, na altura, era necessário ter o curso para ter a propriedade. Aceitou, com a condição de que, assim que terminasse, ingressaria numa licenciatura em Filosofia. Assim fez. Com 17 anos, rumou ao Porto, onde viveu, nos primeiros tempos, num lar de freiras e onde depressa descobriu o Piolho e a alma vibrante da cidade. Terminadas as duas licenciaturas, completou um Mestrado na Universidade Nova da Lisboa, com uma tese sobre a perceção visual em Berkeley, e, mais tarde, um Doutoramento em Filosofia Contemporânea, no qual se debruçou sobre a relação causal na perceção.

Quando chegada à capital, estava determinada a ter aulas com Fernando Gil, filósofo e ensaísta que veio a ser seu orientador. Conta-nos que havia algum atrito entre os dois mas, sobretudo, muito respeito. “Ele achava que eu era insuportavelmente segura. Não era, simplesmente as questões da segurança e da insegurança nunca se puseram em mim. Eu não sou nem segura nem insegura”, explica, acrescentando que, primeiro, é verdadeira consigo mesma, oferecendo aquilo que é e tentando ser o melhor possível. É por isso que dedica tanto do seu tempo ao estudo, preparando-se como ninguém: chegou a estudar 14 horas por dia para um debate com o tema “Quem tem medo de James Joyce e Marcel Proust” e fez questão de ler 50 livros para uma apresentação da biografia de Agustina Bessa-Luís.

Não é altura de começar a não rasgar?

Numa altura em que escrevia mas “rasgava tudo”, foi questionada por um docente sobre o seu inequívoco talento para a escrita. Levi Malho, que havia sido professor da sua mãe e o foi também do seu filho, perguntou-lhe se não seria altura de começar a não rasgar.

Rosa Alice, que escreveu o seu primeiro livro aos 12 anos, explica que publicou tarde por sentir que só o poderia fazer quando achasse que o trabalho de escrita já poderia ser partilhado com os outros. “Nunca gostei de fazer perder tempo. Escrevemos porque é um vício mas como é que nós nos sentimos felizes? Quando alguém diz que ficou tocado com aquilo que escrevemos. Basta um segundo de toque e o nosso sentido de vida fica preenchido”, diz.

O seu primeiro livro de poesia, A Mulher Amada, foi assinado por Ginha Branco e, por isso, poucos o associam à poeta, que o dedicou à mãe, pilar da sua casa. É então em 1988 que Rosa Alice Branco nasce enquanto autora, com Animais da Terra. Com uma epígrafe de Bataille – “os animais estão no mundo como a água no interior da água” –, é um livro não sobre os animais, conta, mas sobre nós por oposição aos animais, que se fundem enquanto que o Homem cria distância. Uma distância que a autora diz ter nascido, simbolicamente, com Narciso, que não tinha consciência dela até se ver como imagem. “A minha interpretação é que, quando Narciso se olha na água, é um ser olhado, olhável, e, portanto, vai ter de conter as suas emoções. Para mim, é o nascimento do eu público”.

Em 2001, o livro Da Alma e dos Espíritos Animais marcou uma viragem na sua poesia. Até aí, conta, “escrevia como os anjos de Wenders, que queriam descer à terra”. Nas suas páginas, explora a alma e o corpo humanos, em versos cujo ritmo se funde com o ritmo do seu corpo. “Quando escrevo é todo o meu corpo que está, através da minha mão, a escrever no papel”, revela a poeta.

Já em 2016, o livro Gado do Senhor, vencedor do Prémio de Poesia Espiral Maior em 2008, foi publicado nos Estados Unidos pela editora Milkweed, tendo sido considerado, pela Chicago Review of Books, um dos 12 melhores livros do ano. As críticas resultaram num convite para uma digressão e, em abril de 2018, Rosa Alice fez as malas e partiu para o país onde Trump era já presidente, tendo feito leituras, palestras e debates em diversas universidades e livrarias.

Mais do que escrever sobre o corpo, a alma, os afetos e o amor – porque, como diz, “tudo na vida é amor” – Rosa Alice Branco escreve com a certeza de que a vida é um processo e não um estado. “Eu digo eu sou mas, na verdade, eu nunca sou, eu estou. É também por isso que adoro gerúndios. Nós estamos sempre fazendo, quanto muito estamos sendo”.

Um livro sobre o que a toca

Traçar um Nome no Coração do Branco é o mais recente livro de poesia de Rosa Alice Branco, tendo sido o primeiro a ser publicado pela prestigiada editora Assírio & Alvim. Nele, escreve, em verso, sobre lugares e afetos, memórias e objetos, sobre amor e design. “Este livro é das coisas que me tocam”, conta a poeta que dedicou grande parte da sua vida ao ensino da Teoria da Perceção. Publicado em 2018, valeu-lhe um dos mais bonitos elogios que já recebeu. “Lembro-me que, quando li O Cristo Recrucificado, de Nikos Kazantzakis, aos 12 anos, comecei a sofrer imenso por saber que tinha de o acabar. Houve uma pessoa da escrita me disse que estava a sofrer por estar a acabar este livro. Nunca pensei ouvir isto de um livro meu”.

Entre os 35 poemas guardados no seu interior, há um dedicado à sua Aveiro, à cidade que viveu enquanto criança e adolescente – a Aveiro das salinas.

Hoje, ao falar da cidade, fá-lo com carinho, dizendo estar-lhe grata. “A casa dos meus pais já não é o meu castelo, é uma sede cultural, onde o meu filho faz coisas maravilhosas”, conta a escritora, que organiza e promove também, na VIC, eventos que unem a literatura a outras artes, alimentando o borbulhar da vida cultural na cidade onde se descobriu a si mesma e a tantos – outros – gigantes da literatura.

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