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“Lá, onde o vento chora”, de Delia Owens

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães *

Delia Owens, zoóloga e cientista da vida selvagem em África e especialista no estudo do comportamento animal, autora e coautora de vários artigos e livros científicos, estreia-se na escrita de romance com este livro que nos dá uma visão maravilhosa sobre a natureza humana e a complexidade das relações e a importância do contacto e da vida na natureza e as importantes lições que esta nos dá. Este é um romance que envolve um mistério que nos coloca várias questões para refletir: o que somos enquanto pessoas e os valores pelos quais nos pautamos? Como nos deixamos moldar e como podemos moldar as nossas relações em sociedade e também todas as lições que a natureza nos vai dando e que, se as soubéssemos aproveitar, nos poderiam tornar melhores.

Este devia ser um livro de leitura obrigatória:

- para quem tem pouco contacto com a natureza, porque este é um hino maravilhoso à natureza e ao colo e amparo que ela nos dá, bem como às lições que, se estivermos atentos, dela podemos tirar;

- para todos os que se deixam determinar e desistem perante as dificuldades, porque esta menina nos ensina que somos nós que construímos a nossa história e que a resiliência é a melhor arma nas alturas em que o apelo para desistir parece incontornável;

- para todos os que passaram por uma situação de bullying, de desrespeito, de preconceito e segregação, porque Kya, com apenas 6 anos, nos revela uma forma muito inteligente, sábia e pura de reagir a todas essas situações e também nos mostra o quanto podem afetar tanto uma pessoa os comportamentos discriminatórios e de segregação;

- para todos aqueles que – ainda – continuam a achar que as diferenças nos devem afastar, porque não há riqueza maior do que a diversidade e a oportunidade de aprendermos com a inclusão da diversidade na nossa vida;

- para todos os que não acreditam em si e nas suas capacidades, porque este livro nos desafia a descobrir o que temos de melhor e a não nos permitirmos olhar para nós pelos olhos dos outros, mas sim a ousar mostrar a nossa verdade e o que somos e que valemos, não deixando que os outros nos tirem o direito de ser felizes.

Depois de vos ter dito porque é que este livro pode ser tão maravilhosamente transformador, vou-vos contar a história de uma menina doce e lutadora que nos ensina mais do que muitos adultos com conhecimentos bem mais formais e tradicionais. Uma das coisas que mais gostei neste livro foi o facto de me ter dado a oportunidade de aprender com a simplicidade e a pureza de uma criança e a beleza e serenidade da natureza.

O tema e o perfil das personagens são muito diferentes do que habituados a ler e captam a nossa atenção não só pela originalidade, mas também pela forma maravilhosa e tao envolvente com que a escritora tem a capacidade de, partindo do seu profundo conhecimento da vida selvagem e da natureza, recria o ambiente em que vive a protagonista, descrevendo de forma muito realista e poética os sons, movimentos e cores do pantanal em que vive a nossa protagonista. Enquanto avançava na minha leitura agradeci muitas vezes à autora o facto de me ter permitido beneficiar do profundo conhecimento que tem da natureza e da vida selvagem e que só uma verdadeira amante da natureza consegue descrever de forma tao perfeita e bonita.

A história inicia numa manhã de agosto quente, de invulgar beleza e serenidade, em que Kya, com apenas seis anos de idade, vê a sua mãe sair da cabana onde vivia com a sua família e afasta-se com os seus sapatos altos de imitação de crocodilo e a mala azul na mão, nunca mais regressando. Esta é a primeira pessoa que abandona Kya e o início de uma historia de sucessivos abandonos que termina com Kya a viver sozinha com o pai na cabana no pantanal. Abandonada por quase todos os que pertenciam ao seu núcleo familiar – até mesmo o pai tem uma presença muito ténue na sua vida – Kya não se transforma numa criança revoltada e problemática e descobre em si, com a ajuda da sua melhor amiga e companheira que é a natureza, uma capacidade de resiliência e uma esperança extraordinárias e uma sensibilidade e doçuras únicas e inspiradoras. Com Kya aprendi a não permitir que os acontecimentos menos felizes despertem em mim atitudes e sentimentos igualmente negativos, mas sim em dar a oportunidade para que despertem, em nós, sentimentos e características positivas. Porque se uma criança de 6 anos tem a invulgar capacidade para o fazer nos também temos que a descobrir.

Praticamente sozinha no mundo e no pantanal a que chama a sua casa, Kya cresce sozinha, mas serena e feliz, muito bem acompanhada pelos animais e plantas que vivem, como ela, no pantanal, confidenciando as suas alegrias e os seus medos ao vento que aí sopra e com a companhia das amigas gaivotas. “Ao ver-se na situação mais delicada da sua vida, socorrera-se da única proteção que conhecia – ela própria.”

Este é um livro que nos ensina que quando prestamos atenção ao que nos rodeia, neste caso, à natureza, ela nos dá as respostas mais sábias.

A história de Kya mostra-nos como somos um pouco o reflexo das nossas vivências na infância, mas que isso não pode determinar a nossa história, pois ela ainda está por escrever e a caneta está na nossa mão e as páginas do futuro ainda em branco. Kya foi aprendendo com a natureza que a viu crescer e tanto lhe ensinou pois, abandonada pelas pessoas que deveriam ter feito parte da sua história e afastada pelas pessoas que viviam na cidade, foi crescendo e aprendendo com as lições da natureza e no colo desta.

A natureza é, neste livro e na vida de Kya, um sábio professor que a ensina a resistir ao medo, ao abandono e à maldade do ser humano e lhe vai mostrando vários paralelismos entre a vida selvagem e a vida em sociedade. É, aliás, curioso notar que afinal a civilização tem mais semelhanças com a vida na natureza no estado mais puro do que, por vezes, julgamos.

Nem só de beleza vive esta história, onde a beleza da natureza contrasta com a fealdade dos comportamentos humanos, entre os quais se destacam os efeitos negativos do preconceito e da segregação que tem como única justificação a “diferença”. Condoí-me com o bullying que toda a sociedade faz a esta pequena criança que anda descalça e se comporta de forma diferente e vive afastada de todos e sozinha no seu pantanal, pois mais do que o bullying feito por um pequeno círculo apertado de crianças na escola, o comportamento de todos os habitantes da cidade retrata a maldade das pessoas e os efeitos dessa maldade. O bullying afasta-a e Kya acaba por ficar, cada vez mais, rodeada daqueles em quem confia – os animais e as plantas do seu pantanal.

E porque o preconceito está, tantas vezes, associado às acusações mais infundadas, a história de Kya sofre mais um duro golpe quando Chase Andrews, o galã da cidade que foi dos poucos que se aproximou de Kya e a tratou como igual, aparece morto. Nessa altura, as suspeitas e os dedos apontaram para o elemento estranho e incompreendido, a “miúda do pantanal” e Kya é acusada e julgada pela prática desse homicídio.

Neste ponto da história, é interessantíssimo o paralelo que é feito entre o comportamento do juiz e dos advogados no tribunal e a natureza no seu estado mais selvagem. “É claro que a linguagem utilizada no tribunal não era tão poética como a do pantanal, mas Kya via algumas semelhanças na natureza de ambas. O Juiz – sem dúvida o macho alfa – estava seguro da posição que ocupava, por isso a sua postura era calma, ainda que dominante, como a de um territorial javali macho. Tom Milton emanava também confiança e classe, movendo-se e agindo com naturalidade de um poderoso cervo, que é reconhecido como tal. O advogado de acusação, por outro lado, valia-se de gravatas de cores garridas e casacos de ombros largos para reforçar a sua posição, erguendo os braços ou levantando a voz, para se impor. Um macho inferior precisa de gritar para se fazer notar.”

A vida civilizada vai-nos confrontando com verdades que considera incontornáveis e absolutas: “um homem não chora”, os homens são duros e as mulheres mais sensíveis e Kya ensina-nos aquilo que vai aprendendo e, essas sim, são grandes verdades, como aquela que o pai lhe ensina: “O pai dissera-lhe muitas vezes que o que define um homem a sério é o chorar sem se envergonhar disso, ler poesia com o coração, sentir a ópera na alma e fazer o que for preciso para defender uma mulher” e “Grande parte dos homens andam a saltar de uma mulher para outra. Os que menos valem andam por aí a pavonear-se e seduzem-nos com falsidades.”

Muito interessante é também a forma como este livro aborda a justiça humana e como o nosso sentido de justiça é enviesado pelo preconceito: “A questão que se coloca é a seguinte: sentem que conseguirão decidir se ela é culpada ou inocente, com base nas provas e não nas nossas emoções ou na vossa experiência passada, depois de ouvidas as testemunhas?”

Se dermos oportunidade, os livros ensinam-nos muito e este é, sem dúvida, um dos livros que mais me ensinou, mas que também me encantou e por isso, se ainda não têm livro para as ferias, esta será uma excelente companhia.

Vemo-nos nas próximas páginas!

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A páginas tantas”
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