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Só para dizer que te amo

Opinião

Virgílio António Nogueira

Já há muito que as traineiras deixaram de assomar àquele cais, deixando as águas plácidas do canal principal por rasgar, do modo que a tesoura de alfaiate rompia a direito o tecido e, entretanto, com o advento da tecnologia e da linha de produção, se aquietou sem préstimo na alfaiataria da Rua Manuel Firmino. Desapareceu, dissipando-se no céu, pixéis a estilhaçar em pedaços brancos, a nuvem de gaivotas que acompanhava as embarcações de pesca do mar até terra.

A velha lota ficou mais antiga, o edifício do anterior porto de pesca sentiu a humilhação do desinteresse das gentes que serviu, orgulhoso da força do seu abraço à comunidade, perdeu a vaidade dos tempos de ator de gala, da farda rica ficou a ruína do armazém de pescado fresco e do mercado de sardinhas, carapau, robalo, dourada e de outras espécies piscícolas da costa atlântica portuguesa. A casa nobre perdeu o fito económico, a utilidade, desfigurou-se, o relógio da torre viu o ponteiro desistir de passar ao próximo minuto, abdicando da hora seguinte, esqueceu-se como um imemoriado de contar as horas de oração das mulheres em terra sabendo que a tempestade elevava as ondas, diminuía o barco à casca de noz vazia que entretém a criança na água do banho, e nas preces Deus trazia-lhes os homens vivos, tão bem eles escondiam o medo, mais pela soberba masculina do que pela confiança na proteção da Nossa Senhora das Areias.

O tempo e o peixe deixaram de se medir e pesar resguardados nas paredes que agora parecem pedir clemência aos ventos que lhe secam a tinta da pele e desejar uma morte digna, falecendo com a esperança que os herdeiros sejam os sucessores da vitalidade de outrora, da ligação de mão dada ao oceano, da vizinhança tão afetuosa com a ria, que a namorava com o rumor e a entrega do marulhar suave, que a tocava com doçura e se fosse um beijo seria apaixonado.

É difícil dizer adeus ao recanto que nos fez felizes, parar no improvisado drive-in da lota para trazer na bagageira do automóvel esses pedaços de mar que a estranha doçura do carvão iria abrasar e dar sabor, um aroma que ficou das passadas noites de verão e dos jantares no quintal da vivenda de família, ainda os prédios altos e cheios de olhos a espreitar-nos não haviam sido construídos, foram-no depois, em flagrante desrespeito pelas casas pequenas, anãs, em comparação com a corpulência dos sucessivos andares robustecidos pelo cimento e pelo ferro.

Aquele espaço pode ser a esplanada de Aveiro, a plateia e o balcão dos adoradores da beleza da ria dolente, da sua fúria contida em tardes de nortada, dos cheiros marinhos, das lamas, das águas, da vegetação e da fauna, bem como dos veneradores do sol e da luz mágica, tão leve que parece uma transparência, tão clara que as formas das aves, do junco, das velas, ficam tão nítidas e a nascente os corpos deitados das serranias adivinham planaltos serenos, lá ao longe, distantes das praias.

Ali, em frente ao canal Principal, os corpos deitados nas espreguiçadeiras podem ter a solidão unipessoal, ontológica, das pessoas ao sol da tela de Edward Hopper, ficando por conta das felicidades íntimas, das dores impartilháveis, com a brisa a iludir as vozes que se digladiam nas suas cabeças. Gente adormecida, a reproduzir a imobilidade dos astros que as noites de estio na aldeia deixam observar pelo telescópio. Cada indivíduo é um planeta, um grão de areia mais do imenso universo, é a essa condição que a vastidão do cosmos nos atira. À solidão e à saudade, desfrutando com deleite os poentes que o horizonte da lota anciã possibilita vislumbrar, formando um ecrã, em que sim, neste afirmativamente, se pode tocar, por ele entrar e conhecer as suas personagens e com elas comunicar, podendo bastar para isso um sorriso aberto.

A cidade quer e necessita de rejuvenescer, pois agora também são outros, mais novos, os braços e os músculos que remam nos barcos dos Galitos, são outras mãos hábeis que tomam as velas das embarcações do Sporting de Aveiro, são outros os miúdos que atravessam o canal a nado para furtar os figos que amadurecem na figueira na outra margem e se sabem absolvidos pela sabedoria popular (roubar para comer não é pecado) e pelo exemplo de Santo Agostinho, que nas suas confissões admitiu o assalto a uma pereira na época em que era petiz e uma aventura com amigos não trazia no fruto surripiado o sabor apodrecido que se pode atribuir ao crime.

Ficar mais jovem quererá dizer um corpo construído com tijolos novos, materiais de última geração, novas plantas e recém-criados planos urbanísticos, mas tudo o que é técnico será insuficiente se a cidade não for sonhada por quem a viveu, por quem a usufrui e por quem a habitará. Mais do que a conjugação dos tempos verbais é preciso partilhar uma gramática de desenvolvimento e uma linguagem que misture, sem rebuço, a emoção e a razão. Sem receio de ambicionar, por exemplo, um edifício polivalente projetado para manter uma relação simbiótica com a água, como se unissem e interagissem, o da Ópera de Oslo é um modelo, e com o carisma arquitetónico do da Ópera de Sidney - mas com identidade própria, assumindo na composição e nas características o aproveitamento das virtudes naturais que o local oferece.

O concurso de ideias está lançado por quem de direito, a edilidade, cabe aos interessados capazes apresentar as propostas para toda a área da antiga lota, dar-lhe futuro com respeito pelo passado. Pode ser também a oportunidade do S.C. Beira-Mar se recentrar na geografia de origem, de voltar ao berço, à proa da bateira em que nasceu e foi acarinhado. Será a ocasião para dar à cidade uma extensão para se ganhar a vivência lagunar, novas frentes de fruição turística, melhores condições para os desportos náuticos progredirem no número de praticantes, uma nova centralidade que terá seguramente valências de excelência e que nos farão sorrir porque naquele chão pela madrugada a tia Alice servia, na cantina dos pescadores, a sopa de peixe com massa que ressuscitava as almas, a tasquinha humilde transformara-se o santuário das almas que ali procuravam a redenção da noite insone. Redimir a relação da cidade com a ria, para lhes dizer que, saídos do seu útero e alimentados pelo seu leite, as amamos muito.

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