Aoife – pronuncia-se “i-fa” e é um nome tradicional de origem gaélica – Hiney cresceu, embalada pela voz da mãe e pelas canções que esta trauteava para adormecer os seus irmãos – Aoife é a mais velha de cinco –, passando os anos da infância e adolescência numa aldeia do litoral oeste da Irlanda “pequena demais para ter uma escola de música”. “Na Irlanda, não existe um sistema público de educação musical. Há escolas de música nos centros urbanos, mas não nos meios de menor dimensão”, apresenta Aoife Hiney, estabelecendo uma comparação com a realidade que encontrou quando se mudou para Portugal. “Por cá, além dos conservatórios, há ainda uma cultura de bandas filarmónicas”, refere, elogiando a forma como estas coletividades (algumas delas, bicentenárias) têm ajudado a democratizar o acesso à educação musical – estima-se que existam mais de 700 bandas filarmónicas em Portugal.
Aoife Hiney apercebeu-se do seu gosto pela música ao acompanhar o pai numa viagem a casa de “Patty, The Wool Man” – um senhor que visitava a aldeia regularmente para avaliar lã” –, por altura do Natal. “Ele tinha histórias fantásticas e era um bom músico. Não sei se ele alguma vez tinha tido algum tipo de formação, mas tinha vários instrumentos em casa. Durante essa visita, enquanto os adultos estavam a conversar, eu ia brincando com os instrumentos, até que ele disse ao meu pai ‘Põe aquela miúda a aprender música, vê-se que ela gosta’. Mas nós éramos cinco, os meus pais tinham mais que fazer”, relata.
Já depois desse episódio, “a minha mãe achou que um piano dava um bom objeto de decoração, que era excelente para expor vasos, relógios e outros bibelôs, e levou um lá para casa. Era a minha oportunidade para voltar a pedir aos meus pais para aprender a tocar. Quando tinha 9 anos, lá fui”, recorda Aoife Hiney, que começou a ter aulas particulares, à quarta-feira, num dos quartos de um antigo convento onde “cabia pouco mais que o piano e duas cadeiras”.
Mais tarde, numa audição de piano – “de vez em quando participávamos em exames regionais. Era uma forma de nos incentivar a estabelecer e atingir metas” – um dos jurados comentou que Aoife Hiney “cantava bem e devia seguir canto”. “Tenho a certeza que tinha muito mais entusiasmo do que talento, mas foi o que precisei de ouvir para decidir seguir este caminho”, confirma.
Mudou-se, então, para Dublin, a capital do país, cidade onde viria a licenciar-se em Educação Musical, deparou-se com “todo um outro mundo”. Foi em Dublin que Aoife Hiney integrou, pela primeira vez, um coro de câmara – os New Dublin Voices –, apaixonando-se pela sonoridade e dinâmicas daquele grupo. “Também foi nessa fase que comecei a interessar-me por direção musical”, recorda.
Concluída a licenciatura, não lhe passou pela cabeça dar continuidade ao seu percurso académico, por exemplo, apostando num mestrado na área. “Queria era começar a dar aulas e, paralelamente, dirigir um coro de comunidade e inscrever-me em pequenos cursos de verão onde pudesse aprender mais”. Assim foi: começou a trabalhar como professora de música para adolescentes dos 12 aos 18 anos – também chegou a trabalhar com crianças em part-time –, continuou a cantar e, sempre que possível, a dirigir.
Todavia, quanto mais anos passavam, mas Aoife Hiney se sentia frustrada com o sistema de educação irlandês, na sua opinião, “muito mecanizado e virado para os exames”. “Os alunos viviam obcecados com conteúdos que poderiam constar dos exames, decoravam as matérias à pressa, de forma a conseguirem ‘despejá-las’ por escrito nas páginas de um teste e rapidamente esqueciam tudo”.
Decidiu, então, tirar um ano para fazer um mestrado – “acreditava que o segredo para me tornar uma professora melhor estava na formação” – e começou a avaliar as possibilidades que tinha pela frente. “Na Irlanda não havia qualquer mestrado em Direção Coral ou Orquestral. Para seguir o ramo, teria mesmo de procurar oportunidades noutro país”, enquadra, contando que, depois de pesquisar por vários programas, em universidades de vários países, lhe restaram duas hipóteses: uma solução mais cara e demorada, na Hungria, e outra mais breve, acessível e com “uma importante componente prática”, no DeCA – Departamento de Comunicação e Arte – da Universidade de Aveiro, pela qual acabaria por optar. De certa forma, até já estava familiarizada com a língua – alguns anos antes, Aoife participara num curso de direção coral em Espanha com Marco António Ramos, professor da universidade de São Paulo, no Brasil, um docente “inspirador” que a convencera a aprender algumas palavras em português na expectativa de um dia poder vir a participar num festival brasileiro.
No primeiro ano em Aveiro, “parecia que me tinha mudado para um país tropical. Andei de manga curta até ao final de novembro”, aponta Aoife Hiney, revelando que, entretanto, já se tornou “mais portuguesa”. Na perspetiva da professora e investigadora, a última década trouxe uma evolução significativa à cidade. “Está mais luminosa, povoada, aberta”, classifica, anuindo que “faltam equipamentos culturais com diferentes dimensões e ambientes”.
O plano inicial era ficar apenas um ano e, no segundo ano de mestrado, dedicado ao desenvolvimento e escrita da tese, voltar à casa dos pais, na Irlanda, regressando a Portugal pontualmente. Porém, o seu entusiasmo para com a música e a direção coral e as pessoas que, à conta dele, conseguiu reunir à sua volta, acabariam por lhe trocar as voltas. “À medida que se aproximava a data de voltar à Irlanda, menos interessante me parecia essa ideia. Pensei: ‘Se calhar candidato-me a um doutoramento e fico mais um aninho’”, relata Aoife Hiney.
“A verdade é que Portugal estava a mudar-me. A vivência na universidade de Aveiro ajudou-me a crescer enquanto pessoa e a ver as coisas de forma diferente. Mudei a minha perspetiva – uma visão muito ‘século XIX’ – e comecei a ter mais cuidado para com as pessoas que fazem música, a olhar para elas como pessoas e não enquanto simples veículos para a concretização de uma partitura e comecei a interessar-me pela educação musical para adultos”, reconhece.
Hoje, Aoife Hiney é professora auxiliar convidada na Universidade de Aveiro, professor adjunta convidada na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto e investigadora no DeCa e no INET-md - Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos de Música e Dança, sediado na Universidade Nova de Lisboa.