Só com saudades

Aveiro por um canudo

 

Ivar Corceiro*

 

 

Demos um abraço. Já não abraçava um amigo há alguns meses, pelo menos desde o início da pandemia, e depois caminhámos pela cidade deserta como se fôssemos dois sobreviventes do fim do mundo. Nas ruas éramos só nós e o vento, mais um ou outro autocarro vazios que por qualquer motivo indecifrável continuavam a fazer os seus trajectos habituais.

 

Li-lhe a face como se fosse um pergaminho a precisar duma análise histórica e percebi-lhe novas rugas, marcas do tempo que não tinha há dez anos, no nosso último encontro numa outra cidade inglesa. Percebi-lhe também alguma alegria no olhar e acima de tudo a paz que a idade costuma trazer.

 

Ele estava a ler-me também, provavelmente identificando sinais muito idênticos. Sei que envelheci de aparência e rejuvenesci por dentro desde a última vez que nos vimos. A outra diferença é que agora também eu vivo na Inglaterra e, na verdade, foi esse o único factor que permitiu o nosso reencontro em tempos de distanciamento social obrigatório.

 

⁃         E então como estás, pá?

⁃         Estou fixe! Só com saudades.

 

Não me perguntou de quem ou do que é que tinha saudades, claro. Os emigrantes sabem melhor o que essa palavra significa. Arrumam-se as memórias, as más e as boas, em caixinhas coloridas numa longa prateleira mental para ter a sensação de que as podemos abrir e tocar sempre que quisermos.

 

Foi isso que fizemos o dia todo e abrimos algumas dezenas de caixas da nossa juventude passada em Aveiro. Então dei-me conta de que algumas memórias tristes se podem tornar felizes com o tempo que passa. Falámos de copos, de jantares e de caminhadas, de amores antigos e efémeros, de sonhos lindos reduzidos a pó e da nossa cidade.

 

Sabem?! Quase sempre se pensa na cidade em que se nasceu e cresceu como se fosse uma pessoa. E então, à distância da saudade, dizemos-lhe só em pensamento que temos que marcar também um encontro qualquer, como este de dois velhos amigos que o tempo apartou. “Olha, e se bebêssemos um copo um dia destes?!”

 

Não sei bem qual vai ser a minha primeira leitura da face de Aveiro quando a vir pela primeira vez em muito tempo, aproveitando a permissão britânica para realizar viagens a Portugal sem quarentena obrigatória no regresso. Talvez algumas rugas também e adivinho que alguma maquilhagem a disfarçá-las. Sei que a vou abraçar no primeiro momento e se ela me perguntar como estou responderei como a um velho amigo.

 

– Estou fixe! Só com saudades.

 

* O Ivar Corceiro é um entre muitos aveirenses que vive fora do país. Escreve regularmente sobre esta experiência de ver “Aveiro por um canudo”

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