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Viagens na nossa terra: Não deixes para o carro o que podes fazer de bicicleta

Roteiro

Lá está ele, o carro, parado à porta do café – é fatal como o destino. Mora na mesma rua que eu mas apesar de a pastelaria onde vai ler o jornal não ficar a mais de duzentos metros de distância da sua casa, é a bordo do seu automóvel que invariavelmente se faz transportar até lá.

Certo dia, eu, que também frequento o mesmo café para comprar pão ou passar os olhos pelos jornais do dia, dei-me ao trabalho de cronometrar a pequena viagem: quatro minutos e vinte e nove segundos a pé, um minuto e cinquenta e dois segundos de bicicleta, em ambos os casos sem forçar o ritmo.

Uma das coisas de que mais gosto quando me vou abastecer de pão da avó ou saber os resultados da bola é passar por uma fiada de jasmim à margem da estrada, cujas flores, na Primavera, exalam um aroma de tal forma inebriante que me fazem abrandar o passo para gozar aquele deleite olfativo por mais tempo. Fazer o caminho a pé permite-me dar os “bons dias” a alguns vizinhos e, fruto da repetição do trajecto, saber exactamente em que casas os cães vão ladrar à minha passagem – há um que nunca falha, uma miniatura de quatro patas de uma fiabilidade à prova de bala. Na paragem do autocarro são colados cartazes a anunciar arraiais, festivais da sopa e outros acontecimentos importantes, utilidades que me escapariam se subisse a rua ao volante.

Seja por preguiça, comodismo, falta de hábito ou simplesmente por uma mentalidade errada, vezes de mais optamos pelo carro sem verdadeira necessidade. As coisas estão a mudar, mas ainda não o suficiente.

É um sábado de Outono e tenho coisas para tratar em Aveiro. Moro na periferia da cidade mas decido não sucumbir ao chamamento da máquina de uma tonelada que tenho na garagem e opto pela bicicleta. O dono da Ror de Livros anuncia os novos livros com publicações regulares no Facebook e quando algum me interessa peço-lhe que mo reserve. Foi o que fiz durante a semana e quero ir recolhê-lo. A Ror de Livros abre às 10h00. Combinei também encontrar-me com o responsável da Visgarolho para que me entregue uma das últimas obras publicadas por esta pequena editora local, “Sombras na raia”, que quero oferecer num aniversário. Às 10h30 no largo da estação.

São os dois pretextos que tenho para ir ao centro. Visto uma roupa confortável, ponho a mochila às costas e arranco. São 9h35 e mesmo sem sol o tempo está convidativo. Levo comigo um leitor MP3 e como faço em todas as ocasiões selecciono o modo aleatório. No entanto, “On the turning away” é sempre a primeira canção debitada e nunca qualquer outra das 426 músicas gravadas no aparelho.

É então ao som de Pink Floyd que me faço ao caminho. Os Passadiços de Esgueira, um trilho pedonal e ciclável que acompanha a ria, é o trajecto que escolho para me dirigir a Aveiro. Entro nessa via no Vale Ratinhas (sim, é mesmo esse o nome) e até à ribeira de Esgueira cruzo-me com 18 pessoas, entre elas duas crianças de bicicleta, e cinco cães levados pela trela.

Um nevoeiro pardacento e persistente impede-me de vislumbrar a silhueta de Aveiro. Em dias limpos a cidade divisa-se à distância, com o recorte nítido das suas construções, destacando-se o abominável prédio da Segurança Social – na minha cidade ideal seria o primeiro a ir abaixo, mas longe de ser o único. No cais da ribeira de Esgueira uns homens trabalham no pequeno edifício de madeira que foi construído há vários anos mas que nunca foi ocupado, fazendo acreditar que a esplanada anunciada para o local estará para breve, com vistas privilegiadas para a laguna.

Nas águas da ria meia-dúzia de patos seguem na mesma direcção que eu, em fila. Abandono a estrada alcatroada e corto à direita, para um estradão de terra batida ensanduichado pela A25 à sua esquerda e pelo ramal ferroviário que serve o porto à sua direita. É um instante até chegar ao Canal de São Roque, não sem antes, junto a um pequeno túnel por baixo da A25, passar pela parte inferior de um veículo que, com as suas grandes lagartas, deverá ter sido uma escavadora nos seus melhores dias mas que faz também lembrar um tanque de guerra. A carcaça parece completamente abandonada e esquecida na margem da ria, constituindo uma nódoa evitável na paisagem.

Do Canal de São Roque, onde já várias pessoas fazem as suas corridas ou caminhadas matinais, sigo até às vizinhas Barrocas e daí rumo à Avenida Dr. Lourenço Peixinho. Há pouco trânsito nas ruas e a circulação é fácil, mas a verdade é que, em dias de semana, a convivência com os automóveis pode ser atribulada, desde logo porque são ainda poucos os corredores destinados à bicicleta – as ruas foram criadas para os carros e essa é uma regra difícil de corrigir.

São 10h10 quando chego à Rua Senhor dos Aflitos, morada da Ror de Livros, ao fim de uma viagem em que imprimi sempre um ritmo descontraído de passeio. Tomo um café numa esplanada que não pode ser mais pequena – tem uma mesa - antes de ir recolher a minha encomenda. O dono do alfarrabista fala com um cliente ao mesmo tempo que tenta dar ordem a vários montes de livros empilhados uns sobre os outros, as mais recentes aquisições do pequeno mas magnífico estabelecimento.

Com o livro acondicionado na mochila, volto a montar na bicicleta para uma curta deslocação até à praça fronteira à estação, onde alguns turistas se fazem fotografar junto aos painéis de azulejo da velha gare, recentemente recuperada. Rapidamente chega o homem da Visgarolho, passando-me para a mão o livro que lhe encomendara. Num ápice adiciono dois novos livros à minha colecção (embora um deles provisoriamente, porque vai ser oferecido) e é feliz por esse facto que dou início à viagem de regresso a casa.

Sigo pela Rua Almirante Cândido dos Reis, com alguns belos edifícios em muito mau estado, incluindo uma casa com pormenores Arte Nova. Mesmo no final da rua passo pela Casa da Bicicleta, a sede da associação Ciclaveiro.

Uma das vantagens de andar a pé e de bicicleta é termos uma proximidade muito maior com o mosaico de pequenas lojas da cidade. O mau hábito de quase só comprarmos batatas, camisolas e shampôs nas grandes superfícies impede-nos de conhecer, e ajudar, os pequenos espaços comerciais que resistem nas ruas. O comércio de bairro é uma riqueza que todos devíamos contribuir para que não definhe ou mesmo desapareça.

Nesta minha deambulação de sábado passei por uma profusão de lojas: oficinas de restauro de móveis, cabeleireiros, cafés, restaurantes, manicures, lojas de material electrónico, boutiques de roupa em segunda mão, tipografias. Muitas destas lojas nem sonhamos que existem, o que é verdadeiramente triste. Perdem eles e perdemos nós.

Não comprimidos dentro de um automóvel é também a maneira mais eficaz de conhecermos as chagas urbanas de cada cidade: passeios em mau estado, casas em ruína e outros problemas que nos passam despercebidos.

No caminho de regresso sou responsável pelo ataque de pânico de uma transeunte. A mulher segue à minha frente de tal maneira absorta nos seus pensamentos que não se apercebe da minha aproximação. No momento em que a alcanço e ultrapasso, dá um salto desajeitado e lança para o ar uma das mais belas palavras do nosso léxico, começada por f. Sinto uma pontada de culpa e esboço um gesto com a mão em jeito de acto de contrição, esperando que recupere rapidamente os batimentos cardíacos normais.

Faço o caminho inverso rumo a casa mas desta vez com um pequeno desvio até ao Parque Aventura, onde descanso por cinco minutos antes de me dirigir novamente ao cais da ribeira de Esgueira. Mesmo à entrada dos passadiços dois senhores de fato e gravata convidam os passantes para um “Curso Bíblico Gratuito”, aprumados e formais como bons emissários do altíssimo; ao lado, um homem faz flexões, compenetrado no exercício e indiferente ao chamamento divino.

Mesmo à saída do Vale Ratinhas o caminho de terra batida e gravilha inclina-se numa ladeira com uns 50 metros de extensão e é esse o único momento em que desmonto da bicicleta. Já percorri essa pequena subida inúmeras vezes em cima da minha companheira de duas rodas, mas desta vez opto por não fazer esse esforço. Com excepção desse curto troço, faço todo o restante percurso sem dar parte de fraco e até quase sem levantar o rabo do selim, beneficiando da planura da cidade e dos seus arredores.

Cruzo a porta de casa às 11h05 sem o mínimo arrependimento de ter escolhido a bicicleta ao invés do carro para os meus afazeres de sábado de manhã. Fiz exercício, não gastei gasolina, não perdi tempo, paciência e energia à procura de estacionamento, não lancei gases nocivos para a atmosfera – e senti uma ligação à cidade mais real do que no interior de um grande invólucro de metal. Uma bela manhã.

Ninguém perguntou mas o livro que fui recolher à Ror de Livros chama-se “A de açor”, foi escrito por Helen Macdonald e é uma obra maravilhosa. Não quero roubar à Filipa Magalhães o lugar de crítica literária da Aveiro Mag, mas se ela me permitir uma breve incursão pelo seu departamento deixo a sugestão: leiam-no.

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