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Bernardo Conde: O “eremita” que virou cidadão do mundo

Sociedade

Há conversas que apetece muito ter. Principalmente quando se sabe que, do outro lado, há um mundo de histórias por contar e partilhar. De mundos em que a grande parte de nós, só ouve falar e que só em sonhos ousa pensar visitar.

Esta é, então, a “estória” feliz de um menino, com “três vezes quinze anos de idade”, que por ser demasiado introvertido, era conhecido na sua adolescência como o “eremita”, não se estranhando, em teoria, que nos habituais testes psicotécnicos do secundário, tenha sido “diagnosticado” como alguém que nunca poderia trabalhar com pessoas. Mas só na teoria, porque, na prática, Bernardo Conde é alguém que só quer “trabalhar para as pessoas”; alguém que, pela sua enorme dimensão humana, sente falta de um avô que não de sangue, e paga os estudos de uma menina de Madagáscar que, na pobreza, nos ensina a todos o que é verdadeiramente partilhar.

Esta é, de novo, muito da “estória” de Bernardo, um aveirense com espírito de cidadão do mundo.

Quando for grande quero ser… Fotógrafo de viagens? Era isto?

Fui uma criança com uma ligação muito forte à natureza, isso é certo. E, agora que falamos nisso, se calhar os meus primeiros nove anos de vida, em que morei na Praia da Barra, tiveram muita influência naquilo que sou hoje. Tive uma infância muito perto da natureza, perto da ria, de explorar a natureza, de apanhar bichos, fazer casas no meio do mato, de brincar com o arco e flecha, de ir para a ria pescar com os meus amigos e fazer “tainadas” de marisco como se fossemos adultos. Foi o primeiro passo, sem dúvida, na construção daquilo que sou hoje.

Há mais passos então…

Sim, há alguns, sem dúvida. Aos 12 anos, entre para os escuteiros, em Esgueira, para onde, entretanto, tinha ido morar. A ideia dos meus pais foi que eu começasse a socializar porque, ao longo da minha vida e até bem longe na adolescência, era chamado de “eremita”, devido a essas dificuldades em falar com as pessoas, em abrir-me para o mundo. Os escuteiros foram muito importantes, direta ou indiretamente, em algumas fases e decisões da minha vida. Uma das “ferramentas” que me deram foi, sem dúvida, este gosto de pegar na mochila e andar pela natureza durantes alguns dias. Essa liberdade de ir. A mesma liberdade que me foi demonstrada quando eu fiz o caminho francês de Santiago, durante 29 dias, e encontrei o senhor Gilbert, de 75 anos, que um dia bateu com a porta de casa e disse até já à família. Quando fazes algo assim, não tens vontade de parar.

Ser chamado de “eremita” é muito estranho…

Se calhar até não, eu também disfarço bem! Mas sim, na altura, tinha essa particularidade. Nos habituais testes psicotécnicos no secundário os resultados sobre mim eram claros: que nunca iria trabalhar com pessoas. Por um lado, até está certo, porque eu não trabalho com pessoas, trabalho para as pessoas! Mas essa capacidade de interagir e falar, surgiu, sobretudo, quando entrei no Ensino Superior, em Vila Real, em Engenharia do Ambiente.

A ida para a universidade foi sempre um plano?

Se calhar o Ensino Superior era uma questão de piloto automático, mas Vila Real muda a minha vida na questão da socialização. Esse longo caminho de ter de me desenrascar e tomar conta da minha vida foi um bom passo e gostei, sobretudo, porque não era uma universidade muito grande e toda a gente se conhecia, uma espécie de espírito de aldeia, de as pessoas irem todas ao mesmo sítio, mas sem aquele negativismo da cusquice. Era possível conversar com as pessoas, o que nem sempre é fácil. As cidades tornaram-se em espaços pouco humanos, porque vivemos sob uma linha de desconfiança e desconforto quando temos de falar com estranhos. Em que quem aborda pode ser um predador.

Curso tirado e a entrada no mercado de trabalho. Foi desafiante?

Ao longo desse processo aconteceram coisas muito importantes que me trouxeram ao que sou hoje. Um desses episódios aconteceu quando estava a realizar um estudo de impacto ambiental para uma obra de grande envergadura. Andava pela serra e, de repente, apareceu um rebanho de ovelhas e eu parei o jipe. Nessa altura surgiu-me uma cabeça dentro da janela, a agradecer-me ter parado. Era o senhor Adelino! E eu, meio espantado, disse algumas palavras e segui viagem. Mas aquela cara, aquela expressão, não me largou e voltei para trás, para lhe pedir que me deixasse fotografá-lo. Gerou-se ali uma conversa, porque ele não queria, não estava vestido para essa ocasião, e eu fui falando e lá o convenci. Tirei, em digital, mostrei-lhe e ele diz: “está a ser tão meu amigo” e depois arrumou-me com um “venha-me ver mais vezes”. Nesse momento senti, de vez, que a fotografia pode ser uma ferramenta brutal de criar elos, de aumentar autoestima, de incorporar. Fui vê-lo, claro, e o senhor Adelino tornou-se como que meu avô até falecer, há três anos. Foi um dos momentos-chave para me aproximar das pessoas e interagir com elas.

A fotografia fez sempre parte da tua vida?

Desde cedo. A minha primeira aula de fotografia foi aos 9 anos, pelo meu pai, que me deu um conselho importante: “Quando tirares fotos, mete sempre o sol atrás das costas”. Depois, aos 15, o meu chefe nos escuteiros, numa saída para o Caramulinho, pôs-me uma máquina reflex nas mãos e desafiou-me para fazer a “reportagem”. As coisas foram acontecendo de uma forma natural, como a construção de um puzzle, peça a peça. Também foi nos escuteiros que fiz o meu primeiro workshop e foi nessa altura que percebi que o meu futuro iria ser trabalhar para as pessoas. Em 2007, criei os Trilhos da Terra como uma atividade profissional complementar, sem ter a noção clara que estava a ser o meu plano de vida.

Foi um projeto que saiu do nada, como um pequeno ser a ganhar vida?

Comecei na cave da minha casa, montei uma mini-galeria e iniciei os meus workshops, que trouxeram consistência ao projeto, mesmo que sendo apenas com pessoas fora de Aveiro. Tinha um blog e o crescimento do Facebook como ferramenta de divulgação também foi fundamental para o projeto. Em 2010, comecei a fazer lá em casa as tertúlias de viagem, que fizeram com que os Trilhos ganhassem uma dimensão cultural ligada ao tema. Fazíamos também projeções de documentários e filmes e foi-se criando uma comunidade em volta da viagem e da fotografia e imagem.

Mas daí às expedições, foi preciso muito investimento pessoal?

Foi sobretudo o aproveitar de vários momentos. Na altura, trabalhava na Santa Casa da Misericórdia, em Oliveirinha, no lugar da Moita, num complexo social que tem uma área de mata de quinze hectares, um pulmão verde ainda preservado. Na altura, o doutor Amaro Neves estava em busca de alguém que dinamizasse aquele espaço. Fui à entrevista, apresentei um pré-projeto, e desenvolvi um processo de candidatura ao quadro comunitário, mas já na reta final do mesmo. Quando o projeto é submetido, em 2004, no valor 1 milhão e 200 mil euros, já não havia dinheiro. Apesar de todo o trabalho e de alguns avanços que se chegaram a fazer, uns anos mais tarde, o projeto nunca se chegou a efetivar. Em 2012, senti que não estava completamente realizado e, no final do ano, candidatei-me à Nomad, a conselho de um amigo e chefe dos escuteiros, o Zé.

Foi aí que se deu a entrada na Nomad?

Não foi. Quando fui chamado uns meses depois para a entrevista, fui lá só dizer que tinha dado a palavra a outra empresa do mesmo ramo, a Foto Adrenalina, com quem colaborei dois anos. Só que depois saí e nessa altura, sensivelmente, a Nomad voltou a contactar-me, porque ainda não tinha concluído o processo de recrutamento. Pediram-me dois destinos. Sugeri Bangladeche e Madagáscar, e deram-me este último.

Porquê Madagáscar? É um destino um bocadinho atípico…

Madagáscar porque, no 11.º ano, num dos testes de inglês, tínhamos de fazer uma composição e eu fiz sobre um cientista russo que se perdeu no meio da floresta de Madagáscar e que só foi encontrado uns anos mais tarde, vestido com um fato cheio de penas. Isso nunca me saiu da cabeça. E por toda a biodiversidade. era um dos meus ícones. Bangladeche pela dimensão humana que poderia ter, sendo um país com uma narrativa paralela à Índia. No limite, também porque os dois países estão no top dos mais pobres do mundo e, se fôssemos para lá, iríamos trazer um impacto económico positivo.

Foi nessa altura que decidiste fazer disso vida? Deixar de acumular?

Não foi exatamente nessa altura, mas quase. Na Nomad um dos responsáveis fazia a Mongólia e decidiu que queria deixar. Então perguntaram-me se estaria interessado em acumular com Madagáscar e Islândia. Eu achava que com dois países, conseguiria ir resolvendo com as minhas férias no trabalho, mas três era impossível. Foi uma decisão difícil, mas senti que seria uma boa oportunidade. Mais uma possibilidade de trabalhar para pessoas. Proporcionar às pessoas experiências pessoais em ambientes únicos.

Que histórias trazes de Madagáscar? Tens alguma que te tenha marcado muito?

Tenho, claro, uma que trago comigo todos os dias. Em Madagáscar há uma linha de comboio, de 170 quilómetros que atravessa 16 aldeias. Quando o comboio pára os habitantes locais chegam para tentar fazer negócio. Num desses dias, uma menina de sete anos, com o irmão mais pequeno às costas, fica ao meu lado. Eu estava a comer uns biscoitos e ia-lhe dando uns bocadinhos, e ela guardava no bolso. Já quase a ir embora meti-lhe os dois últimos no bolso. E ela foi embora e começou a partilhar o que eu lhe tinha dado com todos os outros meninos. Ela, que era pobre, em vez de ficar com aquilo para ela e para a família, foi dividir com todos os outros meninos como ela.

Um ano depois, a experiência repetiu-se e eu decidi que era o momento certo de tentar fazer a diferença. Isto foi em 2015 e 2016. Em 2017 não a vi e tendo-a procurado, não encontrei. No ano a seguir ela não estava, paguei a uma senhora para ir à procura dela. Com a ajuda do revisor do comboio, expliquei à família que a queria ajudar a ter um futuro melhor e, desde então, também com o apoio de um amigo de lá, deposito dinheiro todos os meses numa conta que o pai abriu (e para o fazer teve de fazer 80 quilómetros).

O que torna as coisas mais prementes é que, nesse dia em que falei com a família, caí do comboio abaixo uns quilómetros mais à frente. Estava a tirar fotos da parte de fora, como fiz tantas e tantas vezes, e o comboio sofreu um sobressalto, também normal, mas que me apanhou desprevenido.

A conversa já vai longa, e para terminar, um dos projetos de uma vida. O Exodus Aveiro Fest, o Festival Internacional de Fotografia e Vídeo de Viagem e Aventura que já é uma referência mundial. Conta só um bocadinho…

Desafiei o Pedro Cerqueira e Gonçalo Figueiredo a organizar um evento que colocasse a cidade na rota dos festivais internacionais de fotografia, sem imaginar que logo no primeiro ano a National Geographic se quisesse tornar nossa parceira. Tem sido um percurso muito positivo. Temos trazido a Aveiro os principais nomes da fotografia e vídeo de viagem e aventura e, nesta edição, a 27 e 28 de novembro, vamos ter nomes fortíssimos, que já foram prémios Pulitzer, e que vêm porque já sabem que este é um festival diferenciado.

Em 2019, quando fui buscar três oradores ao aeroporto, eles perguntaram o que é que podiam esperar do evento. E eu disse-lhes que temos o melhor público do mundo. E um deles no final veio ter comigo a dizer que era bem verdade. Concordou. É um festival de fotografia que não é só para fotógrafos, mas para toda a gente. Eles vêm contar histórias. Vêm falar do mundo, que é um local brutal, porque mais que colecionar dinheiro, vais colecionar experiências e vivências, vais valorizar a experiência. Eles inspiram-te a conhecer sítios, nem que seja conhecer verdadeiramente o teu bairro e, acima de tudo, abrires-te à condição humana.

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