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Ensaio sobre a Liberdade e o cego que não viu Abril

Opinião

Sempre foi inquieto.

Fez a instrução primária na carteira da frente. Junto a uma janela para ter mais luz, por vezes reforçada, a luz, com um pequeno mas eficaz candeeiro ligado uma ficha esquecida na parede.

O contraste do branco do giz com a ardósia negra ajudava. Não evitava, porém, que o professor ditasse o que não conseguia ver.

Via o futuro com mais nitidez que o presente.

Atento e consciente, o professor, disse-lhe

- “Ruma a Lisboa... Ruma a Lisboa”.

Anos depois, outro ser decidido e obstinado também rumaria a Lisboa partindo não de Aveiro mas de Santarém.

 

Lisboa 24 de Abril de Abril de 1974 (noite)

O Zé Vermelho de comunista de Peniche, o Luís Pinão de Condeixa e o Diamantino, mais conhecido por galo, obviamente de Barcelos, escutavam sempre que possível a rádio Voz da Liberdade, emitida da Argélia, e nos últimos dias a voz de Manuel Alegre chegava e ecoava na minúscula camarata, distorcida apenas por um sinal hertziano emitido pela PIDE.

Descobriram que, mergulhada a antena do recetor num cúmplice copo de água, melhorava a audição já de si amplificada pelo simples facto de serem todos cegos.

Àquela hora, o Lar da Boa Hora estava um pouco mais agitado do que o costume porque nas paredes vazias ecoava a esperança de um Portugal libertado das amarras do regime.

 

Lisboa 24 de Abril - Lar da Boa Hora 22h55

Escutavam agora o Rádio Clube Português. Passava a balada de Paulo de Carvalho, “E depois do adeus”. Estavam longe de pensar que aquele momento seria a senha para a Liberdade.

Minutos depois. Impossíveis de contar.

Ouviu-se - "Aqui, Movimento das Forças Armadas... apelamos a todos os cidadãos que se mantenham em casa porque está em curso um golpe de estado em território nacional".

Nunca foram de regras.

O ímpeto da adolescência e uma crescente curiosidade, desenhava uma noite em branco. Não de insónias, mas de esperança.

Não fizeram grandes planos e se nunca se escudaram na falta de visão, não iria ser agora.

 

Lisboa 25 de Abril de 1974 (manhã)

O Batista vigilante desatento, não os viu sair.

A Deolinda encarregada do lar, chamada carinhosamente de Bispo Negro, pela altivez e uniforme negro de viuvez, saciava a vontade com o Oliveira e o Abílio.

Mas sendo mulher de respeito, saciava-se só com um de cada vez.

Também não os viu a sair.

Rotinas.

Apanharam o 18 na Rua Aliança Operária com destino ao Conde Barão e subiram depois a Travessa das Gaivotas na direção da Calçada do Combro.

O som era nesse dia ainda mais vibrante e os bons dias eram agora substituídos por vivas à Liberdade.

A fome apertou, e dos bolsos vazios saíram senhas de refeição. O restaurante Príncipe do Calhariz, junto ao Largo do Camões, recebia-os com o bitoque do costume. Com ovo a cavalo.

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Já a essa hora se contava pelas ruas que as balas foram trocadas por cravos vermelhos.

Seguiram a multidão que continuava a crescer e saíram do Largo do Camões, subindo a rua da Misericórdia na direção do Carmo.

Já no Largo sentiram-se pela primeira vez um pouco perdidos.

Encontraram-se na amabilidade da dona Lurdes e da sua varanda do primeiro esquerdo.

Assistiriam à revolução num primeiro balcão.

Ouviram que o povo unido jamais seria vencido.

Ouviram a voz do Salgueiro Maia e o feedback do seu megafone.

Ouviram o ranger do ferro do portão do Quartel do Carmo.

Tremeram quando avançou o primeiro tanque.

Baixaram-se por instinto quando escutaram uma rajada de metralhadora que o imortal Maia rapidamente silenciou.

Depois, não sabem bem o que aconteceu, mas ouviram dizer que para o poder não cair na rua, Marcelo Caetano o entregou nas mãos do general Spínola.

Antes de descerem, beberam limonada, que estava doce, com o futuro que se avizinhava.

Em breve, dariam pela falta dos quatro no Lar da Boa Hora e a Deolinda não era tão meiga com eles como com o Oliveira e o Abílio.

Pelo caminho, alguém o agarrou.

Tocaram-se lábios. Não sentindo um bigode, imaginou-a ruiva, voluptuosa e de pele clara.

Anos mais tarde, outro Jorge cantaria que a "Liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo".

Existem histórias assim.

Esta é do meu amigo Jorge. Que é Anjos de apelido, apesar da costela de demónio.

Jorge Anjos...  o cego que não viu Abril.

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