Hugo Branco é um músico e designer de som apaixonado por viagens, que se fixou em Aveiro para transformar a antiga casa do avô – o cineasta, pintor, ceramista e escritor aveirense Vasco Branco – numa guesthouse temática, residência artística e polo cultural. Quatro anos depois, e a juntar às dezenas de iniciativas que tem vindo a promover naquele espaço, Hugo prepara-se para lançar um novo projeto na VIC // Aveiro Arts House: uma editora.
Ao passar pelo número 14 da rua do Príncipe Perfeito, em Aveiro, dificilmente ficará alheio às cerâmicas coloridas que ornamentam a fachada daquele edifício. Foi naquela casa que viveu Vasco Branco - um dos mais queridos e multifacetados artistas aveirenses - e àquela casa que Hugo Branco, seu neto, voltava de cada vez que viajava do Porto, onde morava com a mãe, para visitar os avós.
Aos 42 anos, Hugo Branco guarda boas memórias de uma infância que, apesar de dividida entre o Porto e Aveiro, sempre contou com uma presença assídua dos avós. Há recordações de passeios de bicicleta pela cidade, filmes – “às vezes, três por dia” – que viam em conjunto ou histórias que partilhavam e que, ainda hoje, exercem sobre Hugo uma influência ímpar.
Por exemplo, ninguém tinha tanto sucesso na missão de fazer com que Hugo comesse sopa como o avô Vasco. “Ele contava-me histórias com personagens inventadas por ele, uma mistura de James Bond e Indiana Jones”. A história desenrolava-se ao ritmo da refeição e Vasco tinha um talento especial para fazer render a narrativa. “, o herói saltava de avião e aterrava no deserto do Sahara. Então, eu terminava de comer a sopa e já só ouvia o resto da história na refeição seguinte, com novo prato cheio. Estava sempre à espera que chegasse a hora da sopa para ouvir a continuação das histórias”, recorda Hugo.
Com uma artimanha semelhante à de Xerazade, o avô Vasco conquistou seguramente bem mais de mil e uma colheres de sopa bem nutridas e – isso é certo – uma vida inteira de admiração por parte do neto.
Hugo via os avós, simultaneamente, como uns “segundos pais” e uns “bons amigos”, e mantinha com ambos uma relação de grande proximidade e carinho.
Viajar demoradamente e ouvir as paisagens
Quando Vasco Branco viajava para o estrangeiro no âmbito de um qualquer festival de cinema ou exposição de arte, era comum a família acompanhá-lo. O jovem Hugo chegou a participar nalgumas dessas viagens Europa fora, sempre de carro – a esposa de Vasco, avó de Hugo, recusava-se a voar –, e há vários momentos que ficaram marcados.
Hugo conta que, não raras vezes, ele e o avô acabavam juntos, a vaguear por cidades como Paris ou Amesterdão, enquanto admiravam paisagens, exploravam recantos e conheciam pessoas. A cada passo, criavam um roteiro só deles, inédito e irrepetível.
É bem possível que estes passeios inspiradores na companhia do avô tenham ajudado a despertar a paixão de Hugo pelas viagens. E é provável que tenha sido este gosto por viajar devagar, sem mapas, sem rumos, e investindo sempre o tempo necessário na descoberta de cada sítio, a fazer com que Hugo criasse o projeto SoundEscapes.
O pressuposto do SoundEscapes é simples: perceber o que caracteriza um lugar em termos de sons, recolher amostras de áudio e, com o arquivo recolhido, construir uma performance sonora que retrate aquela paragem.
Hugo explica que as peças eram publicadas acompanhadas de um relato escrito e de uma seleção de fotografias, mas que era o som a desempenhar o principal papel.
O SoundEscapes arrancou com um retrato sonoro do Porto; mais tarde, levou Hugo Branco para o outro lado do oceano, para a cidade mexicana de Tulum, no Mar das Caraíbas; e, apesar de ter sido interrompido no final de 2015 com um regresso algo inesperado a Portugal, continua a ser um dos projetos pessoais que mais fascina o designer de som e um dos que espera, no futuro, poder retomar.
No entanto, por ora, o futuro passa por Aveiro, e por aquele que, provavelmente, é o projeto da sua vida.
Aveiro: cidade e cultura
Além do México, Hugo já tinha vivido em Londres, Barcelona (onde fez o Mestrado em artes digitais) ou Granada, bem como na bem portuguesa aldeia de Usseira, no concelho de Óbidos, esta última num período em que deu aulas na ESAD – Escola Superior de Artes e Design – das Caldas da Rainha.
À primeira vista poder-se-á pensar que, para alguém que gosta tanto de viajar e a quem a exploração de novos lugares dá tanto prazer, terá sido difícil assentar arraiais em Aveiro. Porém, segundo o próprio, não foi. “Há quatro anos que estou aqui e, por vezes, quem me dera ter um segundo para me aborrecer”, garante, em entrevista à Aveiro Mag.
Aveiro agrada-lhe por ser “uma cidade arejada”, “com muito céu”, que está integrada numa região toda ela “intimamente ligada à água” e onde “a pé ou de bicicleta chega-se a qualquer lado facilmente”. Além disso, cativa-o “a dimensão humana da cidade”. “Encontrei em Aveiro muito mais gente do que esperava com quem colaboro a nível profissional, mas também me dou a nível pessoal, partilho o meu tempo, as minhas ideias e os meus sonhos”, afirma.
Apesar de ter começado por estudar Filosofia, há muito que Hugo está ligado ao mundo das artes e da cultura. Durante anos, era a ele que os amigos recorriam sempre que queriam saber o que se ia passar. Fazendo jus a essa fama, e em conjunto com Tiago Abelha, criou a Viral Agenda, uma plataforma digital de reunião e divulgação de eventos culturais, artísticos e de entretenimento, que chegou a arrecadar prémios internacionais de design, inovação e empreendedorismo.
Em Aveiro, Hugo tem notado uma evolução positiva na relação da cidade com a cultura e dos vários agentes culturais uns com os outros. “Apesar de ainda haver quem continue a reger-se por esse princípio antiquado da competição, Aveiro está mais aberta à colaboração do que alguma vez esteve. Há um sentimento de união e partilha de recursos e informação, entreajuda e boa-vontade que é essencial em qualquer cidade”, considera Hugo Branco.
Na sua opinião, a candidatura de Aveiro a Capital Europeia da Cultura em 2027 pode vir reforçar ainda mais esse sentimento. Afinal, “uma Capital Europeia da Cultura faz-se através das instituições, mas faz-se também (e, muitas vezes, sobretudo) através de pequenas iniciativas e da malha que tecem entre si”, reitera.
Transformar a antiga casa de um artista aveirense na Casa das Artes de Aveiro
Com o avançar da idade, Vasco e a esposa acabaram por mudar-se para o Porto, uma forma de estarem mais próximos dos filhos e dos cuidados de saúde necessários ao seu bem-estar. No entanto, com esta mudança, a casa de Aveiro – a mesma à qual, na infância, Hugo voltava a cada visita aos avós - tornou-se um encargo cada vez mais pesado para as contas da família. A única solução parecia a venda do imóvel.
Mas Hugo tinha uma ideia melhor: desenvolver um plano criativo para dar novo fôlego à casa, preservar a memória, o espírito e o património dos avós, e torná-la, de alguma forma, sustentável.
Em meia dúzia de meses, e depois de muito trabalho, nascia a VIC // Aveiro Arts House.
E se este novo projeto começou por ser uma guesthouse temática, em que cada quarto celebrava uma das artes de Vasco Branco, rapidamente outros espaços foram abertos e outras valências recuperadas: há um andar dedicado a projetos de residência artística, um auditório – outrora clandestino e ponto de encontro de opositores à ditadura – onde organizam concertos de artistas emergentes, noite literárias, exibições de filmes e performances, uma biblioteca e uma galeria de arte.
Hoje, a VIC promove um clima experimental e um cruzamento entre artistas nacionais e internacionais, hóspedes de todos os cantos do mundo e a comunidade aveirense. No fundo, acabou por devolver-se à casa o espírito e a dinâmica originais que Vasco Branco sempre lhe procurou conferir.
Para Hugo, “uma das grandes vitórias do projeto” foi a aprovação da avó ao visitar o espaço renovado. “Eu vi bem como lhe brilharam os olhos quando viu as coisas bonitas, a atenção aos detalhes, pessoas a entrar e a sair como sempre tinha sido na altura deles”, lembra Hugo, acrescentando que a felicidade da avó ao ler os comentários dos primeiros hóspedes “deu-lhe vida”. “Não há nada que me pudesse deixar mais satisfeito”, reconhece o neto.
Com a opinião do avô, Hugo já não pôde contar. Vasco Branco tinha falecido em 2014, dois anos antes de o neto se ter aventurado neste projeto. Mas Hugo acredita que o avô estaria muito feliz. “Além da obra física, estamos a preservar o espírito dele e a maneira que ele tinha de viver e de se relacionar”, sublinha.
Uma nova editora
“Não fazia ideia que isto podia ganhar a dimensão que hoje em dia já vai tendo”, admite Hugo, lembrando que o objetivo primordial era “salvar a casa”.
A verdade é que o projeto acabou por transformar-se em algo muito mais amplo e abrangente do que Hugo alguma vez imaginou e isso sente-se até ao nível do seu trabalho criativo pessoal. “Sinto que o meu trabalho artístico tem sido mais valorizado e reconhecido por aparecer associado a uma plataforma como a VIC // Aveiro Arts House”, admite Hugo Branco.
Hugo Branco foi DJ durante mais de 20 anos, mas, desde 2017, tem-se dedicado sobretudo à sonorização, sonoplastia e criação de bandas sonoras para artes performativas e instalações sonoras, experiência que o tem levado a vários palcos.
Foto: Joana Magalhães
Agora, o desafio a que se propõe é criar uma editora de música e outros conteúdos audiovisuais associada à VIC. Vai chamar-se VIC NIC e promete estrear-se no início de 2021 com o lançamento de uma “compilação internacional de artistas que atuaram no auditório da VIC” em disco.
Da palavra - escrita ou falada – ao som, passando pelas viagens e até pela gastronomia (apaixonado por cozinha, chegou a ter um projeto chamado Pratos com Pratos que aliava a culinária à música), Hugo tem uma versatilidade artística comparável à do avô, de quem assume ter herdado a alma irrequieta e a curiosidade aguçada. “Somos gente que gosta muito de viver e, por isso, trata de absorver a vida de vários pontos de vista e através de várias práticas diferentes. Ambos temos uma grande sede de saber e de experimentar”.