A Milha – Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo – está de regresso a Ílhavo e à Gafanha da Nazaré entre os dias 30 de outubro e 1 de novembro, para uma edição especial adaptada ao novo contexto de pandemia. Neste fim de semana, o evento mantém o formato de festival, mas prolonga-se um pouco por todo o trimestre.
Nesta quarta edição do festival, o mote é o nevoeiro ilhavense, aquele fenómeno místico ao amanhecer, característico de um território rasgado por dois dos principais braços da ria de Aveiro.
Como é habitual, além de apresentarem os seus projetos, os artistas locais são convidados a trabalhar diretamente com criadores externos que trazem novas referências e desafios para os músicos ilhavenses. Este ano, os destaques vão para a estreia de duas criações exclusivas e para o documentário da Bida Airada.
“A ria gela a partir das margens”
Este é o nome de uma criação do coreógrafo Luíz Antunes que junta dez bailarinos de três escolas ilhavenses – a Casa do Povo da Gafanha da Nazaré, a FulldanceStudio e a IP Arabesque. Desde junho, o grupo juntou-se em três residências artísticas que culminam agora numa apresentação em dose dupla na Casa da Cultura de Ílhavo.
“Não sendo eu de Ílhavo, o meu ponto de partida foram os jovens bailarinos ilhavenses e as histórias que eles me contaram sobre o município e as suas tradições”, explica Luíz Antunes. Sem querer desvendar muito mais sobre o espetáculo, o coreógrafo descreve-o como “uma fantasia de um mundo pós-apocalíptico em que eles se viam obrigados a andar pelos canais da ria, no lodo, nas dunas”.
“São pessoas que estão a lutar pela sobrevivência, a tentar encontrar-se, formar um grupo coeso e começar a viver de novo”, acrescenta Joel Reigota, designer de moda ilhavense e responsável pelos figurinos.
Se, à primeira vista, o guarda-roupa dos bailarinos aparenta ser muito semelhante e monocromático, Joel Reigota garante que todas as peças são diferentes. “São dez bailarinos e cada um tem uma peça diferente de todos os outros, havendo, ainda assim, sempre um elemento que faz a ligação com o grupo e que remete para o imaginário da ria, o movimento das ondas, a argila do lodo e os peixes”, esclarece.
Quanto à música original deste espetáculo, é da autoria de Henrique Portovedo, maestro da Orquestra Filarmónica Gafanhense, e será interpretada ao vivo por seis músicos ilhavenses de formação clássica – Maria João Balseiro, João Pedro Mendes, Carla Costeira, Ricardo Mendes, Maria Inês e José Pedro Bola.
A qualidade desta criação já levou Luís Ferreira, diretor artístico do 23 Milhas, a assumir a intenção de criar “uma companhia de dança jovem” com o objetivo de “trabalhar em parceria com estas escolas de dança, sem nunca as substituir, proporcionando momentos de formação e criando desafios de espetáculo numa lógica mais profissional para os seus melhores alunos”.
A primeira sessão d’“A ria gela a partir das margens” sobe ao palco da Casa da Cultura de Ílhavo na sexta-feira, dia 30 de outubro, às 21h30. O espetáculo terá ainda uma segunda apresentação no dia seguinte, sábado, 31 de outubro, às 17h, também na Casa da Cultura de Ílhavo.
Música para os ilhavenses do futuro
A 31 de outubro, às 21h30, a Fábrica das Ideias da Gafanha da Nazaré acolhe a performance “Música para os ilhavenses do futuro”, em que alguns músicos ilhavenses - o pianista Rui Pereira, o guitarrista Cláudio da Paula, os vocalistas Sílvia Fernandes, Andreia Alferes e Vasco Silva, e Michel Osório, na percussão – se juntam aos Sampladélicos para um espetáculo de música, imagem e celebração da memória e da tradição.
Os Sampladélicos são um duo formado por Sílvio Rosado, músico, e por Tiago Pereira, o realizador que tem vindo a desenvolver, com o Museu Marítimo de Ílhavo, a galeria de performances audiovisuais “Patrimónios Sonoros Marítimos”, no âmbito da qual tem vindo a recolher histórias, testemunhos, sons e músicas que terão surgido no contexto da pesca do bacalhau e que, neste arquivo, aparecem contadas, reproduzidas ou interpretadas por ilhavenses.
A criação de um espetáculo colaborativo a partir de casa em documentário
Desde 2012, a orquestra da Bida Airada, projeto nascido no âmbito do Rádio Faneca, junta a comunidade de Ílhavo para criar, desenvolver, ensaiar e apresentar uma performance colaborativa e identitária no palco daquele festival. Este ano, no entanto, em pleno período de confinamento, com os constrangimentos que impediam o encontro, os participantes podiam ter desmotivado e feito o projeto esmorecer. Mas não foi nada disso que aconteceu.
“Quando começámos a preparar a Bida Airada nem sequer tínhamos a certeza se íamos poder apresentá-la ao vivo”, conta Ana Bragança, da ondamarela, empresa parceira do 23 Milhas no desenvolvimento deste projeto. O que é certo é que, mesmo com receios e incertezas, a comunidade juntou-se, à distância, a partir da casa. Partilharam-se palavras, sons, imagens, pensamentos e, com esses contributos, desenvolveu-se um espetáculo colaborativo que não só orgulha quem nele participa, como aqueles que já tiveram a oportunidade de o ver em palco no festival Rádio Faneca, em julho passado.
Esta performance da Bida Airada será reposta no próximo domingo, dia 1 de novembro, na Casa da Cultura de Ílhavo, integrada na Milha. No final, será exibido um documentário resultante da recolha de imagens ao longo daquele extraordinário processo criativo.
Para Luís Ferreira, este documentário pode vir a ser uma ferramenta útil para “ajudar a perceber como é possível manter a cultura do dia-a-dia , preservando uma comunidade ativa e, salvaguardando sempre o distanciamento físico essencial, garantir proximidade social”.
Uma plataforma de apoio à criação local
Além dos espetáculos propostos, a Milha aposta igualmente em formações para os músicos profissionais e amadores locais que vão ao encontro dos seus gostos e interesses.
Assim, na manhã de sábado, os Mão Morta estarão em Ílhavo para uma sessão formativa “especialmente dedicada às bandas de rock ilhavenses” e na qual o conjunto bracarense vai partilhar algumas dinâmicas do seu processo criativo, bem como técnicas para gestão de carreira.
No domingo, é a vez do cantautor Samuel Úria orientar “uma oficina mais atenta à escrita criativa e à composição de canções”, antecipa Luís Ferreira.
Músicos ilhavenses abrem o palco para artistas nacionais e internacionais
A Milha acontece todos os anos por volta do primeiro dia de novembro, data que assinala o aniversário do músico ilhavense Carlos Paião. No entanto, este ano, não se limita a três dias de festival, prolongando-se pelos meses de outubro, novembro e dezembro.
O 23 Milhas desafiou alguns músicos ilhavenses a assegurar concertos de abertura de outros artistas, uma iniciativa que, nas palavras da organização, serve como “estímulo à criação local e à formação de novos públicos para as bandas e artistas ilhavenses” e funciona como “uma plataforma de partilha” para os músicos.
Foi já neste enquadramento que Ela Vaz abriu o concerto de Salvador Sobral e que Henrique Vilão fez a primeira parte do concerto de Noiserv. Nos meses de novembro e dezembro, os Perpétua vão abrir o concerto de André Henriques e Ricardo Filipe e Inês Filipe aquecem o palco para António Zambujo e Sílvia Pérez Cruz, respetivamente.
Cultura faz bem à saúde
“Haverá poucos lugares mais seguros para estar do que os espaços culturais”, assume Luís Ferreira, confirmando que todos os eventos ou iniciativas sobre a alçada do 23 Milhas cumprem as regras e orientações de segurança da DGS.
Num fim de semana que será marcado por limitações à circulação entre concelhos, alertam-se todas as pessoas que tenham bilhete para qualquer espetáculo da Milha e residam nos concelhos de Águeda, Albergaria-a-Velha, Anadia, Aveiro, Estarreja, Murtosa, Oliveira do Bairro, Ovar, Sever do Vouga ou Vagos, para o facto de estarem autorizadas a ir ao espetáculo. Bastará, para isso, apresentar o bilhete às forças de segurança responsáveis pelo controlo das deslocações. O mesmo se aplica às sessões de formação dinamizadas no âmbito deste festival. Esta exceção está de acordo com a alínea m) do Artigo 16.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 89-A/2020.
Numa conjuntura de crise sanitária como a que se vive, é fundamental salvaguardar a saúde de todos, evitando comportamentos de risco. Ainda assim, há igualmente que ter em consideração que “saúde não é apenas a ausência de doença, mas o bem-estar físico, psicológico e social”, como observa Luís Ferreira. E, nesse sentido, a superação pessoal, o enriquecimento cultural e o encontro comunitário em segurança desempenham papeis fundamentais na vida de qualquer pessoa.