E se lhe disséssemos que, originalmente, o fado se dançava? No próximo sábado, na Casa da Cultura de Ílhavo, a dupla Jonas & Lander apresenta Bate Fado, um espetáculo híbrido entre a dança e o concerto de música no qual os coreógrafos recuperam o ato de se “bater o fado”, uma prática baseada no sapateado e nas palmas, que nasceu nas sombras dos bordéis e tabernas da Lisboa dos finais do século XIX e inícios do século XX, e que acabaria por perder-se no tempo, censurada pela ditadura e pela Igreja.
Em conversa com a Aveiro Mag, o coreógrafo e fadista Jonas Lopes – que, com Patrick Lander, forma a dupla criadora deste espetáculo – conta que, no seguimento da investigação que serviu de base a esta performance, constatou-se que “os mais antigos e respeitados livros da história do fado referem que, antes de ser música, o fado foi uma dança”, tal como aconteceu, aliás, com outras correntes musicais urbanas como o fandango, o vira ou o samba, por exemplo. Ainda assim, refere o criador, quase toda a bibliografia existente “desenvolve muito pouco este assunto. Há muitas perguntas ainda por fazer e ainda mais respostas por dar: Como era este fado batido? Porque é que deixou de existir? O que levou à sua extinção?”.
Ora, com a escassez de registos escritos, numa era anterior ao vídeo, acabaram por ser as caricaturas a principal fonte da investigação dos coreógrafos. E, confessa Jonas, “aquilo que descobrimos espantou-nos muito”.
“Debruçámo-nos sobre os trabalhos de Bordallo Pinheiro e Leal da Câmara, que representavam o imaginário do fado espontâneo que acontecia nas tabernas, nos bordéis e nas esperas de touro”, contextos nos quais as elites ricas da sociedade lisboeta da época se cruzavam com os mais pobres e transgressores. Nessas ilustrações, “percebe-se bem o ambiente social em que o fado batido acontecia, as personagens e como é que elas se vestiam”. “Por vezes, os caricaturistas até acompanhavam com letras ou partituras das músicas que se estavam a dançar”, descreve Jonas, para quem estes registos “demonstram que a dança do fado tinha uma expressão muito forte naquela época”.
Mas como é que o fado, que habita o imaginário coletivo dos portugueses como uma canção solene, algo austera, que chora mágoas, suspira saudade e, sobretudo, é para se ouvir em silêncio (recorde-se o célebre “Silêncio, que se vai cantar o fado”), se coaduna com a dança?
Jonas explica que “o fado que nós recebemos é muito alterado relativamente às origens”. Se, por um lado, “sempre teve essa faceta melancólica e de crítica social, porque vinha da franja mais marginal da sociedade que cantava aquilo que ninguém queria ouvir – a violência, a morte, a traição, a pobreza”, por outro, tinha “um lado festivo muito vincado que se foi perdendo, principalmente, com a ditadura”.
Segundo o artista, “como o regime de Salazar não conseguiu calar o fado, decidiu educá-lo”. Criaram-se, então, locais para se ouvir fado em segurança, obrigaram-se os fadistas a vestir-se de negro, de forma sóbria e elegante e espalharam-se cartazes que intimavam para decência e o decoro. Da sua pesquisa, Jonas recorda “uma fotografia de uma fadista, em palco, no Café Luso, nos anos 60, em que se distingue um reclame que diz ‘Neste salão, não são permitidas aos artistas exibições pornográficas contra a boa moral e política’”.
Um espetáculo “para que se volte a dançar o fado”
Quem for à Casa da Cultura de Ílhavo no próximo sábado à noite vai não só ter a oportunidade de conhecer a história das origens do fado enquanto dança, como de assistir à sua primeira reinterpretação contemporânea. Com a ajuda dos nove artistas – três músicos, cinco bailarinos e um bailarino-fadista (Jonas) – em palco, o público poderá refletir sobre o movimento do fado batido e as razões que levaram à sua extinção.
“Gostávamos que este espetáculo fosse o primeiro passo para que se voltasse a dançar o fado”, assumem os criadores. A pensar no futuro, hipóteses como “a criação de uma academia, onde se pudesse promover a formação do fado batido” estão já em cima da mesa. No entanto, por ora, é tempo de apresentar Bate Fado e “ver como corre”.
O espetáculo Bate Fado, que estreou em abril, no Teatro Rivoli, no Porto, e já passou pelo Cine-teatro Avenida, em Castelo Branco, sobe ao palco da Casa da Cultura de Ílhavo no próximo sábado, dia 5 de junho, às 21h00.
*Fotos: José Caldeira