Quando Brígida Alves nasceu, em Soissons, a nordeste de Paris (França), os pais – um casal de emigrantes portugueses natural da aldeia de Silva Escura, em Sever do Vouga – deram-lhe o nome Brigitte. No entanto, pouco tempo depois, ainda a menina não tinha completado um ano de vida, a família decide regressar a Portugal – “a minha mãe nunca ultrapassou o peso das saudades da sua terra natal”, confidencia, em conversa com a Aveiro Mag – e o consolado português impõe-lhes uma alteração ao nome da criança. Aportuguesava-se, assim, o nome Brigitte e a menina passava a ser chamada Brígida.
Não deixa de ser curioso que a pessoa que, há tantos anos, é a responsável pela programação do principal equipamento cultural do município de Sever do Vouga tenha, ela própria, uma relação antiga com o mundo das artes, principalmente, da música. Numa das suas mais antigas recordações, Brígida vê-se “a cantar na tasca da aldeia”. “Subia para umas cadeiras e, a troco de cinco tostões, cantarolava as cantigas que, na altura, eram banda sonora dos desenhos animados. As canções da Heide e do Marco, por exemplo”, recorda, lembrando também a influência da avó, que “cantava ao desafio”, a vez em que, na catequese, se voluntariou para cantar numa celebração pública ou as tardes em que descia à vila com os pais para ver “filmes de cowboys” nas matinés do Cine Alba (designação pela qual era conhecido o atual Centro das Artes e do Espetáculos de Sever do Vouga antes de o edifício ser encerrado e, cerca de duas décadas depois, adquirido e requalificado pelo município).
Aos 10 anos, Brígida começou a aprender a tocar órgão eletrónico naquela que, à época, era a única escola de música do concelho, a Pentagrama. Ainda pôs a hipótese de ingressar no Conservatório de Música, mas, “naquela altura, Aveiro era muito longe”. Se, com as soluções viárias entretanto desenvolvidas, hoje é fácil fazer o trajeto Sever do Vouga – Aveiro em cerca de meia hora, naquele tempo o panorama era bem diferente.
Adiada, por alguns anos, a experiência do Conservatório , acaba por juntar-se ao grupo folclórico da sua aldeia. Começa por dar voz aos temas que o grupo dançava e, algum tempo depois, numa fase em que a coletividade estava a precisar de músicos, vai aprender a tocar concertina, passando a integrar a tocata. Como se isto não bastasse, ainda “tocava órgão na igreja, ensaiava grupos corais e tocava em casamentos e outras festas”. Tudo isso, assegura, sem nunca ter alimentado a vontade de fazer da música a sua vida profissional. “Era uma intérprete apaixonada”, admite, ainda que reconheça que “era sobretudo pela vivência em comunidade, tão importante nessa altura”, que se envolvia em todas estas atividades.
Brígida estudou Economia, no ensino secundário, para logo a seguir ingressar no curso de Gestão e Planeamento em Turismo, na Universidade de Aveiro. “À primeira vista, não tem nada que ver com isto das artes e da cultura, não é?”, questiona-nos, explicando imediatamente que, no decorrer da licenciatura, era na área da gestão de espaços culturais e de lazer que depositava maior interesse. Se “o percurso pessoal – as experiências de palco com o grupo folclórico, as atuações em contexto festivo ou religioso e aquela vivência comunitária celebrada através da arte – fazia com sentisse afinidade pelo universo da cultura”, a partir dali, foi o percurso académico a “abrir-lhe horizontes” e a dar-lhe “o alento necessário” para acreditar que podia apostar na gestão dos espaços culturais.
Termina o curso em 1997 e, cerca de quatro anos depois, concluída a empreitada da sua recuperação e requalificação, é inaugurado o Centro das Artes e do Espetáculo de Sever do Vouga. “O CAE foi inaugurado a 16 de novembro de 2001 e eu sou convidada para pegar no espaço e dinamizá-lo em fevereiro do ano seguinte”, lembra, confessando que foi “um desafio enorme”, não só pelas responsabilidades que a função lhe exigia (e ainda exige), mas, não menos assustador do que isso, pelo compromisso para com a sua terra que, aceitando o cargo, estaria a assumir.
Vinte e anos depois, Brígida reconhece que tem sido “uma aprendizagem constante” e que “só arriscando e testando” é que se aprende. “Não há modelos infalíveis nem fórmulas secretas para uma programação de sucesso. Há 20 anos, peguei neste espaço e comecei a dinamizá-lo de uma forma e, atualmente, faço-o de forma completamente diferente”. Afinal, os tempos são diferentes, os métodos são diferentes, o pensamento é diferente e a própria vocação do espaço evoluiu. “Naquele tempo, o CAE tinha sido requalificado para ser essencialmente um espaço de exibição de cinema e cujo auditório seria gerido de forma a receber conferências, seminários e as associações locais que aqui quisessem fazer as suas apresentações ou cerimónias. O equipamento foi pensado e apetrechado para isso e, numa primeira instância, o meu pensamento ia ao encontro desses pressupostos”. Porém, a vontade de fazer mais e melhor acabaria por prevalecer. Novas propostas desvendaram carências e necessidades que, ora vencidas, ora contornadas, ajudaram a moldar aquele equipamento. “Ao longo destes anos, fomos desbravando terreno e fomo-nos equipando para podermos acolher várias tipologias de espetáculos, projetos e residências, nomeadamente, no concerne às artes performativas”, conta, lamentando, todavia, que, ainda hoje, pelo facto de o palco do CAE ser muito curto, seja difícil receber espetáculos de dança contemporânea.
A arte de programar um território
Não é todos os dias que se comemoram 20 anos de um equipamento municipal vocacionado para a arte e para a cultura, ainda mais num território descentralizado, longe dos circuitos habituais, como é Sever do Vouga. Ainda assim, para Brígida Alves, o balanço destas duas décadas de atividade é “muito positivo”. “Tem sido um esforço enorme mantê-lo ativo, sempre à procura de novas formas, novos conceitos e novos formatos”.
Para programadora severense, “o exercício de programação exige muito mais do que o tempo que se passa aqui nas instalações”. É preciso tempo para ver o que existe no mercado, visitar, experimentar. “Para quem quiser viver só com o que há em Sever do Vouga, é muito fácil. Mas quem quiser trazer o mundo para Sever do Vouga tem de ter mundo. Não se pode ficar por Sever do Vouga”.
Na visão de Brígida, há que descomplicar aquela retórica que, quando se fala em acesso à cultura, opõe os privilégios dos centros urbanos às desvantagens das periferias. É importante trabalhar-se de forma a desvanecer as diferenças a que a geografia parece obrigar. “É frequente dizer-se que este é um território periférico, mas a noção de periferia depende do ponto de vista de quem está a ver. Eu, que sou de cá, que vivo cá e trabalho para esta comunidade, não vejo Sever do Vouga como uma periferia”, entende Brígida Alves. “O território vale mais pelo seu património e pelas vivências sociais e humanas do que pela sua geografia. Sever tem uma alma muito grande”, reitera, garantindo que, no que à cultura diz respeito, a vila “terá vivências tão ricas como um território dito mais central” desde que as pessoas se predisponham a “conhecer, perceber e celebrar este território”.
As características e as particularidades do território e das gentes de Sever do Vouga refletem-se na proposta cultural e no desafio do Centro de Artes e Espetáculos e, por isso mesmo, é imprescindível que a comunidade e, particularmente, o tecido associativo esteja envolvido, aberto à modernidade e a novas aprendizagens. “Cerca de 70 por cento do meu exercício de programação cultural no CAE passa, atualmente, por projetos de mediação e trabalho com a comunidade”. Convidam-se artistas de formações diversas – a maioria, ligados às artes performativas – para vir para Sever do Vouga trabalhar com as pessoas de Sever do Vouga, sobre temas que lhes tocam, montando um projeto que, depois, é apresentado por cá.
Os outros 30 por cento, refletem-se na “compra de espetáculos” e naqueles ciclos artísticos ou festivais que já são eventos âncora no município de Sever. Fundamental, parece ser não esquecer a velha distinção entre entretenimento e cultura: “Cultura é maior do que entretenimento. Há espetáculos que são passageiros, em que as pessoas vêm cá usufruir daquela hora e meia, mas a experiência termina aí. E depois há aqueles espetáculos que ficam, que deixam marca, que nos tocam, nos confrontam, nos inquietam ou nos deixam a pensar”, esclarece a programadora, opinando que, “na programação de um equipamento como o CAE, como na nossa vida, há que reservar o tempo e espaço adequado para ambos ”.
Para Brígida Alves, é urgente que “o setor da cultura passe a ser encarado com outros olhos” e não esconde a utilidade que uma “maior disponibilidade de orçamento” representaria. Todavia, no entender da programadora, neste 20.º aniversário, a melhor prenda “seria podermos continuar a ter condições para fazer o nosso trabalho, cativando cada vez mais severenses. Sentimos que já chegamos a muita gente e que, à boleia do que se vai passando no CAE, muitos severenses ainda se orgulham mais da sua terra. Mas ainda há muito trabalho pela frente e muitos severenses por cativar”. “Um dia, houve uma artista que passou por aqui e que me disse ‘Já conquistaram meio Sever do Vouga. Só falta a outra metade’. Temos de trabalhar para isso. O projeto deve enraizar-se nas pessoas”, destaca.
Lembrar os “loucos anos 20” para celebrar 20 anos de loucura
Inspirado nos “loucos anos 20” do século passado, um período, ainda no rescaldo da Grande Guerra, que ficou profundamente marcado pela “efervescência cultural”, por “um forte dinamismo social e artístico” e por uma “vontade incontrolável de festejar a vida”, o CAE propõe-se a celebrar os seus “loucos 20 anos” de atividade, tendo por mote a memória do espírito, dos ambientes e dos sons daquela época.
As comemorações arrancaram na terça-feira passada, dia 16 de novembro – o dia do 20.º aniversário do CAE –, com a inauguração de uma exposição de antigos cartazes e bilhetes, relíquias do passado que ajudarão a recordar bons momentos ali passados, avivando a memória de muitos severenses que percorreram estes anos lado a lado com o centro.
Amanhã, sexta-feira, dia 19 de novembro, o programa de aniversário prossegue com um café-concerto dos Sax on the Road, um duo composto pelo saxofonista António Ramos e a guitarrista Dolores Spínola que promete trazer um ambiente multicultural vestido de jazz ao espaço da cafetaria do CAE. “O espaço da cafetaria, junto ao floyer, é um espaço que valorizamos bastante porque nos permite ter ambientes mais intimistas e de maior proximidade entre o público e os artistas”, dá nota Brígida Alves, explicando que “é por isso que temos insistido em levar a cabo iniciativas naquele espaço, não só cafés-concertos , mas também tertúlias, serões poéticos e conversas”.
Os festejos terminam em grande, no sábado, dia 20, com uma tarde e noite recheadas de propostas: a partir das 14h30, terá início uma emissão especial na Rádio Culto, a estação de rádio online do locutor severense João Carvalho, com entrevistas a artistas, membros da equipa, técnicos e público, intercaladas com música dos anos 20 e outras surpresas. Às 16h00, acontecerá a abertura da exposição “O MEU OLHAR - através da objetiva”, do fotógrafo severense Paulo Tavares, que será acompanhada por momentos teatrais de declamação de textos dramáticos, apresentados pelos membros do Laboratório de Palco do CAE, “projeto que junta um grupo de severenses para experiências ao nível das artes performativas”, esclarece Brígida.
À noite, pelas 21h30, Maria João traz ao auditório do CAE o concerto “Ogre Eletric”, uma sonoridade incomum que resulta da fusão entre a eletrónica e o jazz. Terminado o concerto, o convite é para que todos se vistam a rigor para um baile temático alusivo aos anos 20 que promete durar noite dentro. “O Baile dos Loucos 20 Anos” transportará todos quantos nele participem para uma época de excessos, farra e loucura, com música e bebidas típicas da época e um ambiente inspirado na luxúria e diversão, comandado pela música de Um Hipster Também Dança, DJ e produtor local, e acompanhado pelos movimentos vintage da escola de dança Swing n’Smile.
“Vamos tentar que seja uma grande festa”, aguarda Brígida Alves.