Conheço o Bernardo desde que ele era três reis de gente, quando ia, levado pela mão, treinar à escola de futebol do Beira-Mar que, duas vezes por semana, enchia o antigo campo secundário do estádio Mário Duarte, com dezenas de miúdos em busca de um sonho. Um sonho que não era o do Bernardo. O dele era estar ali, vestido com as cores auri-negras do seu clube, num sentimento nascido nas entranhas do seu bairro, o da Beira Mar.
E tudo isto diz do muito do Bernardo, um menino que se fez homem, criado por um avô incrível e por uma mãe inacreditável, que o guiaram pelas ruas do seu bairro, pela fé que não se explica no São Gonçalinho, pelas histórias singulares das pessoas com quem se cruzava e, sobretudo, pelo mundo único da Arte, um mundo que cria mundos, que transforma sonhos em realidades e que, hoje, é a vida de Bernardo Limas.
Cagaréu e um sentimento que não se explica
Bernardo Limas tem 29 anos. Quase 30, diz. É, sobretudo, um cagaréu assumido, nascido na Beira Mar, que diz, sem qualquer pejo, que quem lhe tira as suas ruas, lhe “tira tudo”. E foi lá que cresceu, numa ligação intrínseca e espiritual que culminou, nos últimos dois anos (com mais um que se segue), com a Mordomia de São Gonçalinho, algo que sabia ser o seu destino.
“Estes dois anos fui Mordomo de São Gonçalinho, que é algo que é uma ligação natural e óbvia, pois sou da Beira Mar e esse é um sentimento que não se explica. Desde que me conheço que vou na Arruada, que mando cavacas, que vou à festa. O que pode ser um contrassenso, é que apesar de ser uma pessoa de muita fé, não sou de religião, mas sempre que entro naquela capela é um sentimento inexplicável. Tenho muitas conversas com o São Gonçalinho, muitos momentos só nossos. É, possivelmente, o meu grande ato de fé. Se calhar o único”.
Crescer entre a Beira-Mar e Esgueira
Com a mãe, Conceição Limas, a dar aulas na Jaime Magalhães Lima, em Esgueira, Bernardo dividia os dias entre as ruas do seu bairro (e as terras do avô, onde dava comida aos animais e plantava qualquer coisa) e a escola da progenitora, qual ATL dos dias de hoje, onde brincava e era feliz.
E foi na Jaime que a mãe lhe mostrou algo que seria, a partir desse dia, o seu mundo. Algo que ficou guardado na memória: “andava na primária na Vera Cruz, mas a turma do 9º ano da minha mãe levou ao palco o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, e eu fiz o meu primeiro papel no teatro, como pajem. Hoje sei que essa memória, que ficou no meu arquivo pessoal, marcou a minha vida. Foi ali que começou o meu sonho”, explica.
Do dinheiro ao sonho
Um sonho marcado por avanços e recuos. Por dúvidas e questões. Que o levaram, após um ensino secundário na Jaime marcado pelo associativismo e pelas artes, principalmente derivado das Escolíadas, a escolher um curso universitário “que desse dinheiro” em detrimento de uma paixão que lhe alimentava a alma.
Só que, coisas do destino certamente, no final do primeiro ano, uma professora de inglês não teve meias palavras e perguntou-lhe diretamente o que estava a fazer ali, quando a criatividade e as artes lhe percorriam as veias. O passe seguinte revelou-se decisivo e Braga, mais o curso Ciências da Comunicação, mudaram-lhe a vida.
Da teoria à prática
“Sempre li, sempre escrevi, e esse gosto em Braga aguçou, escrevi mais, ganhei técnicas de escrita e de fala, desenvolvi e aprofundei a minha cultura geral, e tudo o que lá aprendi deu-me ferramentas para seguir o meu caminho. Acabei o curso, que mudou completamente a vida, porque mostrou-me que que posso concretizar projetos, sonhos e ambições. Naturalmente que o clique veio depois, já na Universidade Aveiro e no mestrado de Multimédia, no qual aprendi a cuidar da imagem”.
A criação, em 2015, com mais nove amigos, da Associação Tertúlia Aveirense, foi o passo inaugural, o início da parte prática, a entrada, com pés de lã, num mundo que hoje é o seu dia a dia. Os primeiros eventos foram organizados até que o acaso, ou não, lhes trouxe uma surpresa que ia mudar o rumo. De todos e, sobretudo, o seu.
As Comedy Sessions
“A páginas tantas, recebemos um mail de uma pessoa de Lisboa a perguntar se queríamos trazer para Aveiro um tal de Carlos Coutinho Vilhena. Pedimos para mandar vídeos e achamos alguma piada aquilo. Decidimos arriscar, porque o preço era convidativo e arranjámos um espaço no Barba Rija. Anunciámos e no dia do espetáculo o bar ficou lotado e teve de fechar! Foi a primeira grande cena que me fez pensar: ‘até tenho jeito para fazer isto’. A partir daí a coisa começou a correr muito bem e levou-nos a outro grande momento, uma Jam Session com o Peixe, dos Ornatos Violeta. Falámos com a malta do Azulejo, e esgotou! Passaram mais de 600 pessoas naquele dia pelo espaço!
Dá-se depois a criação da marca Comedy Sessions. “Salvador Martinha, Luís Franco Bastos e muitos que estavam a surgir, como Pedro Teixeira da Mota, entre outros. O conceito do Comedy Club não existia. Lotações de 70 a 100 pessoas. São importantes até para perceber o impacto das suas palavras, porque eles, por norma, faziam só em Lisboa e nunca no resto do país. Este formato de circular por cidades como Aveiro, Braga, Coimbra, Leiria e Viseu, fez com que os artistas experimentassem o material que tinham, para depois levar às grandes salas. Esse nicho de mercado preencheu os meus primeiros grandes projetos, mas não era apenas isso que que pretendia”.
Chegar à Haff Delta
Assumindo ser tudo isto que queria fazer da vida, a decisão seguinte foi criar uma empresa, a Haff Delta, ressalvando no nome, a sua ligação à região de Aveiro, às suas gentes, à sua ria. “Senti que era importante deixar de ser o Bernardo, que trabalhava a recibo verde. E passei a ser uma marca séria, que tem o Bernardo. Foi simples e felizmente revelou-se acertada”.
Com a Haff Delta chegaram outras valências que lhe dão trabalho e visibilidade. Os streamings, as produções, o Jovem Conservador de Direita e a revista que produz e envia pessoalmente, por correio, a quem a compra. Tudo partes de um todo que fizeram com em 2021, Bernardo Limas tivesse envolvido em 92 trabalhos, num ano que teve, devido à pandemia, cinco meses sem se poder trabalhar. “Sem contar com os streamings, chegar a esse número foi espetacular, tendo em conta a internacionalização que se conseguiu ter”, explica.
De Rodrigo Marques aos Iberian Festival Awards
O ano de 2021 trouxe à Haff Delta uma parceria com a Casa de Artistas, uma empresa brasileira, que permitiu trazer a Portugal e a grandes salas, como o Sá da Bandeira, Rodrigo Marques, um grande nome de Stand Up do país irmão, que esgotou dez das doze datas previstas. O sucesso foi tanto que vai ser repetido, em salas maiores, não só com o mesmo artista, mas com outros grandes nomes. “2022 e 2023 prometem”, garante.
No entanto, o reconhecimento internacional não chegou apenas pela parceria criada, mas também pela nomeação para os Iberian Festival Awards pelos projetos: Aveiro Comedy Sessions, que levou stand up, de forma gratuita, às dez juntas de Freguesia de Aveiro e, em parceria com as produções Audiomarques, pelo festival Safra.
A Perpétua e os sonhos de Bernardo
O último ponto desta entrevista leva ao coração de Bernardo Limas e à Perpétua. Que não é uma prisão. É uma banda em forma de sonho. “A Perpétua foi-me apresentada no início de 2020 com umas maquetas, e logo percebi o potencial. A coisa foi crescendo até se fazer o álbum, que é um dos melhores portugueses do ano de 2021, está no top da Antena3 há seis meses, sendo que esteve quatro meses seguidos em quarto lugar. Fazem parte dos novos talentos Fnac 2021 e isso é muito mérito deles e que me orgulha imenso e faz com que sinta uma tremenda felicidade por quererem trabalhar comigo. O próximo momento deles vai ser maravilhoso, que é um EP com cinco músicas do Carlos Pais, resultante de um acordo com a câmara municipal de Ílhavo”.
E o sonho de Bernardo incorpora e engloba a Perpétua, porque lá, onde a ambição se junta aos impossíveis, Bernardo Limas tem, para si, uma vontade imensa: “Quero sempre fazer salas maiores, com artistas nacionais e internacionais, e chegar a um Coliseu esgotado com a Perpétua, seria um sonho concretizado. Quero trabalhar mais música, e gostava muito de trabalhar Teatro e produção de Teatro, criar mais projetos, tirar alguns deles da gaveta de cariz comunitário. Sempre respeitando a máximo de informar, desafiar e entreter”, conclui, cansado de me ouvir e de responder a todas as questões, mas feliz.