Ricardo Panela é um cantor lírico ilhavense que tem vindo a protagonizar diversas notícias por ter vencido, recentemente, a eleição de Melhor Intérprete no Festival de Ópera Armel, na capital húngara.
Mas são mais as histórias que compõem a vida do músico português. O barítono, que explorava os discos de música clássica e de excertos de ópera que habitavam a sua casa, deu os seus primeiros passos na música em Ílhavo, cidade em que nasceu e onde, aos nove anos, teve a sua primeira aula de piano.
Com 34 primaveras, Ricardo Panela é hoje um intérprete de grande versatilidade, vencedor de prémios internacionais e com estreias em vários países europeus e no Equador. Em Londres há quase dez anos, retornou às raízes em janeiro para um recital no Teatro da Vista Alegre e regressará, em Outubro e em Novembro, ao Porto e a Lisboa, para a participação na estreia de O Fantasma da Ópera no país.
Aveiro, garante, deixa saudade, sobretudo do clima, do cheiro e das paisagens ímpares que estão à distância de um curto devaneio de automóvel. Deixa também marcas, como as de uma formação musical de excelência que levou Ricardo a Londres e aos palcos do mundo.
Aveiro, casa das primeiras notas musicais
Nascido em terra de pescadores do bacalhau, Ricardo Panela, aí imerso em aulas de piano na Escola Musical Anacrusa desde os nove anos, mudou-se, por volta dos 11, para Vagos. O cantor lírico que, na altura, cantava somente em festas de Natal ou de fim de ano, teve o primeiro contacto com a música clássica, recorda, através da mãe, que cantava no Orfeão de Vagos.
Foi após uma tentativa infrutífera de ingressar no Conservatório de Música de Aveiro em piano que passou a dedicar-se mais à voz, começando a cantar em coros. Com vontade de aprender, procurou, desta vez, aulas de canto no Conservatório, ainda sem ideia de querer seguir carreira como cantor lírico. Conta, porém, que, ao fim de um ano de aulas, “estava decidido que era isso que queria fazer”.
Terminado o secundário, não estando ainda em “condições de fazer os pré-requisitos para entrar na licenciatura em Canto”, Ricardo entrou no curso de Biologia e Geologia na Universidade de Aveiro, ao mesmo tempo que, no Conservatório, começou a fazer aquilo a que, na altura, se chamava acumulação, ou seja, fazer dois anos de teoria num só. Com uma carga horária tremenda, o barítono viu-se forçado a fazer uma escolha e, ao fim de três anos em Biologia e Geologia, escolheu a música. Fez as provas para a licenciatura em Canto na Universidade de Aveiro e entrou, tendo sido aí que, com os professores António Salgado (canto) e António Chagas Rosa (música de câmara), em particular, reuniu as bases mais importantes que usa ainda hoje.
O crescendo, de papéis menores para os palcos do mundo
Terminada a licenciatura em Aveiro, partiu para Inglaterra rumo a um Mestrado em Performance na Guildhall School of Music & Drama, orientado pela professora Laura Sarti, que havia conhecido na cidade de moliceiros, numa Master Class organizada por António Salgado. “Fui para Londres porque tinha decidido que era com aquela pessoa que queria continuar a estudar”, conta o barítono.
Uma vez em terras de Sua Majestade, foi viver para uma residência de estudantes que fica a 15 minutos a pé da Royal Opera House. De repente, encontrava-se a um curto passeio de “ir a um dos melhores teatros do mundo ouvir os melhores cantores do mundo”, recorda, facto que acrescentou, sem dúvida, fascínio à cidade onde ficaria a viver até hoje.
Tendo feito já alguns projetos com a Orquestra Filarmonia das Beiras, como parte da licenciatura e, entretanto, com a Ópera Norte, fundada pelo seu professor de canto, foi em Londres que, sobretudo após ter concluído o Mestrado, começou a procurar e a fazer audições. “Comecei por fazer papéis pequenos com companhias grandes e papéis grandes com companhias pequenas e, ao longo dos últimos anos, tenho deixado de fazer papéis grandes com companhias pequenas e começado a fazer papéis médios e grandes com companhias grandes”, conta Ricardo, que diz ter vindo a construir o seu percurso “devagarinho, ano após ano, projeto após projeto”.
Este crescendo na carreira do cantor lírico ilhavense é palpável. Hoje, vestiu já papéis que não imaginava vir a poder vestir, como o de Valentin, na ópera Fausto, de Gounod, ou o de Leporello, em Don Giovanni, de Mozart, não só por serem papéis difíceis, mas também porque “o desenvolvimento vocal é algo imprevisível”, explica. É um processo muito fluído e é por isso que Ricardo se tem focado em estudar e cantar de forma saudável. “Uma pessoa trabalha no sentido de ser eficiente do ponto de vista técnico e, estando estabelecida essa eficiência base, os frutos tendem a vir”, diz.
Prova disso é, entre tantas outras coisas, ter sido recipiente, em 2015 e 2016, de uma Bolsa de Aperfeiçoamento Artístico, atribuída pela The International Opera Awards Foundation, e, em 2018, ter vencido, na categoria de barítono, o concurso de canto do Festival de Ópera Armel, em Paris. O prémio, conta, “foi fazer parte da produção de Don Giovanni”, ópera de Mozart, no papel de Leporello. Foram agendadas as performances – três no Equador e uma na Hungria –, pelo que, este ano, Ricardo fez as malas e rumou à América Latina, para atuar, pela primeira vez, fora do Velho Continente. “Estamos a falar de uma ópera que foi composta em 1787 e que, até 2019, nunca tinha sido apresentada no Equador”, diz, afirmando ser incrível saber que foi uma das primeiras pessoas a cantá-la no país. Em junho, esteve numa cidade poisada no topo dos Andes, onde o público recebeu a ópera calorosamente e, em julho, fez-se a Budapeste para a fase final do concurso do Festival de Ópera Armel. Aí, os intérpretes que haviam vencido os papéis em Don Giovanni foram avaliados por um júri internacional, de acordo com a qualidade do canto, representação e performance. Resultado? Leporello valeu a Ricardo Panela um regresso a Londres com o prémio de Melhor Intérprete em mãos.
Um bonito regresso a casa
Todos os anos, Ricardo Panela procura regressar às raízes, no Verão e no Natal, para rever amigos e família e voltar a encontrar-se com as peculiaridades de um distrito que diz ter uma imensa “riqueza paisagística”. Em janeiro deste ano, tornou, porém, para fazer o que nunca antes fizera – um concerto em Ílhavo, no Teatro da Vista Alegre, palco onde se estreou aos nove anos numa festa da Academia de Música. “Foi ótimo voltar ao Teatro 24 anos depois para fazer um recital”, diz Ricardo, que o montou juntamente com o pianista Nuno Vieira de Almeida, que conhecera na primeira produção que fez no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa. O recital, organizado pelo 23 Milhas, contava com obras de Kurt Weill e foi, entretanto, escolhido pela Fundação GDA, para ser gravado em álbum no próximo ano.
Entre o público, que replenou o teatro, encontravam-se algumas das pessoas que viram crescer o intérprete, como é o caso da sua primeira professora de Música, Cremilde Miranda, a sua primeira professora de Canto no Conservatório de Música de Aveiro, Juracyara Baptista, e o seu professor primário, Jaime, que não via desde criança. “Foi um regresso a casa muito bonito”, garante.