Natural de Vila Real, Luís Portugal é o atual programador cultural do Cine-Teatro de Estarreja, um espaço que se propõe, de portas abertas, a fazer “com que as pessoas consumam cultura”. Com memórias antigas de um cantarolar incessante e de um interesse muito precoce por música, Luís diz ser "alguém que aprende diariamente” e cujo trabalho, de pensar e programar cultura, só é possível por ser um esforço coletivo, de equipa.
Com uma vasta coleção de momentos passados na estrada com os Jafumega, nas décadas de 70 e 80, e um percurso também lançado a solo, Luís Portugal, músico – para além de programador cultural –, diz planear “continuar por aí” "até que a voz lhe doa".
Lugares de felicidade
Em serões em que a casa se fazia de várias pessoas, convidadas pelos seus pais, Luís – na sua versão criança – tomava o palco. “Começava logo a cantarolar as cantigas todas. O serão era para me ouvirem e não para conversar”, recorda, com um sorriso. Na família, apenas o avô materno, que não teve a oportunidade de conhecer em profundidade, tinha ligação ao universo da música. O seu entusiasmo foi sendo cimentado por si mesmo, tendo aprendido a tocar diversos instrumentos até, finalmente, após a natural mudança de voz, assentar pelo canto.
A esse lugar de felicidade que a música tornava palpável juntava-se o fascínio pelas artes visuais. Era também no desenho que encontrava expressão, talvez por ter podido observar o pai a explorar essa arte com perícia (e tinta-da-china). Foi esse gosto, que acalentava de mão esquerda no papel, que o levou a optar pelo curso superior de Arquitetura. Fez-se à cidade do Porto – parte músico, parte aspirante a arquiteto –, até que se tornou inevitável a escolha. “Houve um grupo de músicos, Jafumega, que se meteu pelo caminho. Havia já um profissionalismo muito grande e muito audaz, até. Era uma banda musicalmente diferente daquilo que se fazia em Portugal nessa altura. Digamos que tive de subir alguns degraus para poder acompanhá-los”, partilha. “Tentei conciliar as duas coisas, mas não foi possível. Eu gosto de fazer as coisas bem feitas. Foi uma opção”, explica, a de abraçar um percurso na música.
Foram tempos intensos, recorda, não só pelo número de concertos na agenda dos Jafumega, mas também pelo calcorrear de tantas geografias. Foram tempos de descoberta – “humana, até”. “Não havia lugarejo que não conhecêssemos neste país, apesar da dificuldade em chegarmos a esses lugarejos”. No Verão, em particular, as estradas faziam-se casa. “Percorríamos todas as festas e festarolas dos burgos”, somando variados episódios caricatos aos seus baús de memórias. Como o concerto em São Jorge da Beira, onde não havia corrente elétrica. “Tivemos de pernoitar e a Comissão das Festas ficou de arranjar um gerador para o dia seguinte”. O prometido foi cumprido, conta, mas o aparelho não era suficiente para garantir as necessidades do grupo. Ainda assim, para não defraudar as expectativas da população, que ansiava pelo tão anunciado concerto, tocaram. “Como este episódio, houve dezenas deles”, lembra. “Eram belíssimos tempos, realmente. Todos os tempos são bons”.
Com espetáculos também em Paris, na Festa do Avante e no festival de Vilar de Mouros, em que tocaram antes dos – na altura não tão conhecidos – U2, os Jafumega afastaram-se, em 1983, dos palcos, para um interregno de três décadas.
Foi aí que Luís Portugal se estreou em palcos de diferente natureza: as salas de aula, enquanto professor de Educação Visual e Geometria Descritiva. Seis anos nesse papel valeram-lhe, até aos dias de hoje, olhares e dizeres feitos de carinho, de quem o reconhece na rua e o cumprimenta com um “Olá, professor”.
Seis anos. Foi o tempo que a música levou, inevitavelmente, a reclamá-lo de volta. Nos anos 90, recebeu um convite para integrar, como intérprete, o grupo, liderado por Carlos Araújo, que atuava ao vivo no programa “Às 10”, da RTP, e isso serviu como ponte para um percurso a solo. “Foi também uma forma de regressar ao contacto com os palcos e depois começar a trabalhar material para lançar um disco. E foi isso que aconteceu”, conta o músico, que acabou por lançar dois discos.
Fotografia: Paulo Tavares
Pensar cultura
Deu início ao seu trabalho como programador cultural em Torre de Moncorvo. O presidente da Câmara Municipal pretendia avançar com um projeto de recuperação de um Cine-Teatro e a criação de uma escola de artes. Após uma partilha honesta de Luís sobre o seu gosto pela cultura, em geral, o reto não tardou a ser-lhe lançado, uma noite, “à mesa – estas coisas têm de acontecer sempre à mesa –“, após um espetáculo seu.
Fez, depois, algumas produções para o Município de Albergaria-a-Velha e foi daí que se abriu a porta para o lugar onde, hoje, dinamiza a agenda cultural: o Cine-Teatro de Estarreja. Um trabalho que se faz mais e mais absorvente por permitir a envolvência da comunidade, conta. “Fundamentalmente, trouxe-me o gosto de trabalhar com os outros. Porque é para isso que a cultura – e o Cine-Teatro – servem: para abrir as portas a todos”, reforça.
E é sob esse mote que se vão desenrolando os diferentes eventos culturais no Município. “A nossa ideia é termos sempre o teatro de portas abertas, com uma programação que seja atrativa e que, de certa forma, faça com que as pessoas consumam cultura. Que a cultura seja abrangente a todos os munícipes e a todos os que nos queiram visitar – é essa a nossa pedra basilar”.
Mesmo em tempos de pandemia, conta, o Cine-Teatro não cessou de construir pontes entre diferentes artistas e a população. A adaptação foi desafiante, partilha, mas necessária, e, como todo o trabalho que se faz na área, apenas possível por existir uma equipa determinada a não fechar portas. “Se não houver uma equipa, não há programação. Quando eu sair daqui, a equipa continua. É mais importante a equipa que o programador”, reflete.
Também os últimos tempos se têm mostrado desafiantes. “Nota-se, na comunidade, um retrair, uma mudança de hábitos que leva a que as pessoas não adiram tanto aos espetáculos. Por outro lado, a questão económica também se agravou – com a atual e infeliz – guerra”. No que diz respeito aos artistas, aponta que muitos acabaram por ter de “trilhar outros caminhos”, perante a necessidade de “pagar a conta da mercearia”, e muitos dos que permaneceram, numa tentativa de repor o que perderam, viram-se forçados a aumentar o cachet, algo que traz um desafio acrescido à marcação de artistas.
A cultura, porém, continua a ser celebrada e Estarreja é palco cultural de eventos que colocam as pessoas no seu centro, tais como o ESTAU – Estarreja Arte Urbana, o Carnaval de Estarreja e o Estarrejazz – Festival de Jazz de Estarreja, amplamente (re)conhecidos. Luís partilha ainda, com compreensível alegria, que o Cine-Teatro conseguiu, recentemente, um apoio à programação da RTCP (Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses), que permitirá reforçar o trabalho de proximidade “com a comunidade, agentes culturais e artistas locais” e sua alavancagem.
“Até que a voz me doa”
Luís Portugal, o músico agora com 65 anos, irá “continuar por aí”. Aí, nos encontros de autor por escolas de todo o país, organizados em torno do seu “pequeno livro infantil – As Canções da minha Escola"; aí, por entre a escrita criativa a que vai dando corpo; aí, enquanto escreve um musical para o Município de Ourém que irá estrear em dezembro; aí, em concertos que os Jafumega vão marcando nas agendas. Aí.
“E, até que a voz me doa, cá estarei”.