O monumento de S. Gonçalinho parece contemplar a capela defronte e que lhe é devotada, oferecendo ao largo, em que está instalado, a memória do Santo (embora a hierarquia canónica o categorize como Beato) e redobra-lhe a presença no local: para além do templo, do nome na placa toponímica, acresce a sua representação material. Para lá da “coisalidade” da obra de arte – usando a expressão de Martin Heidegger cunhada no livro “A Origem da Obra de Arte” -, esculpido o mármore de Estremoz, a estátua possui a dimensão metafísica, aquela capaz de transmitir a transcendência em relação ao tempo e ao espaço, a que passa a noção da comunicabilidade íntima da fé e a que replica a vigília silenciosa que Deus, os anjos e os entes santificados fazem, de acordo com as escrituras sagradas e a convicção dos crentes, zelando pelos seres humanos.
A imagem contemporânea de São Gonçalinho, muito deste tempo que aprova a abstração, emerge da calçada, avista-se do casario, é um marco de diferença e distinção, uma visão artística consumada na matéria, constitui o fim do trabalho particular do autor e o início da homenagem pública, e o que traz de mais relevante: o aprofundamento do discurso e da alma do bairro da Beira-Mar em que se insere e os da cidade em que figura. Um elemento aduzido à retórica imagística local. Sendo parte da anatomia do corpo da urbe, convive também no domínio simbólico dos cidadãos, anfitriões e visitantes.
Aveiro, a comunidade, estará grata ao Fernando Catarino, juiz da Mordomia de São Gonçalinho que idealizou e concretizou o projeto de alargar o património citadino e de apreço a São Gonçalinho, bem como ao artista Paulo Neves pela conceção, elaboração e doação deste sonho com conteúdo tangível em pedra branca rosada. A interpretação estética presta-se ao subjetivismo que, se for fundamentado, é sempre aceitável, o princípio do gosto não é unívoco, mas a sobriedade da obra, a contemporaneidade dos traços e a abstração moderna, em contraste com a figuração própria de outro tempo, e que regressará um dia, justificam que a peça se inclua no rol do mais estimado espólio artístico, cultural, religioso e histórico aveirense.
O conjunto da obra de Paulo Neves tem alargado fronteiras geográficas, merecido estudos universitários e granjeado destaque no catálogo de peças da Vista Alegre, provavelmente a principal marca portuguesa de artigos de decoração doméstica, aluda-se à porcelana ou ao cristal.
Mais recentemente, a edilidade aveirense apresentou o grupo de esculturas em pedra encomendadas a Paulo Neves, simbolizando os arcanjos São Gabriel, São Miguel e São Rafael. A obra “Os Arcanjos” conjuga-se, com a de S. Gonçalinho, na cartografia emocional da cidade e aprofunda o sentido cristão das peças habitando na nova rotunda da Avenida D. António Francisco dos Santos.
A liberdade e a pluralidade artísticas são permeáveis ao contexto ideológico da sociedade, não perdem irreverência artística por versarem temas com passado, não estão reféns de certidão científica dos assuntos tratados, não devem ser afuniladas pelo racionalismo ou postergadas por um imperativo assético que pretenda erradicar qualquer comoção da arte como sentimento individual. Mas, existindo essa ligação, as sociedades têm também que saber preservar o acervo legado e evitar que o poder e a ideologia vigentes destruam, em nome do fanatismo, totalitarismo ou apenas por vã vaidade, o património existente.
Recorde-se o que os militantes do Daesh fizeram aos monumentos icónicos de Palmira, a “pérola do deserto”, umas das mais relevantes cidades históricas do Médio Oriente: esmagaram o teatro romano, derrubaram colunas antiquíssimas e explodiram mausoléus. Crimes perpetrados contra a preciosa herança da humanidade que se encontrava na povoação síria.
A selvajaria da atitude dos que se proclamavam membros do pseudo Estado Islâmico chegou ao arrepio do esforço internacional para proteção de monumentos e obras de arte, mesmo em tempo de guerra. A defesa da cultura humana dispensa o sectarismo bárbaro, igualmente repele a ignorância da importância do legado histórico e o desprezo pelos artistas.
Cuidar do património constitui uma exigência cívica, um imperativo ético com a história, a arte e com os artistas. Por isso, é com felicidade que se toma nota da intenção da municipalidade considerar a recuperação das esculturas da exposição In Vitro, da autoria do artista Luís Queimadela. As esculturas animaram o espaço público aveirense, estando distribuídas por algumas das principais ruas e praças da cidade, desde as comemorações dos 250 anos da cidade de Aveiro, em 2009.
A ausência da estatuária deixou vazios lugares onde antes estavam imagens de rostos, de faces multiplicadas a lembrar as de trabalhos de Andy Warhol, corpos em proporções oníricas, assentes em pés sólidos, robustos. Eram as hipérboles do quotidiano, metáforas que interpelavam os transeuntes, que faziam par com os residentes e os turistas nas fotografias, que coloriam a cidade, que davam ambição e sonho à imaginação, que descerravam as portadas da janela da ousadia aos criativos mais jovens. Esperemos, pois, reencontrar as figuras de uma cidade aberta à inovação e à experimentação, terreno e mapa mais interessantes e entusiasmantes que os do previsível amontoado de cimento, de asfalto, de pilaretes e sinais de trânsito. A família com que o artista Luis Queimadela nos bafejou é diferente e simpática, habituando-nos aos seus padrões. Não será a Sagrada Família de Barcelona, mas tem a dose de originalidade e espiritualidade que a tornam admirável. Louve-se, também, a disponibilidade que o autor, Luis Queimadela, revelou, pôde ler-se na comunicação social, para ajudar a autarquia no processo de recuperação do acervo.
A consistência da coleção que se percebe bem na identidade visual e material das peças da exposição aporta, para além da uniformização da qualidade artística, uma quantidade significativa de modelos que garantem à cidade mais uma rota cultural, um outro polo turístico de atração e de novidade, todas estas vantagens patrimoniais, culturais e económicas não se devem desperdiçar.
O investimento público e privado na qualificação do espaço público que se referiu, ao longo do texto, será o que sobrevive aos planeadores do território e aos sucessivos decisores políticos, a monumentalidade como âncora e biografia da época não será julgada por cumplicidade com um regime político pontual. Lamentando as exceções dos extremismos patológicos e dos rancores de facínoras autocráticos que em guerra olvidam os valores civilizacionais, as sociedades sabem que proteger o património é um bem, um valor que se projeta no futuro. O respeito pelo pretérito, pela memória, pelo caminho que nos trouxe aqui, impele a que saibamos defender e proteger o que é de todos e que mais do que ter sido de ontem ou de hoje, é de sempre.