Maria Luísa descreve a mãe como uma pessoa sempre distante e formal, representa tudo o que na época eram os requisitos para um bom matrimonio: “a mamã não era uma louca qualquer, mas uma senhora católica de província, prendada, trabalhadora e dedicada. Sem caprichos nem veleidades. Com os pés bem assentes na terra. Sentia-se feliz por ter conseguido encontrar um parceiro que parecia poder oferecer-lhe uma vida melhor.”
O pai, desde sempre um bon vivant ensinou a Maria Luísa o gosto pela vida e como retirar prazer de tudo na vida, até mesmo da comida. Ensinou-a a ver os seus dias com esperança de que a beleza estava em tudo e que era importante saber reconhecê-lo e viver a vida com intensidade. A mãe era ponderada, serena, temerosa e sempre o fiel da balança a manter o equilíbrio do casamento.
O livro e a história de Maria Luísa são marcados por momentos que a fazem pôr em causa o seu afeto e dedicação às pessoas ou a falta daqueles e isso acontece com a morte do pai que reconhece nunca ter valorizado devidamente enquanto vivo, encarando-o sempre como um “velhote antiquado, cheio de sentenças” e após a sua morte, lamenta tal facto. “As pessoas morrem e depois já não podemos dizer-lhes de viva voz que tinham razão, que aprendemos as suas lições, que compreendemos o quanto nos amaram e as amámos, ainda amamos, não tendo culpa de aqui andarmos tantos anos cegos, surdos e mudos.”
Outro momento que marca muito a Maria Luísa é a sua relação com o amor da sua vida, David, com quem tem um romance tórrido e um desgosto que a abala profundamente pelos motivos da separação – David, por muito apaixonado que estivesse por Maria Luísa, não consegue assumir perante os colegas de faculdade, que namora com uma “gorda”. Profundamente abalada com o fim desta relação, Maria Luísa prossegue a sua vida, com alguns affairs e romances de pouca importância pelo meio e, mais tarde volta a encontrar-se com David quando vai dar aulas para a escola onde este também é professor e aí, voltam os dois a envolver-se e.... novamente.... acabam por se separar pois como David lhe explica quando lhe diz que não consegue abandonar a mulher e as filhas: “Juntamo-nos porque há simpatia inicial, depois o enamoramento, mas também para que olhem por nós, nos tragam um chá e um cobertor. Sabe bem haver quem se preocupe connosco, nos toque no braço, nos cabelos e nas mãos. Juntamo-nos para que as vidas se justifiquem e legitimem, ao assemelharem-se a todas as outras.”
A verdade é que a vida amorosa de Maria Luísa, teve tanto de preenchida como de mal sucedida, desde o marido da prima que tenta abusar de si até aos colegas que dela se aproximavam para depois se afastarem sem qualquer explicação. A verdade, e Maria Luísa acaba por reconhecer alguma verdade nos conselhos da mãe, mulher de um homem só ate morrer: “Os homens fartam-se depressa, dizem as mulheres mais velhas. Os homens são inconstantes, permanentemente insatisfeitos. Nunca confiar neles. Nunca acreditar e muito menos esperar, alimentar ilusões.”
Se há um campo da sua vida onde Maria Luísa parece tirar satisfação é na sua profissão, que não obstante mal remunerada, ao ponto de a fazer ter que abdicar da empregada por não ter capacidade de pagar as suas contas, a realiza por poder fazer uma das coisas que mais gosta: ensinar, ler e escrever.
Mas também aqui, enquanto professora, Maria Luísa reconhece que é, tantas vezes empurrada para tarefas burocráticas que a desviam da sua principal paixão e olha para o sistema – cada vez mais assim – como uma cadeia de hierarquia servil, na qual nos embrenhamos em tarefas mecanizadas e pouco estimulantes que retiram a novidade aos dias e o entusiasmo ao nosso trabalho. Esta crítica, na profissão dos professores acaba também por ser uma crítica transversal a todas as outras profissões. “Quando trabalhamos como escravos que dependem de segundos escravos que reclamam sobre terceiros, a vida passa e não damos por ela, entorpecidos pela engrenagem.” Creio não estar muito enganada se disser que todos, em dado momento das nossas vidas já tivemos este sentimento.
Não posso, também aqui, deixar de falar noutra reflexão tão pertinente e atual da autora: “Ninguém conhece a minha vida, mas espera-se que seja tão normal como a dos funcionários que apresentam qualquer outra combinação de algarismos, que me sinta satisfeita no cumprimento da normalidade lobotomizada, que me levante, lave, vista, penteie, saia e trabalhe. Há regras a cumprir.”
Referindo-se ainda ao ensino e à escola, a autora reconhece não ser um espaço para pessoas com espírito crítico, sensíveis e que ousam questionar. “Não há aqui lugar para abusadores, preguiçosos sentimentais nem mentes sensíveis e frágeis que questionam o inquestionável , que se fragmentam e desabam. Os sentimentos regulados por decreto-lei, despacho normativo e portaria. Cumprem-se prazos. Não cumpriu o prazo? Penalização. Não há desculpas.”
O amor da Maria Luísa pela leitura e pela escrita, e também a sua capacidade de apreciar e se deixar encantar pelo belo – caraterística que herdou do pai – são a sua maior força e fonte de resiliência. Maria Luísa encontra nelas as suas asas para voar e se afastar de todos e de tudo o que lhe causa desgosto.
“Tirando a arte, as rosas, o mar, o gato vadio que não tem uma pata, os ouriços-cacheiros clandestinos que aparecem à noite no baldio em frente, os pombos que pousam aos nossos pés pedindo restos de pão velho, que interesse tem a vida? Tirando a fantasia que nos arranca à escuridão parada dos dias sucedendo-se indistintamente, o que vale o tempo que nos foi dado ou que viemos procurar?”
Aceitem o convite da Maria Luísa para viajarem à vossa infância, através desta curta viagem que o livro nos convida a fazer, e perceberem que são tantas as nossas forças e que o belo estará sempre a ajudar-nos a superar as nossas fraquezas!
Boas leituras!