Foi na cidade dos moliceiros, num pequeno bar onde os acordes ecoavam ao vivo, que Nuno Caldeira, natural de Castelo Branco, e Catarina Duarte, de Coimbra, cruzaram percursos pela primeira vez. Ela estudante de Matemática na Universidade de Aveiro, ele de Design e Novas Tecnologias da Comunicação, conheceram-se em palco, a convite da artista presente e com um empurrão feliz dos amigos. Depressa alinharam talentos e formaram um duo, que viria, vários anos depois, a construir, de malas às costas, um projeto musical feito de paisagens sonoras que transformam a distância em proximidade.
Hoje, com dois álbuns lançados, repletos de sonoridades do universo lusófono e letras de experiências vividas um pouco por toda a parte, os Senza percorreram já cinco continentes, realizando mais de 80 concertos. Mas não só de palcos se fazem as suas viagens. Nuno e Catarina partem para absorver a realidade que habita as mais diversas ruas. “Estamos mais atentos ao mundo”, conta Nuno, aos sons que fazem o quotidiano em terras longínquas, às paisagens, pessoas e situações que deles fazem contadores de histórias.
Do ar condicionado em Ho Chi Minh aos concertos um pouco por todo o mundo
Cresceram com música dentro – de casa e de si mesmos. Catarina com fado, Nuno com a guitarra. Mais tarde, mais encontrados, procuraram estilos diferentes, como Jazz e Bossa Nova, que marcam a música que, juntos, tornam palpável no presente.
Com o bicho da viagem alojado junto ao bicho de guitarra e microfone na mão, Catarina e Duarte viajam, “atentos ao mundo” e “à procura de ver bem” o que vão encontrando. Em 2015, rumaram a Shanghai, onde haviam terminado uma viagem a bordo do Transiberiano tempos antes, determinados a seguir a linha ferroviária até ao sul do Vietname. Foi precisamente aí, na cidade de Ho Chi Minh, que o calor os fez entrar numa loja de música, onde, com o ar condicionado como veículo, se moveram durante mais de uma hora. De lá, regressaram às ruas de Saigão com uma guitarra e uma nova perceção para quem com eles se cruzava – com um instrumento como parte da bagagem, depressa começaram a ser vistos como músicos.
Costumam dizer que foi esse o “momento fulcral” para o despertar dos Senza. “Nós já tínhamos muita vontade de alguma coisa”, contam, “faltavam-nos apenas a explosão criativa, a confiança, a coragem e talvez coisas para dizer”.
A viagem pelo Sudeste Asiático, em que a guitarra de Saigão abriu portas para uma troca transformadora de concertos por estadia, fê-los regressar com os ingredientes que faltavam. Com um peso extra que não pesa, mas liberta.
Fotografia: Soni Bohosyan (Bulgária, 2019)
Em três meses de malas às costas, colecionaram vivências, histórias, sons que não tardaram a querer materializar num álbum após o regresso a Portugal. “Primeiro, tivemos de compor as músicas, de pegar nas histórias que nos iam acontecendo, nos sítios que mereciam a nossa atenção, nas pessoas e em todas as temáticas com que nos cruzávamos e transformá-las em canções”, explicam. Houve muito trabalho a ser feito em solo luso, mas nem tudo se concretizou por cá. O Praia da Independência, disco de 11 canções lançado em 2016 pelos Senza, guarda canções com pedaços gravados também em países como o Camboja e os Estados Unidos.
“Tivemos muita sorte por ter sido disco Antena 1”, conta Nuno, certo de que foi uma porta importante para que, do “assomo criativo que os levou a escrever as primeiras canções nas praias do sul do Camboja, Vietname e Tailândia”, começassem a surgir convites para atuarem um pouco por todo o mundo.
80 palcos feitos de histórias sem fim
O processo não é linear, mas é Catarina quem se dedica às letras e questões melódicas e Nuno aos arranjos, composição, harmonia e produção musical em volta. “É ela que canta, é ela que transmite a mensagem”, diz Nuno, “eu acabo por criar a casa para as experiências musicais viverem”.
Sem a rotularem – porque a originalidade que a faz borbotar torna a tarefa complicada –, descrevem a música que criam como uma “fusão de sonoridades de países onde se fala português”, muito verdadeira às experiências que vivem enquanto músicos e viajantes.
Fotografia: Rui Afonso (Namíbia, 2018)
As histórias que contam através dela, revelam, “acontecem pelo simples facto de nós andarmos a viajar”. “Não é preciso andarmos à procura. Passámos foi a estar muito atentos aos momentos em que nos surgem ideias”, seja presos no trânsito de Nova Deli ou junto a uma palmeira numa qualquer praia do mundo.
Hoje, cinco continentes e mais de 80 palcos depois, com mais um álbum lançado (Antes da Monção, 2018), continuam a procurar fazer de um espetáculo algo mais. Se possível, explicam, tentam prolongar a estadia num local com concerto agendado “na esperança de que, dali, venham canções novas inspiradas nesse sítio”.
A música, vivida de formas diferentes
Atentos que são e estão, Nuno e Catarina afirmam que a música – a sua, em particular – se vive de forma diferente nos diferentes cantos do mundo. “As pessoas têm, tendencialmente, formas diferentes de reagir”, contam, recordando o concerto na Cidade do México, em que a espontaneidade vingou como palavra de ordem. “Foi fantástico”, conta Nuno, “quando a Catarina disse que podiam chegar-se para a frente, vimos 3 mil pessoas a levantarem-se”. Também na Namíbia, onde, pelo exotismo das suas canções, foram convidados a atuar no Festival Internacional de Jazz, tiveram uma experiência particularmente marcante – “muito muito boa, com muita gente” –, ou em Dili, Timor, onde o público se mostrou efusivo e envolvido.
Fotografia: Marcocodrilo (México, 2019)
Em Aveiro, onde vivem e se dedicam a tempo inteiro ao projeto, os Senza dizem haver espaço para as sonoridades com que são musicados. “As pessoas têm curiosidade para ver o que temos para apresentar. Sentimo-nos acarinhados”, contam.
Sobre o futuro, deixam uma nota: esperam "dar um salto muito interessante em breve". Para já, Nuno e Catarina encontram-se numa “fase de exploração”. Têm materiais, isso é certo, e mantêm-se fiéis ao que os torna tão fora da caixa e dentro do mundo – a vontade de que as paisagens sonoras que criam “tenham a capacidade de levar as pessoas para outras paragens".
* Créditos da foto de capa:Rui Afonso