Começando pelo princípio: nasceste em Gondomar…
Nasci em São Cosme, Gondomar, em 1944. Os meus pais são de São Cosme mas na altura já viviam aqui em Aveiro.
Quando nasceste os avós já viviam cá?
Já.
Não sabia…
Tinha um irmão mais velho, que tinha o teu nome…
Ou eu é que tenho o nome dele…
Pois… O meu pai tinha arranjado um emprego aqui em Aveiro, nuns armazéns de azeite, Duarte Santos e Correia, em Esgueira. Entretanto já tinham casado e vieram viver para Esgueira, numa casa que ainda existe, quase em frente à agência funerária Capela. Mas como não tinham cá família absolutamente nenhuma, todos nós, os três irmãos, fomos nascer a São Cosme.
Nasceste em casa de alguém da família?
Nunca perguntei à minha mãe, mas diria que sim. Possivelmente em casa dos meus avós maternos. Naquela altura os partos geralmente eram em casa, com a ajuda de uma parteira.
O que é que o avô e a avó faziam antes de virem para Aveiro?
A minha mãe tinha tirado o curso do Magistério Primário, tal como a mãe dela, a minha avó Berta.
Também não sabia disso…
Mas nunca exerceu. Porque depois casaram, vieram para Aveiro, vieram os filhos. Tornou-se doméstica, a cuidar da casa e dos filhos. Era muito habitual. Poucas mulheres trabalhavam fora de casa. Mas a minha avó foi professora, na escola primária em São Cosme.
E o avô?
O meu pai fez uns estudozitos no equivalente a uma escola industrial e comercial. Aprendeu umas coisas de contabilidade. E depois, por intermédio de um fulano qualquer dos lados de Gaia, que era também sócio do armazém de azeite em Esgueira, conseguiu colocação como guarda-livros nessa firma. Vieram para cá e ficaram cá a viver.
A ideia que tenho é que o avô viajava muito em trabalho…
Bastantes anos mais tarde tornou-se sócio da firma – os outros dois sócios deram-lhe sociedade, ficou com uma quota pequena. E nessa altura – já eu era crescidito – fazia bastantes viagens de carro para fazer visitas a clientes, vendas e receber dinheiro. Ainda me lembro do meu pai ir a casa dos clientes e eles pagarem em dinheiro, e eu às vezes ajudava-o a contar as notas. Ainda cobria uma área bastante grande. Lembro-me de ir com ele uma série de vezes para Adémia, Cantanhede… A volta maior que ele fazia, aos sábados, numa carrinha 2 Cavalos, era para a Beira Alta - chegava a ir até Trancoso, Penedono, Viseu…
E as estradas não eram nada do que são hoje…
Pois não. Albergaria, Vouzela, Viseu, Castelo de Paiva e por aí fora. Era o dia inteiro.
Então a tua infância e juventude foi passada toda em Aveiro. Pensei que ainda tivesses vivido em Gondomar…
Não. Íamos lá às vezes no verão, quando éramos mais miúdos, passar uma semana ou duas a casa dos meus avós maternos. Ou às vezes aos fins-de-semana, de comboio ou de carro, quando o meu pai comprou a velha arrastadeira.
Fizeste a escola em Esgueira?
Fiz a escola primária em Esgueira, onde é agora a Junta de Freguesia.
E lembras-te da professora?
Lembro-me de duas. Uma era a dona Maria Isabel Ramos, quer era casada com o Henrique Ramos, da casa de fotografias. Que era mazinha.
[Henrique Ramos foi um conhecido fotógrafo da cidade de Aveiro]
Ainda levaste umas reguadas?
Uma vez mandou-me um bofetão, fiquei com a orelha a zunir. Depois lembro-me da dona Maria Luísa, o marido dela era o Guerra de Abreu, que desenhava muito bem e fazia caricaturas para o Litoral. Essa senhora era muito boazinha.
[Alfredo Guerra de Abreu foi um artista aveirense. O seu nome figura na toponímia da cidade]
E depois da escola primária?
Da minha turma da quarta classe eu e um outro rapaz de Esgueira fomos os únicos que continuámos os estudos. Fomos para o Liceu Nacional de Aveiro, onde é agora a Escola José Estêvão. Ainda funcionava o primitivo liceu, a atual Escola Homem Cristo, onde também andei. Terminei o liceu em 1962, e nesse ano fui para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde andei seis anos, no curso de Filologia Românica. Acabei por andar mais um ano porque no último ano não consegui fazer uma cadeira – o professor era o Pimpão, que era a fera da faculdade.
E porquê Filologia Românica?
Tinha mais inclinação para as letras, sempre tive. No liceu guardo uma muito grata recordação do reitor dessa altura, o dr. José Pereira Tavares, que era uma excelente pessoa, bom professor, estudioso. Nunca tive grande inclinação para a matemática. E tive um professor que não tinha paciência e insultava os alunos. Lembro-me de uma vez em que me mandou ir ao quadro, que ficava num plano mais elevado, em cima do estrado, assim como a secretária do professor…
Numa posição de autoridade…
Exato, mais acima… Eu não consegui fazer o exercício e ele disse uma coisa que nunca mais esqueci, tinha eu os meus 11 anitos: “olha, meu menino, vai cavar batatas para a Gafanha”. E mandou-me sentar. E marcou-me. Uma pessoa sente-se humilhada.
[José Pereira Tavares nasceu no Pinheiro da Bemposta em 1887. Foi reitor do Liceu de Aveiro e autor de várias obras de carácter didático. Lançou, com Álvaro Sampaio, a revista Labor, voltada para os problemas do ensino liceal. Morreu em 1983, aos 96 anos]
Ires para a universidade sempre foi um objetivo teu?
Sim, já tinha ideia de seguir para professor. Não é que ganhassem muito, mas naquele tempo a carreira docente era relativamente conceituada. Mas não foi por isso. Meteu-se-me na cabeça que havia de gostar de ser professor. E gostei do curso.
Acabaste o curso em que ano?
Em 1969. Ainda participei nas lutas académicas. Foram lutas muito acesas, esteve por lá a polícia de choque… Quando acabei, pus-me à procura de escola. Tinha as habilitações literárias, mas não tinha formação pedagógica. Era preciso fazer um estágio para se ingressar nos quadros. Estive dois anos na Escola Fernando Caldeira, em Águeda, a dar Português e Francês.
Como ingressaste no serviço militar?
Já há uma série de anos que tinha ido à inspeção, aqui em Aveiro, num edifício onde desemboca a Rua Von Haff. Eu e outros pusemo-nos em pelota, para o médico nos ver… Mas como andava a estudar, era permitido pedir adiamento da incorporação. Fui sempre adiando até acabar o curso e ainda dei os dois anos de aulas em Águeda. Só depois é que fui para a tropa, em Outubro de 1971.
Onde?
Em Mafra. Foi para lá que me mandaram ir. Estive lá seis meses. Os três primeiros meses era quando se fazia a recruta e os três seguintes eram para a especialidade. A mim calhou-me a infantaria. Lembro-me muito bem que os primeiros três meses, no fim do Outono, princípio do inverno, foram com um tempo radioso, sempre com sol. Os três meses de especialidade foram terríveis, sempre com chuva e frio. Lembro-me especialmente da semana de campo, de exercícios pelos montes, em que se dormia numas tendas miseráveis onde tinham de se encafuar três pessoas. Desse tempo guardo uma única boa recordação, além da camaradagem, que foi a preparação física com que saí de lá.
E depois de Mafra?
Fui para as Caldas da Rainha, para o Regimento de Infantaria 5. Ao contrário de Mafra, onde as condições eram péssimas, nas Caldas o quartel era relativamente recente. Quando acabei a especialidade, foi-me atribuído o posto de aspirante miliciano – era miliciano, ou seja, não era militar da academia militar. Fui colocado como instrutor, na escola de furriéis milicianos. Estive lá outros seis meses.
E foi então que vieste para Aveiro?
Foi. Em Novembro de 1972, penso eu, e fiquei até ao fim de 1974. Fui colocado ainda como aspirante no Regimento de Infantaria 10. Primeiro funcionou onde está agora a GNR, depois passou a funcionar ao pé do parque, no quartel que foi, entretanto, demolido. Quando foi o 25 de Abril, era aí que estava o RI10.
Que patente tinhas na altura?
Aí um ano depois passei a alferes.
Nessa altura já a família tinha sido atingida por uma tragédia, a morte do teu irmão na guerra…
Foi em 1971. Morreu em Angola, numa emboscada a norte de Luanda, ele e outro. Tinha 27 anos e dois filhos. E por essa razão não fui parar com os costados às colónias. Fiquei dispensado de ser mobilizado para o Ultramar. Os meus camaradas de curso em Mafra foram todos, sem exceção, para África.
Na tua juventude, início da vida adulta, sentias de alguma maneira a opressão do regime?
Sim, isso sentia-se. Havia muita reserva da parte das pessoas, evitavam falar em público a não ser em rodas restritas com quem se tinha confiança. Havia medo, a PIDE andava sempre alerta. Havia um clima de opressão e tinha-se notícias de pessoas que eram presas. O meu irmão ainda esteve uns dias preso no Porto, na Rua do Heroísmo. Houve uma altura em que conseguiu arranjar uma ou duas pistolas. Não era para se pôr aos tiros, mas tinha a mania das armas - também era caçador, como o meu pai. Sei que através de alguém a PIDE soube que ele tinha pistolas, alguém fez a denúncia. E a PIDE um dia, quase ao alvorecer, foi bater à porta. Dois fulanos levaram o meu irmão para o Porto. Era assim que as coisas funcionavam. A PIDE era omnipresente.
Tu tinhas 20 e tal anos, não?
Quando foi o 25 de Abril eu tinha 29 anos. Tinha bastantes leituras de assuntos relacionados com política. Tinha bastante consciência do regime em que vivíamos. Guardo uma boa recordação de uma livraria que já não existe, que era a Vieira da Cunha, já não te deves lembrar…
[A Livraria Vieira da Cunha situava-se no início da Rua Agostinho Pinheiro. Já fechou há muitos anos]
Não sei se não lembro. Não era na avenida?
Quase em frente ao Teatro Avenida…
Pois. Tenho uma vaga memória dessa livraria…
Fui conhecendo o senhor, embora não tivesse confiança por aí além com ele. Como livreiro lá conseguia arranjar os livros que só se arranjavam clandestinamente, e que eram postas à venda clandestinamente. A censura era implacável. Eu ia lá com frequência. Tinha uma espécie de uns fundos na loja, e quando ia lá lembro-me de ele dizer, em surdina, “tenho ali uma coisa interessante”. E também comprava discos…
Tens uma boa coleção de discos de vinil…
São para ti.
E entretanto conheceste a mãe…
Só depois do 25 de Abril. Acabei o serviço militar em Outubro de 1974, fiz três anos certos. Também estava aqui no quartel o Artur, meu cunhado e teu tio. Ele era familiar por parte da mãe de um dirigente comunista, o Francisco Miguel, que era do Alentejo e esteve preso muitos anos. Conheci o Artur na tropa e conheci a mãe por intermédio dele, em fins de 1974. E quando acabei o serviço militar e passei à reserva como tenente, tratei de fazer a minha vida. Comecei a dar aulas no Magistério Primário, dois anos, até 1976.
[Francisco Miguel nasceu em Baleizão, Beja, em 1907, filho de camponeses pobres. Na década de 1930 aderiu ao PCP e entrou na clandestinidade. Foi dos presos políticos que mais tempo passou encarcerado, num total de 21 anos, no Tarrafal, Caxias ou Peniche. Morreu em 1988]
E depois fizeste a tua vida como professor…
Depois fui para a Escola João Afonso fazer o estágio. Ainda estive lá três anos, onde também fui orientador de estágio. Depois fui colocado em Esgueira, onde fiquei até ao fim.
Aveiro nesse tempo era uma cidade muito diferente…
Era muito mais pequena, mais pacata. Quando eu era miúdo e adolescente, Aveiro-cidade era completamente separada dos arredores, como Esgueira. Eram mundos diferentes.
Havia muita pobreza?
Havia. As condições de vida nesse tempo eram más. Quando acabei a escola primária só eu e outro colega é que continuámos estudos para o liceu. Todos os outros foram trabalhar – começava-se a trabalhar com 10 ou 11 anos. As pessoas atualmente, das gerações mais novas, não têm ideia de como eram as condições de vida. Ainda me lembro de ver muita gente descalça.
Mas a tua família apesar de tudo vivia com algum conforto?
Era uma família da pequena burguesia. Não éramos ricos, longe disso. O meu pai começou por ser empregado de escritório, a minha mãe nunca exerceu.