Santa Joana recolheu a Aveiro, a sua pequena Lisboa, a 4 de agosto de 1472, para professar o catolicismo e proteger a castidade. Desfez-se da frivolidade e do desejo pecaminoso no convento da vila, entregando-se ao divino. Confiança em derrotar o chamamento vicioso reforçada pelas paredes grossas e pelo gradeamento do edifício. Despediu-se da corte real e libertou o corpo da concupiscência de príncipes, monarcas em tirocínio, para se oferecer em matrimónio divino ao ente superior que fez Jesus seu filho através do prestimoso ventre de Maria. Ter optado por este lugar, suas terras, suas gentes, de quem recebia galináceos e ovos, legou um selo de santidade à povoação em que o rio Vouga desagua na Ria de Aveiro. Imaculada e pia, Joana, mereceria, tempos afora, cortejos de veneração e séculos de páginas de fervorosa hagiologia. Santinha de devoção religiosa, descansa em túmulo real, peça que orgulha o museu que ostenta o nome da filha do Rei Senhor D. Afonso V.
Seria fresco o interior do convento, ouvia-se o lento correr da água do repuxo remetido ao centro do claustro, na geometria correta que o media a exata distância de qualquer dos acessos ao terraço. O silêncio sofria apenas leves perturbações: a do tecido da roupa alisada pela engomadeira, a da casca a estalar quando o ovo era pouco mais que encostado ao rebordo da bacia, em que cairia somente a gema, e a do rumor do roedor que achara, para consolar a fome, os cereais na despensa.
Santa Joana morreu em 1490, ao transitar para o paraíso, as flores desabrocharam e fizeram também a vénia com o aroma afrodisíaco das pétalas. A natureza reconheceu a suavidade da primavera e a elegância do voo da andorinha na princesinha, a que contrariou a vontade do Africano, cognome atribuído ao pai, habituado aos verões tórridos e conseguiu fugir dos músculos de um dos soberanos nórdicos que ambicionavam desposá-la, apertá-la na alcova, tomar os seus seios nas mãos longas de guerreiro e depois dessedentar o instinto lascivo.
Joaninha morrera e os anjos terão esvoaçado por desconhecerem o sentimento da raiva e ziguezagueavam no ar como as moscas doidas a predizerem a tempestade brutal ou o crime cruel. Cansados, recolhiam à invisibilidade. Os cães magros que vagueavam durante o dia farejavam-nos, sabiam que os querubins estavam ali, mas a matéria incomestível de que supostamente são feitos justificavam a indiferença dos animais. Os canídeos deitavam-se na gravilha e esperavam o ressoar das solas no chão do calçado da senhora que lhes traria pedaços de comida da cozinha. Entretanto, coçavam o focinho como se barbeassem e a língua descia ao pelo e rodava enfim em torno do sexo.
As manhãs zumbiam com as orações, a oratória nascida e criada na arte de saber pedir a clemência, a misericórdia, a virtude, o pão, a água, o vinho, a saúde, a colheita e a ventura dos céus. As palavras eram sopesadas e associadas de maneira a agradarem a Deus, admirando a obra da criação, santificando mais o seu nome, solicitando a sua justiça e a sua bondade, reservando um lugar no reino dos justos e dos bons.
O véu cobre-lhe o cabelo, oculta a cor e o comprimento. A veste longa esconde-lhe os traços da feminilidade. O rosto exprime os sinais de reprodutibilidade da espécie, potenciais filhos, fortes, saudáveis, a crescerem nos jardins dos palácios, debaixo de árvores de ramos frondosos em que recebem as lições dos perceptores envelhecidos. No rosto dela vemos a brancura da tez, lemos a luminosidade da aura, tendo a tela muito azul do firmamento de maio como cenário de fundo. Um cartaz ambulante faz-nos sentir a paz celestial. Consagra ao público da procissão a sensação da imperturbabilidade cósmica que o cinema de ficção científica espacial teima em corromper com os filmes de alienígenas feios, disformes, grotescos, hostis, amorais, muito distantes da beleza e da ética dos seres humanos.