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Os Invisíveis III: “De maneira que somos três moradores”

Sociedade

Benilde Neves nasceu no ano em que eclodiu a II Guerra Mundial. Hoje, com 85 anos, é uma das últimas habitantes do Saidinho, um pequeno lugar na zona serrana de Anadia. Telefono-lhe e digo-lhe que a quero entrevistar. Ela pergunta porquê, ouve a resposta e diz que sim. Digo-lhe que vou tentar não me perder no caminho até lá. Responde-me: "Se o senhor se perder, alguém o há de encontrar". E ri-se. No dia combinado, um sábado de manhã, recebe-me de saia azul, blusa branca e fio ao pescoço, como se fosse a convidada de um casamento. “Está muito bonita”, elogio. Fora convidada para a festa de aniversário da biblioteca de Anadia, marcada para a tarde daquele dia, explica. Com o seu cabelo grisalho curtinho, convida-me a entrar e encaminha-me para uma pequena sala com uma mesa ao centro e um aparador a um canto onde repousam várias fotografias da família. Sentamo-nos, põe as mãos no regaço e começamos a falar.

 

Nasceu aqui, no Saidinho?

Nasci cá, acolá em baixo num curralito. Se fosse hoje ninguém vivia num sítio daqueles. Mas era o que havia naquele tempo.

 

Dantes as coisas eram muito diferentes…

Era muito diferente. Os meus pais casaram e o meu avô, pai da minha mãe, tinha aquela casinha, que já era de umas pessoas muito mais antigas, e a minha mãe foi para lá. Nem se devia chamar casa, hoje talvez servisse para ter algum animal. Foi lá que nasci e que fui criada, até aos 14 anos. A minha mãe não tinha onde nos deitar. Havia uma velhinha que era viúva e vivia sozinha – tinha dois filhos mas estavam em Ferreiros – e eu ia dormir com essa velhinha, e a minha irmã mais velha ia dormir a casa dos meus avós, porque o meu avô já se podia dizer que tinha uma casinha; a minha irmã mais nova também lá nasceu e o meu pai era muito habilidoso e fez uma caminha, que pôs numa espécie de quarto – pelo menos já tinha uma porta -, ao fundo da cama dos meus pais. Eu também lá cheguei a dormir às vezes, quando a velhinha ia a Ferreiros, a casa dos filhos. O meu irmão, que é o mais novo, ainda nasceu lá e também ainda veio de lá já garotito. Depois o meu pai lá fez uma casa.

 

Os seus pais e os seus avós eram todos daqui ou vieram de outros sítios?

O pai da minha mãe veio de um lugar chamado Pardieiro, da freguesia de Avelãs de Cima. A minha avó era daqui. Encontraram-se no Brasil. Antigamente não havia ganhos nenhuns para quem queria fazer uma casinha. Iam ao Brasil um tempo e ganhavam alguma coisinha. O meu avô encontrou a minha avó lá no Brasil e depois casaram.

 

Mas não se conheciam antes?

Não.

 

Nessa altura havia muita pobreza…

Muita. O meu avô depois veio e comprou umas terrinhas para amanhar, que era só silvas. Ele é que roçou essas silvas e cultivou as terras. Muita gente ia para o Brasil e compravam terras para as amanhar. Hoje estão cheias de eucaliptos, ou de carvalhos… Hoje já não há nada amanhado.

 

Já quase ninguém faz agricultura…

Só por aqui alguma coisita, à volta da povoação. Mas de resto já não se faz nada. O meu avô entregou à minha mãe e a minha mãe cultivou uns anos e depois quando começaram a ficar velhotes entregaram aos filhos, eu e os meus irmãos. Nessa altura ainda era tudo amanhado, até Fontemanha. Mais tarde começaram a vir os porcos-bravos que derretiam tudo – e agora andam aí outra vez. E então agora só há por aí uns bocaditos, porque também já há muito pouquinha gente. Aqui no Saidinho somos praticamente quatro moradores, e uma delas tem aqui uma casinha mas o marido foi para o Luxemburgo e agora foi um filho, e ela trabalha fora e praticamente só vem dormir. De maneira que somos três moradores, todos irmãos. E estamos todos velhos.

 

Os seus pais trabalhavam na agricultura…

Trabalhavam na agricultura. Hoje é só eucaliptos, quando a gente olha para um lado ou para outro só vê eucaliptos… Naquele tempo havia pinhais e então uma coisa que dava algum resultado era a resina. O meu pai foi resineiro, e mais tarde o patrão dele, que era de Mortágua, pôs o meu pai como chefe dos outros resineiros. O meu pai ganhou algum dinheirinho com a resina e com os rebanhos do gado. Eu guardei gado e as minhas irmãs também.

 

A dona Benilde começou a trabalhar muito cedo…

Era pequenita. O meu pai fazia uns poceiros com vime – hoje é tudo plástico mas naquele tempo não – e eu e a minha mãe íamos para as terras e ela botava umas ervilhas e eu vinha toda contente com o poceiro à cabeça.

 

Mas andou na escola?

Andei. Mas quando cheguei à idade a escola do Saidinho não tinha professor.

 

Foi fazer a escola para onde?

Os meus pais levaram-me para a freguesia de Avelãs de Cima. O meu avô era do Pardieiro mas tinha um irmão que casou na Candieira e uma filha dele a minha mãe convidou para ser minha madrinha. E então os meus pais falaram com o pai da minha madrinha para perguntar se me aceitava lá, para ir para a escola de Boialvo. E então levaram-me para lá, só que foi uma desgraça.

 

Porquê?

Eu era pequenita e tinha saudades das minhas irmãs, dos meus pais, de tudo. Chorava sempre.

 

Vivia onde?

Na Candieira, em casa da minha madrinha, e ia para escola de Boialvo com as outras meninas da Candieira.

 

A pé…

Pois.

 

Era uma distância grande?

Ainda é. Havia lá uma senhora que era muito nossa amiga e tinha umas netas que também iam para a escola e de manhã, quando estava muito frio, essa senhora já tinha uma panelinha de batatas cozidas com a pele e quando a gente ia para a escola dava uma batata a escaldar a cada uma de nós, e a gente ia mudando a batata de uma mão para a outra para aquecer as mãos.

 

[Pela actual estrada, Candieira e Boialvo ficam a uma distância de 2,6 quilómetros]

 

Gostava de andar na escola?

Gostava, mas estava longe da família. E quando vinha da escola ainda tinha de ir trabalhar. Sabe qual era o meu trabalho? Havia muitos poços na Candieira e cada poço tinha um engenho e eu ia tocar o boi para ele andar de volta do poço. E também fazia outras coisas.

 

Quanto tempo ficou na escola de Boialvo?

Só lá estive um ano. De vez em quando os meus pais iam lá, porque também tinham saudades, levar-me alguma roupinha ou assim, e eu chorava sempre. Eu queria vir embora e uma vez foram-me buscar. E então vim para cá. Mas a minha mãe disse: “nós fomos-te buscar, mas tens de ir para escola”. E então qual era o meu castigo? Era ir daqui para Ferreiros. A minha irmã estava em Vale da Mó, em casa da madrinha, e ela ia mais os meninos de Vale da Mó para a escola de Ferreiros. E uma vez que eu também tinha que ir para a escola a minha mãe foi buscar a minha irmã para casa e assim já íamos as duas. E o meu cunhado, que morava naquela aldeia daquele lado, também ia – íamos os três.

 

A partir daqui do Saidinho…

Sim.

 

Daqui a Ferreiros ainda é longe…

É muito longe. Íamos a pé e não havia estradas como agora, eram carreiritos para os carros dos bois, era só o que havia. Umas vezes íamos nesses caminhos e outras vezes íamos por uns atalhos.

 

Quanto tempo demoravam a chegar à escola?

Havia uma loja lá em frente, no largo, que a gente quando passava olhava pela porta dentro e via o relógio na parede. A gente às vezes passava lá era quase meio-dia, porque a gente também brincava pelo caminho. Mas a professora nunca nos disse nada porque sabia que era muito longe.

 

[Pela estrada actual, Ferreiros fica a 7,2 quilómetros do Saidinho]

 

E então completou a escola em Ferreiros?

Depois veio uma senhora que não era professora, era regente, e eu fui fazer o exame de terceira classe a Ferreiros. Não tenho quarta classe.

 

Alguma vez levou uma reguada?

Não. Nunca levei. Nessa altura davam muitas reguadas. Cada erro eram umas tantas reguadas, mas eu não dava erros. Era boa aluna. O pai da minha madrinha dizia “eu pago para tu seres professora” mas depois veio uma dessas doenças e levou-o.

 

Viveu sempre aqui…

Vivi sempre.

 

Quando é que saiu de casa dos seus pais?

Eu fui a última das irmãs a casar. Casei e ficámos em casa dos meus pais cinco anos. A gente não tinha dinheiro nenhum.

 

O seu marido fazia o quê?

Trabalhava no campo. O meu pai tinha muitas terras e a gente em casa tinha fartura das coisas das terras, mas dinheiro era um problema. Para comprar alguma coisita o meu pai vendia um chibo ou um carneiro ou uma cabra. Vivia-se com muita dificuldade.

 

Aqui no Saidinho havia mercearia?

Nada. A gente ia a Ferreiros, mas depois também veio a guerra e tínhamos que levar umas senhas e só nos davam aquilo, não vendiam mais nada – um x de arroz, um x de açúcar… A gente comia do que criava nas terras. Alguma vez a gente comia como come agora? Não. A gente comia uma galinha por festa. Pelo ano adiante a gente levava as galinhas para as vender em Anadia para comprar sardinha, e vendia ovos… Também vinham peixeiros aqui pelas portas e vendiam a sardinha ou o carapau e se a gente tivesse ovos para vender trocava-se.

 

Então aqui nunca houve nenhuma loja…

Houve mais tarde uma lojinha, que vendia açúcar, arroz, café, marmelada… E tinha telefone público.

 

Nessa altura vivia muita gente aqui?

Vivia, porque havia muita garotada. Os casais tinham todos muitos filhos.

 

Voltando atrás outra vez. Saíram de casa dos seus pais cinco anos depois de casarem…

A casa dos meus pais não tinha luxos e tinha os quartinhos muito pequenos e eu tive o primeiro filho e depois o segundo e a minha mãe não me podia dispensar mais nenhum quarto. Comprei uma caminha para o mais velho – a minha cama era de um lado e a dele era do outro – e tinha o berço do pequenito no meio. Passámos para uma casinha na aldeia, com dois quartinhos e uma salinha e uma cozinha com forno para cozer a broa. Vivemos lá quatro anos, mas a casa não era nossa.

 

Mudaram-se para outra casa?

O meu marido arranjou um emprego na Malaposta, por conta de uma fábrica. O meu pai deu-lhe uma bicicleta velha e ele ia de bicicleta para a Malaposta – tinha de ir sempre, mesmo com frio e geada. Depois foi para Mortágua e para Arganil, mas nessa altura já tinha uma motorizadazita velha. Os meus filhos já eram mais grauditos e eu ia ganhar algum dinheiro na agricultura. Trabalhei em tudo quanto houve: rocei mato, cavei terra, tirei estrume, trabalhei nos pinhais…

 

[Do Saidinho para a Malaposta são mais de 15 quilómetros pela estrada actual]

 

Juntaram dinheiro para construir a vossa casa?

Não tínhamos que chegasse. O costume de quem não tinha dinheiro era botar telhado, depois arranjar a cozinha e um quarto e depois iam acabando. Foi o que nós fizemos. É esta casa. Trabalhei muito nesta casa. Às vezes penso que quando morrer e tiver de ir para algum lado vou ter muitas saudades da minha casa.

 

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Entretanto a dona Benilde ficou viúva…

Fez agora 12 anos. Vivi com ele 53 anos, e namorámos sete, porque ele teve de esperar que eu me acabasse de criar.

 

Como é que se conheceram?

Eu já o conhecia. Mas um dia o meu pai perguntou ao meu sogro se deixava vir o filho para cá para semear as terras e ele veio, primeiro semana sim semana não e depois veio o tempo inteiro. Mas tive muito rapaz que me queria…

 

Era uma mulher bonita…

Não, nunca fui bonita.

 

Ora essa, ainda hoje é tão bonita…

Não, não era. Está acolá [aponta para uma moldura na parede]… Era simpática e muito faladeira, como sou agora.

 

Sempre gostou de falar…

Ai, eu sempre gostei de falar. Se for a um sítio qualquer e ninguém falar para mim falo eu. Sou assim. Sou pior que uma cigarreira.

 

Os seus filhos foram para a América, não foi?

A minha irmã mais nova esteve na América 23 anos e levou já os filhos todos daqui. O meu cunhado foi primeiro, como motorista. O meu sobrinho mais velho, quando vinham cá de férias, desafiava o meu filho para ir para a América e ele dizia-me que eu o tinha de levar à América. Eu dizia-lhe “eu nunca entro para dentro de um avião, eu posso morrer mas não é num acidente de avião”. Mas ele ia falando e um dia lá fui, depois de uma conversa com o meu irmão. Foi muito mau para mim, chorei muito. E depois os outros filhos também começaram todos a dizer que também queriam ir – e o que é certo é que fui à América sete vezes.

 

[A família radicou-se em Patchogue, no estado de Nova Iorque]

 

A dona Benilde nunca pensou em ficar lá?

Não porque eu tinha a minha vida aqui. Tinha ovelhas, tinha cabras, tinha porcos, tinha galinhas, tinha coelhos, tinha tudo… Mas quando lá ia trabalhei sempre. Arranjei sempre trabalho.

 

Então ficava lá períodos grandes…

Nunca eram períodos muito grandes, mas sempre arranjei trabalho.

 

O que é que fazia?

A primeira vez trabalhei num restaurante português – pagavam 3 dólares à hora, era um ordenado muito pequenino, mas como 1 dólar em Portugal rendia 150 escudos eu já tirava um bom ordenado. Quando voltei fui outra vez para o restaurante mas depois apareceu lá uma portuguesa que me arranjou trabalho numa fábrica de fazer carteiras de senhora, sacos de viagem… Tive de aprender. Também trabalhei numa ouriversaria e casa de penhores, nas limpezas… Aí, já ganhava 10 dólares à hora. Pude comprar esta mobília, um carro…

 

Tirou a carta de condução com que idade?

Já tinha 40 e tais. Comprei um Renault 9 mas dei umas voltas com ele e acabei por deixar.

 

Lá na América aprendeu a falar inglês?

Não. Sei o nome das coisas, mas não sei fazer uma conversa. A mim chamavam-me Nilde – ninguém sabia dizer o meu nome e eu batizei-me a mim própria de Nilde.

 

Os seus filhos vão ficar na América?

Até ver só um voltou.

 

E como são agora os seus dias aqui no Saidinho?

Tenho as minhas hortas – semeei feijão, cebolas, tomateiros, batatas… Vou-lhe dizer uma coisa que não sabe o que é. Sabe o que é um farpão?

 

Acho que não…

É uma coisa que tem três dentes de ferro e andei a arrancar as batatas com esse farpão. Ainda trabalho. Cuido das videiras, também.

 

E ainda escreves os seus poemas…

Ainda vou escrevendo. Mas a minha ideia já não está como era. Agora fiz um pequenininho, deixa ver se ainda me lembro: No dia da apresentação do meu livrinho, Deram-me tanto amor e carinho, Coisa que eu não contava, O meu coração sorriu, Com tanta alegria minha, Tantas palmas que bateram, A uma simples velhinha.

 

[Benilde Neves tem um livro de poemas editado, intitulado “Dos olhos meus”. Foi lançado pelo município de Anadia em Outubro de 2023, com apresentação na Biblioteca Municipal]

 

A dona Benilde tem cá uma memória…

Tenho uma memória boa, mas agora para decorar tenho de ir ver ao papel.

 

A dona Benilde tem um livro de poemas e há um professor que publica os seus poemas no Facebook. É uma mulher famosa…

Sou famosa sou… Mas aquilo que botam no Facebook muitas vezes nem vejo. Não tenho computador nem desses telemóveis [aponta para o meu telemóvel, pousado em cima da mesa]. Aqui nem há rede… Com o meu telemóvel pequenito às vezes vou procurar onde há rede.

 

Como é viver numa aldeia quase vazia?

É triste. Pode-me acontecer alguma coisa num dia em que não está ninguém no Saidinho… Sinto-me sozinha e triste. O Saidinho agora é uma aldeia morta. A gente vai rua abaixo, rua acima e não encontra ninguém.

 

É quase hora de almoço, vou deixá-la em paz…

Se calhar não disse nada que preste…

 

Pelo contrário. Gosto sempre de falar consigo…

Eu também gosto de falar com o senhor. Tinha mais para dizer, mas ficávamos aqui a manhã toda.

 

Despeço-me dela e caminho até ao carro, estacionado junto à antiga escola. Quando passo sentado ao volante, Benilde aguarda-me à porta de casa. Aceno-lhe e ela, de sorriso nos lábios, leva a mão à boca, beija-a e lança-a na minha direção. É um gesto comovedor. Para ela o dia mede-se em horas de solidão e eu subtraí uma hora a esse triste calendário. Não tenho a presunção de me sentir especial para esta velha mulher a não ser por isso. Penetrei naquela cápsula de isolamento, sentei-me a uma mesa com ela e escutei-a. Fazer os outros felizes às vezes é o mais simples dos empreendimentos.

 

No nº 4 de Os Invisíveis, converso com um pedinte de Aveiro.

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