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“Uma pequena vida”: uma lição de (des)humanidade e de esperança

Opinião

A Páginas Tantas

Filipa Matias Magalhães*

Confesso-vos que este foi, sem dúvida alguma, um dos melhores livros que já li em toda a minha vida. Uma surpresa e um livro que sei que nunca vou esquecer!

Não conhecia a Hanya Yanagihara e fiquei maravilhada com a sua escrita intensa e tão dura e real, quanto envolvente e emocionante. Só mesmo uma escritora com um talento gigante é capaz de descrever acontecimentos e sentimentos tão profundos de forma a transportar o leitor para a pele e alma dos protagonistas. Foi uma leitura muito intensa e que me trouxe muitas vezes lágrimas aos olhos e uma dor no coração, mas conhecer todos estes sentimentos é bom para nos reavivar o conhecimento dos limites (ou a ausência deles) da crueldade humana e, sobretudo, do poder da esperança. E o poder das pessoas boas, da amizade e do amor. Retiro do livro um elogio da bondade e do seu poder por oposição a tudo o que o ser humano tem de mau. E levo também esta mensagem da importância de acreditar em nós e nos dias melhores que virão, por muito que possam tardar em vir.

O livro “Uma pequena vida” ainda não teve o destaque e os prémios que merece, mas garanto-vos que, se a autora não ganhar um dia o Prémio Nobel da Literatura, será uma tremenda injustiça, pois o talento dela é enorme, muito maior do que a dimensão do livro – e estamos a falar de um livro de mais de 700 páginas em que a dificuldade é parar de ler. Até à data, este livro já foi selecionado para o Prémio Man Booker de ficção de 2015, ganhou o galardão do Prémio Feminino de Ficção em 2016, do Prémio Kirkus de ficção em 2015, tendo ainda sido selecionado para o prémio do National Book Award. Mas estou certa de que terá muitos, muitos mais, prémios e menções honrosas e que vai marcar de forma profunda todos os que se atreverem a lê-lo, como espero que seja o vosso caso.

Mas chega de títulos, porque este livro é muito mais do que isto. Este foi aquele livro que, apesar de saber que cada página me ia perturbar e deixar profundamente incomodada, aguardava todos os dias com ansiedade pela hora de me refugiar nesta leitura e conhecer mais um bocadinho da história de Jude e de todos aqueles que lhe permitiram, em escassos momentos da sua vida, esquecer o duro passado que resiste a contar.

São mais de 700 páginas que relatam uma vida duríssima (tão dura que até duvidamos que possa ser real – e a autora é brilhante por conseguir entrar na pele e na cabeça do protagonista e nos fazer sentir o seu sofrimento, inclusivamente a dor física, dilacerante!). É o relato de acontecimentos protagonizados por seres humanos monstruosos e da destruição que causam na vida de quem tem o azar de se cruzar com eles e de como é difícil viver e ter esperança num contexto de sofrimento, maus tratos e abusos e ausência de tudo, até de uma família e do amor que todos merecem… Jude teve uma infância, adolescência e juventude onde tudo falhou, tudo mesmo! Mas a amizade vem, embora tardia, e chega com toda a bondade e verdade que as amizades genuínas têm e a sua capacidade de regenerar o possível e de trazer aquela luz possível a um contexto de trevas.

E, por isso, este livro é também, e sobretudo, um livro sobre o poder (enorme!) da amizade e do amor, que emergem, embora de forma ténue, das trevas e do lado negro (muito negro) da humanidade. Vale muito a pena conhecer a história de Jude e dos três amigos que conhece na Universidade em Massachusetts e que juntos, se mudam para Nova Iorque, onde começam a sua vida adulta.

O poder da amizade e da sua capacidade regeneradora é, de facto, uma das mensagens mais presentes neste livro, não só pelos momentos vividos por estes quatro amigos e outros que os rodeiam, mas também pelas mensagens constantes sobre a importância da amizade. “Vou dizer-te uma coisa que possivelmente não vais entender, mas talvez entendas dentro de uns anos. A amizade tem um único segredo, acho eu: encontrarmos pessoas melhores que nós. Não me refiro a pessoas mais espertas ou mais fixes, mas sim a pessoas mais bondosas, mais generosas, mais capazes de perdoar. Nessa altura, compete-nos saber aprender com elas, tentar escutar quando nos dizem algo sobre nos mesmos, seja uma crítica ou um elogio, e confiar nela, que é o mais difícil. Mas também é a maior recompensa.”

Revi-me totalmente nestas palavras, pois também eu considero que a amizade tem, tal como o amor verdadeiro, o poder de nos tornar melhores.

A construção das personagens que integram este núcleo de amigos, é muito interessante até pela oportunidade que nos dá de conhecer e refletir sobre muitos dos problemas da sociedade e da juventude. Cada amigo é, e representa, um traço, caraterística ou problema da sociedade sobre o qual é importante refletir e a autora – embora claramente o livro seja essencialmente sobre a vida de Jude – conta-nos as histórias e a vida dos seus amigos e faz com que estas histórias satélite sejam, também elas, extremamente ricas.

Jude, apesar da dureza da sua infância e juventude, tornou-se um aluno brilhante e um ser humano de uma enorme generosidade para com os seus e os que dele precisam, de uma dedicação singular, embora muito complexo e reservado e, no campo profissional, revela-se extremamente combativo e lutador. Jude refuta a ideia de que os abusados se tornam, necessária e inevitavelmente abusadores… não foi assim com Jude e, por isso, este livro é também uma história da vitória do bem e uma luz de esperança na bondade dos seres humanos – pelo menos, de alguns. O mais próximo de Jude, talvez pela sua infância menos feliz também, é Willem, por quem Jude se vem a apaixonar e os dois vivem uma história de amor e dedicação das mais bonitas que já li e vi. À semelhança de Jude, também Willem teve um início de vida duro, mas graças ao seu sonho sempre presente, ao trabalho árduo, resiliência, talento e beleza, tornou-se um ator brilhante, muito reconhecido e requisitado. De comum têm o facto de Jude nem sequer ter conhecido os pais, enquanto Willem, apesar de os ter conhecido, sempre teve uma relação muito distante e pouco afetuosa com eles e esse traço em comum dos dois permite-nos refletir sobre o papel dos pais no crescimento e na estrutura dos filhos e da falta que nos fazem.

A composição deste grupo é interessante também pelo facto de ter dois amigos com origens mais desfavorecidas e outros dois que vêm de um mundo privilegiado e se as diferenças financeiras e de estatuto social não os distanciam, a verdade é que as diferenças e os complexos que as mesmas determinam, estão presentes na sua vida. O terceiro amigo é JB, um jovem mimado pelas mães e pelas tias (ficou órfão de pai cedo), inteligente, mordaz e mais cruel do que Jude e Willem (embora a vida não lhe tenha trazido as amarguras que trouxe aos outros dois), que se afasta dos amigos a dada altura quando se afunda no vicio das drogas. Também aqui é muito interessante a luta dos amigos e a sua persistência para o “recuperar” mesmo quando este parece tê-los abandonado. Esta é mais uma das provas de fogo desta bela e resistente amizade a quatro que resiste a mais esta prova de fogo e libertam JB do vício. O quarto elemento do grupo, possivelmente o mais equilibrado, menos complexo, mas o que traz serenidade e união a todos é Malcolm, um arquiteto de famílias privilegiadas e a quem o privilégio financeiro colocou a salvo da discriminação racial – que, fosse ele pobre, sabe bem que seria inevitável. Mas apesar de tantos privilégios e de uma vida tao ausente de problemas, Malcolm é dono de uma enorme sensatez e de uma grande dedicação e é, em tantos momentos da vida de todos, o elemento aglutinador. Cada um tem um papel e lugar especial no grupo dos quatro. Como Jude diz, “Na instituição, depressa aprendera que há três tipos de rapazes: os que começam a luta (JB); os que não lutam, mas também não vão chamar um adulto para lhe por fim (Malcolm); e os que tentam ajudar a vítima (sendo esse o tipo mais raro e aquele a que Willem obviamente pertencia.)”. E são todos, e outros amigos que os rodeiam, essenciais na história e na vida de Jude.

E se comecei por vos falar na mensagem mais bonita do livro, porque precisei de me agarrar a essa parte para conseguir suportar a parte dura - talvez dos livros mais duros que li – deste livro, não posso deixar de falar neste outro lado do livro que, acredito, possa fazer com que alguns hesitem quanto à sua leitura. Mas privarem-se da leitura deste livro fabuloso com receio do que a mesma vos possa fazer sentir será como provarem-se do amor, com receio das desilusões que este comporta. Não o façam!!! Deem a vocês próprios este presente que é experienciar a dureza e a beleza do ser humano e de tudo aquilo que a vida nos faz sentir.

Tenho a perfeita noção de que há vidas muito duras e que há pessoas a quem a vida traz muita tristeza e dificuldades praticamente desde o início. A autora tem a generosidade e cuidado de não nos contar logo a história toda de Jude, fazendo com que esta se revele aos poucos e de forma intercalada com outras histórias e acontecimentos que nos dão o balão de oxigénio necessário para o que se segue, mas foi chocante ir juntando os pedaços da vida de Jude – órfão que é criado num mosteiro, foge desse lugar à procura de uma vida melhor, mas a vida ainda foi pior, é levado para uma casa de acolhimento onde o pesadelo continua e depois vive em famílias de acolhimento – e perceber que ao longo da sua vida, o abuso sexual e os maus tratos foram uma constante, quase sempre perpetrados por aqueles em quem depositou confiança e que dele abusaram de uma forma hedionda e desumana. Porque esta é, tantas vezes, a triste realidade. Acreditem que, poucos foram os episódios da vida real ou ficcionada que me revoltaram tanto e me fizeram ter tanto a noção de que há pessoas muito más (mesmo muito más), com uma mente distorcida e que não têm a menor empatia e amor no coração. Jude contraria o estereótipo de que os abusados se tornam abusadores. Jude cresce e torna-se uma pessoa boa, solidária, dedicada aos amigos, para além de se ter tornado um advogado genial (com um curso em matemática aplicada para se entreter). Mas Jude é, sobretudo, uma pessoa profundamente destroçada, a quem a vida deixou de herança doenças físicas e uma saúde mental completamente destruída. A ausência de esperança e a incapacidade de se aceitar como uma pessoa merecedora de coisas boas são, até mesmo para alguém com uma capacidade intelectual acima da média, difíceis de aceitar, porque o passado pesa muito e as marcas – inclusive as marcas físicas – que lhe deixaram, são impossíveis de esquecer.

É por isso que é tão difícil para Jude acreditar que a vida lhe pode ser boa: “Mas o que era a felicidade senão uma extravagância, um estado que é impossível de manter, em parte, por ser tão difícil traduzir por palavras? Não se lembrava de, em criança, saber definir a felicidade. Havia apenas a tristeza ou o medo e a ausência de um e outro, bastando-lhe a segunda.” Porque, por vezes, e sabemos que isto acontece com tantas vítimas, as pessoas acreditam ser merecedoras do mal que os outros lhe fazem e ser essa a sua “sina”, desconfiando das pessoas boas e das boas coisas que lhes acontecem, por se terem habituado à maldade. “Na vida, Jude, podem acontecer coisas boas a boas pessoas. Calma, não te assustes: não é ocorrência frequente como deveria ser. Mas, quando acontece, toca às boas pessoas limitar-se a dizer obrigado e seguir com a sua vida.”

Podia escrever-vos e falar-vos tanto deste livro, que amei desde o início até ao fim, pelos sentimentos que despertou em mim – e já vos disse, que nem sempre foram de felicidade e fé na humanidade – e também pelo que me fez pensar, pensar no ser humano, no que nos leva a ser o que somos e que faz com que alguns se desviem do seu lado humano e mergulhem na crueldade mais inumana. “Como se podia admitir que o Dr. Traylor e Willem eram a mesma classe de ser? Ou o padre Gabriel e Andy? Ou o irmão Luke e Harold? As características comuns ao primeiro grupo estariam presentes no segundo? Em caso afirmativo, o que levara o segundo grupo a fazer escolhas diferentes, o que os fizera decidir ser como eram? As coisas não se tinham simplesmente corrigido; dera-se uma reversão – a um grau quase absurdo. Não tinha nada e, de repente, descobriu-se a viver numa abundância quase indigna. Viria a lembrar-se muitas vezes do que Harold escrevera, que a vida compensa as perdas...”

Gostaria muito que lessem este livro… acreditem que daqui a uns anos será um livro de referência e espero também – porque os livros também têm esse poder transformador – um livro capaz de alertar para a sociedade doente que estamos a construir e para o sofrimento que causa a tantas e tantas pessoas. Se ler este livro fizer com que reforcemos a crença no amor e na amizade, e que estejamos mais atentos a todos os que precisam da nossa lancha de resgate, já estaremos a contribuir para um mundo mais bonito e pessoas mais felizes. “Em pequeno, sonhava com outros lugares e outras maneiras de viver, mas não conseguia visualizar nada disso. Ensinaram-lhe quem era e no que se tornaria e ele acreditou. Depois vieram os amigos, Ana, Lucien, Harold e Julia, que lhe imaginaram uma vida; que o viram de uma maneira muito diferente, como alguém que ele jamais se imaginara; que lhe permitiram acreditar em possibilidades que antes lhe teriam parecido inconcebíveis.”

Boas leituras e vemo-nos nas próximas páginas!

* Escreve, regularmente, a crónica literária "A Páginas Tantas"
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