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O que têm em comum José Saramago e Jon Fosse?

Opinião

A páginas tantas

 

Dois prémios Nobel da Literatura, o nosso José Saramago e o norueguês Jon Fosse, que além de terem em comum a excelência da escrita que os tornou legítimos merecedores do Nobel, o primeiro em 1998 e o segundo em 2023, têm em comum o facto de não precisarem de muita pontuação para que as suas histórias tenham a leitura e entoação correta!

Efetivamente, quando li a “Trilogia” de Jon Fosse, achei curioso, não só a simplicidade e clareza da escrita, que me encantaram, mas também um estilo que me fez lembrar muito o estilo – julgava eu até então, tão único – de José Saramago. Desde muito cedo que nos é incutida a importância da pontuação e, de facto, para a grande generalidade de nós, a pontuação é essencial para transmitir as ideias escritas com o sentido que lhes pretendemos dar e a sua ausência pode, inclusivamente, alterar todo o sentido das ideias.

Todavia, alguns génios literários, como José Saramago e Jon Fosse, têm a genialidade de não precisarem da “muleta” da pontuação para contarem e encantarem com as suas histórias.

O premio atribuído, este ano, a Jon Fosse vem reconhecer o trabalho de mais de quarenta anos, do escritor e dramaturgo norueguês em várias áreas da literatura: da poesia, ao romance e ao teatro, e a sua capacidade única para, nas palavras do Comité Nobel, ser “capaz de dizer o indizível com a sua escrita” e de nos “pôr diante do sublime”.

A mim, o que mais me encantou no seu livro “Trilogia”, composto por três novelas - “A vigilia”, “Os sonhos de Olav” e “Fadiga” – livro vencedor do prémio de literatura do Conselho Nórdico - , foi a sua capacidade de recorrer a histórias muito simples para nos apresentar personagens reais e encantadoras nas suas imperfeições.

Em “Trilogia”, Jon Fosse conta-nos a história de Asle e Alida, dois jovens à margem da sociedade, que procuram um lugar onde possam encontrar a calma e a felicidade e “fugir” do passado. Estas três novelas – Vigília, Os sonhos de Olav e Fadiga – que aparentemente parecerem não estarem relacionadas, são unidas por um fio condutor que considero ser a exclusão e discriminação social de todos aqueles que não se encaixam no padrão da normalidade, pelas razões mais simples ou até mesmo pela prática de um crime, e da tentativa que os excluídos fazem para se afastar da sua história e encontrarem um lugar onde possam ser felizes, esquecendo o passado que os persegue e começando do zero, num novo contexto e noutro lugar.

Na primeira novela – “A vigília” - Jon Fosse conta-nos a história de dois jovens, Asle e Alida que vagueiam na cidade para a qual fugiram, deixando para trás um passado de crime e de pecado, e que procuram um quarto para dormir naquela noite fria e chuvosa e a quem todas as portas se fecham. Este início da história tem uma notória inspiração bíblica pois, tal como Maria, quando percorria com José as ruas de Belém para encontrar um sítio para que Jesus pudesse nascer, também este casal viu todas as portas fecharem-se perante as suas súplicas. Tal como Maria, também Alida está grávida e desesperada, à procura de um local para repousar.

Esta reflexão e paralelismo com a bíblia apela à reflexão, fazendo-nos olhar através dos olhos dos marginalizados e percebendo a sua dificuldade em serem aceites, “... e porque é que ninguém lhes dava alojamento, talvez fosse porque todos podiam ver que Alida estava prestes a dar à luz, o que podia acontecer por um destes dias, a julgar pelo aspeto dela, ou seria pelo facto de eles não serem casados e portanto não serem realmente marido e mulher e não poderem ser considerados gente decente...”.

O autor deixa no ar várias perguntas sem resposta. Percebemos que os jovens fogem de alguma coisa, mas não percebemos logo de quê e porque razão todos lhes fecham as portas, apenas percebendo na última novela que os dois fogem do pecado e do crime e procuram um lugar onde não sejam julgados e postos de parte por causa disso. Esta é uma análise que é transversal às mais diversas situações e pertinente em vários contextos.

Embora não seja possível perceber logo no início o que une os dois jovens, vamos compreendendo pelo desenrolar da história que a relação entre eles tem na sua origem a música e que se tornaram inseparáveis desde o dia em que Alida ouve Asle a tocar violino e se recorda do pai a cantar. E o poder da música e das memórias é tão grande que desde esse dia que se tornam inseparáveis e o amor entre ambos cresce e evolui ao longo das três novelas, despertando e revelando outros sentimentos, como o espírito de proteção, de cuidado e de companheirismo.

Nas três novelas vamos encontrar uma ideia que se repete e que encerra uma sabedoria que transborda o contexto em que é expressa: “As coisas são como são, há pessoas que possuem coisas e outras que não possuem, diz ela.” É curiosa a forma como o autor mantém em paralelo a esperança de encontrar um lugar onde possam fugir e esquecer o passado que os persegue, com o sentimento sereno de que há coisas que não se conseguem mudar, por muito que se faça nesse sentido, e que nos devemos conformar com essa inevitabilidade. E, de facto, a sabedoria de vida ensina-nos que há coisas que não podemos mudar e que é melhor que nos conformemos com essa situação, ao invés de vivermos num constante estado de revolta.

Existe aqui um ténue paralelismo com o “Crime e Castigo”, de Dostoievski, na medida em que acompanhamos nestas três novelas a fuga do passado e o caminho interno de arrependimento e busca de perdão, bem como a impossibilidade de fugir sempre e de forma bem sucedida dos nossos “pecados”, mesmo que se mude de terra ou até de nome. Na segunda novela “Os Sonhos de Olav” os dois jovens mudam, novamente, de cidade, embora com o mesmo sonho (encontrar um lugar para serem felizes) e objetivo (fugir do passado), e acompanha-os a esperança de que os nomes diferentes lhes deem o anonimato desejado e o lugar de paz que procuram. Ao longo das três novelas que compõem o livro, acompanhamos o percurso físico dos protagonistas – que percorrem várias cidades em busca do lugar seguro – e também o seu percurso interno de redenção e busca de perdão, considerando que se se afastassem do local de origem deixariam para trás o seu passado. “Se nos ausentamos para longe uma vez, bem, então podem passar anos até que regressemos a casa.”

Gostei especialmente da forma como o autor torna cada uma das personagens humanas e reais e com caraterísticas que nos são comuns, convidando-nos a aceitá-las sem as julgar e até mesmo a sentir por elas simpatia. Uma das formas que o autor utiliza para o fazer é através da atribuição de sentimentos e comportamentos com os quais, necessariamente, nos identificamos, como acontece com a descrição da relação entre pais e filhos que nos leva, com frequência, a criticar nos nossos pais comportamentos que acabamos, de forma quase inevitável, por replicar, “...ela desata a rir e diz-lhe que não faça aquilo, que não se deve brincar com a comida, diz ela e Asle diz-lhe que ela agora soou precisamente como a mãe dela e ela responde oh não, isso não, mas com o tempo serei como ela, eu agora também já sou mãe e então virei provavelmente a ser como a minha mãe era”.

Nesta segunda cidade, Asle é seduzido por uma jovem que utiliza os seus encantos para lhe tirar o pouco dinheiro que Asle tem para que o casal se consiga alimentar e abrigar e também para comprar uma aliança para Alida para que a relação entre os dois se torne legítima aos olhos da sociedade. Após encontrar esta jovem, Asle acaba por conhecer os seus pais e a mãe critica o facto de a filha fazer o que faz e, mais uma vez, o estereotipo das relações entre pais e filhos é aqui relatado numa forma que sabemos ser tão comum a tantos pais e filhos e também o desejo que todos os pais têm de que os filhos tenham uma vida melhor do que a sua: “... já se viu algo mais estúpido, queixar-se da própria filha quando ela não foi melhor, diz ela e a Velha responde, quase a gritar, que naturalmente queria que a filha viesse a ter uma vida melhor do que ela teve e que sempre tentou fazer o que estava ao seu alcance para que isso acontecesse e afinal o reconhecimento é ser-se insultada pela própria e única filha...”(...) “... ela deve usar os seus caprichos para tentar arranjar uma vida digna e um rendimento digno, ela deve casar-se e tornar-se uma pessoa decente, deve arranjar marido e filhos, deve comportar-se bem, não deve entregar-se a diferentes homens por pouco ou nada, sim, sim, ela própria fizera isso e o que lhe restava agora por ter feito essa mesma vida, nada”. Mais uma vez, a dicotomia entre o bom e o mau, o correto e o incorreto, são objeto de uma interessante reflexão, na medida em que até Asle, que cometeu um crime do qual foge, sente alguma repugnância pela profissão da jovem que, em vão, o tenta seduzir. De facto, todos nós temos esta tendência de julgar e afastar aqueles que não se encaixam nos nossos padrões e valores mesmo quando, também nós, somos vítimas da discriminação de alguém.

Na última novela, “Fadiga”, assistimos ao culminar do percurso dos dois jovens, embora de forma muito distinta, dando alguma paz a Alida e a Asle o castigo pelos erros do passado, mostrando que nem sempre o arrependimento conduz ao perdão. De facto, nesta novela, Asle apenas aparece no pensamento e nos desejos de Alina que por ele espera, “... mas Asle não regressou, passaram dias, passaram noites, e Asle não regressou e ela não podia simplesmente ficar ali sentada em casa, sem comida, sem nada de nada e por isso empacotou todos os seus haveres em dois fardos e pôs-se a caminho de Bjorgvin...”.

Tal como Penélope, na Odisseia, também Alida espera por Asle nesta ultima novela da Trilogia, acreditando sempre no seu regresso e no poder do amor que os une, “... e Alida acredita que ela e Asle ainda são um casal de namorados e estão juntos, ele com ela, ela com ele, ela nele, ele nela, pensa Alida e olha em direção do mar e do céu, e vê Asle, vê que o céu é Asle, e sente o vento, e o vento é Asle, ele está ali, ele é o vento, mesmo que ele não exista, ainda continua ali presente...”.

Mas Asle não regressa e Alida acaba por mudar novamente de cidade, acompanhado por um compatriota que lhe oferece proteção e a leva para a cidade da qual Alina fugiu e lhe diz que a sua mãe, entretanto, morreu, “... e agora que a mãe morreu ela bem pode regressar a casa, mas não deixa de ser horrível que a mãe tenha morrido, isso é demasiado triste e ela já estava tao cansada”. E é no momento em que sabe que a mãe, com quem teve uma ma relação, morreu, que Alida, depois de durante a sua fuga, nunca ter sentido a sua falta, sente pela sua morte e revela um sentimento que todos identificamos: a falta que aqueles que nos abandonam nos fazem.

E é na sua cidade de origem, da qual tentou fugir durante tanto tempo, que Alida vai encontrar alguma paz, mas não o amor, porque esse, continua a ser por Asle que nunca esqueceu e a quem permanecera ligada para sempre, unindo-os o mar e a música “... e as ondas engolem Alida e Ales faz-se as ondas e continua a avançar, continua a caminhar mar adentro e corta as ondas ate que uma onda vem cobrir-lhe a cabeleira grisalha.”

Espero que as histórias simples e bonitas destas três novelas vos encantem tanto como me encantaram a mim!

Desejo-vos uma boa semana e boas leituras! Vemo-nos nas próximas páginas.

 

* Escreve, com regularidade, a crónica literária "A Páginas Tantas"

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