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A bola correu nas veias da cidade

Opinião

Virgílio António Nogueira

Desses tempos de correrias loucas ficou no chão o suor deslizado dos corpos, a entranhar-se nas fissuras que medeiam os cubos de calcário que atapetam o solo de azul e branco do adro (Largo Capitão Maia Magalhães), ficaram as gotas roliças de sabor salgado absorvidas pela gravilha do largo do Alboi (Largo Conselheiro Queiroz), sorvidas pelo cimento do ringue do parque municipal Infante D. Pedro, a azedar o relvado que crescia desordenado no Rossio. Mas, as antigas manhãs e as tardes de gloriosas partidas de futebol tinham também lugar nos campos das escolas, nas ruas da cidade e nos demais lugares em que se faziam balizas com pedras que se perfilavam como postes virtuais ou em que se adivinhavam balizas: duas árvores, dois portões de garagem ou dois bancos de jardim ganhavam um segundo sentido, uma função imprevista previamente.

Os miúdos, que éramos nós, também lá deixavam o sangue das pernas feridas por pés descuidados, dos braços esfolados nas contendas, dos cotovelos rasgados no alcatrão, dos narizes que os lenços não estancavam o espicho do líquido rubro transviado do aparelho circulatório por um vaso sanguíneo rebentado pela força do esférico que estoirou a narina ou por um braço adversário que atingiu a cara com violência.

Ficaram a vogar como fantasmas felizes os jogadorezinhos de então, esforçados na luta pela posse e domínio da bola, a tratá-la com a leveza do planeta suspenso, sobre o qual se pretendia exercer o divino poder de controlar o movimento do astro, e depois, já rendidos à condição de criaturas humanas, trazê-lo através do espaço colado ao pé, achar-lhe um propósito e um fim: a baliza na fundura do universo que parecia a estes astrónomos, de trazer pelo campo de jogo improvisado, ter a forma retangular e que se expandia, ou parecia crescer, quando o cansaço tornava as deslocações mais longas e sofridas.

Tomávamos conta dos espaços livres da cidade nos ansiados recreios das aulas, a aliviar a leitura dos textos que nos ajudariam a conhecer o mundo e a relaxar das contas para futuramente sabermos o saldo das nossas ações profissionais. Enchíamos os sábados à tarde de alegria, desfrutando da liberdade de pelejar pelo golo, andávamos a fintar o tédio nas férias grandes, logo após o calor abrandar, e a driblar o frio no inverno antes de escurecer. Na véspera de Natal, esperávamos que a chuva se contivesse nos olhos das nuvens que davam ao céu uma cor ameaçadora e então, após a futebolada, celebraríamos em paz o nascimento do salvador.

Os nossos sorrisos emulavam o dos craques, ambicionavam o mesmo brilho acetinado na tipografia dos cromos com os jogadores a outorgarem ao papel de rebuçado da fotografia a confiança com que entravam no estádio, a resplandecer a imortalidade de faraós egípcios, imperadores romanos com os cabelos revoltos a fingir coroas de louros, mitos com os eventuais pés de barro disfarçados pelas chuteiras. Vestiam os trajes de acesso ao templo relvado com os emblemas sagrados bordados na zona da veste que cobre o coração e que beijariam no instante em que o clamor do público os ensandecia e o gáudio vibrante dos que se juntavam a comemorar o feito comum contrastava com o desalento do guarda-redes da equipa adversária, que colhia com a fraqueza do moribundo a bola que ficara anichada nas redes da baliza que jurara defender.

Que é feito das rapaziadas e dos estádios inventados e desenhados na pele da cidade, inscritos no mapa emocional da urbe? Erodiram-se como as muralhas de antanho, ficaram como memória que voa para longe, fugindo na rapidez das aves assustadas com o ruído do tempo? Foram nos sacos das compras das senhoras que tinham de contornar o palco em que os atores se moviam sem texto, numa dança contínua, coro polifónico, cantando, exclamado, gritado? Foram nos cestos das mães, junto das cenouras, das couves e das batatas que a varinha desfez sem magia, afinal foram levados na sopa, pela impiedade do calendário, pela corrente da ria dos anos que transitam, sem uma ilha a que se pudessem agarrar?

Ficaram, com certeza, os putos e os seus estádios, na mesma invisibilidade do público que nunca esteve nas suas bancadas, porque também elas não existiram, apenas nasceram no sonho, mais um laivo da reprodução dos grandes momentos. Dessas horas em que a televisão nos trazia as imagens do Campeonato do Mundo, em Espanha, e nós éramos o Zico, o Júnior, o Éder, todos aqueles jogadores da seleção do Brasil de 1982 (menos o goleiro Waldir Peres, claro), a passear a tango de pé para pé, a bola da adidas (também ela um artigo de arte) rodopiada pelos passos do samba, trocada com as notas suaves e bonitas da bossa nova, jogadores negros que tinham aprendido a esquivar-se à segregação racial e isso lhe ensinara as fintas de corpo, os jogadores caucasianos acreditavam nos feitiços que os pés podiam fazer para levar a redonda para dentro dos postes. Uma equipa que as playstations atuais não poderão replicar, a inteligência artificial terá dificuldade em codificar o passe de calcanhar do Dr. Sócrates, os programadores dificilmente captarão a imprevisibilidade do calcanhar poderoso que séculos depois redimiria a histórica fragilidade do de Aquiles.

As sapatilhas compradas na Miguéis estarão desfeitas, um primeiro amor que estaria condenado a acabar, mais não fosse porque o pé da criança cresceria. Também o comércio alargou e a inclemência da economia não poupou as lojas em que comprámos bens que a afeição e a utilidade faziam preciosidades. A Desportolândia havia de ser igualmente sugada pelos retalhistas predadores. Resta a Casa Hernâni a empurrar os modelos, alguns deles monos, que sobraram de outras décadas, de épocas fascinantes.

A cidade perdeu os pátios públicos, a animação nas praças e largos; os bandos de putos transpirados a regressar a casa dessedentados e famintos são uma imagem do passado.

Perdeu os espetadores mais velhos que ficavam a ver os prélios sem gastar um chavo da curta reforma, a prever quais os rapazolas que pela qualidade exibida e pela capacidade física podiam chegar um dia ao onze do Beira-Mar.

Perdeu esses fantasistas selvagens, sem tática, sem estratégia, sem UEFA ou FIFA, sem instituição a que prestar contas, alheios aos valores de mercado que não fossem os preços das sanjo, das desportex ou das adidas.

Quando éramos jovens e juntávamos a malta do bairro e jogávamos com os outros bairros, se não houvesse bola, o dinheiro para a comprar também não, usávamos a lata de compal vazia e chutávamos a embalagem de folha de flandres, hoje estará velha e a rir-se das nossas artroses, nós devolvemos a troça apontando para a sua ferrugem.

Quando éramos jovens desconhecíamos que ocupávamos, para nos divertirmos, metros quadrados valiosos, diversão quiçá avessa ao desenvolvimento urbanístico, talvez contrária à prosperidade imobiliária, os nossos campos, as nossas casas, as nossas cidades estarão em breve como um enorme “alojamento local” para turistas que dão uma volta de barco, deitam as latas de conserva das refeições no lixo e regressam à proveniência sem deixar um cêntimo ao erário porque não têm de pagar taxa turística.

Quando éramos jovens não tínhamos as condições que hoje os clubes oferecem aos praticantes de desporto, e este desenvolvimento é muito positivo, instalações, formação de treinadores e dirigentes, apoio médico e físico, um admirável mundo novo.

Quando éramos jovens, tudo ficava por nossa conta, a academia era a rua, o buraco na sola tinha de pedir sacrifício ao dedo para se aguentar até o subsídio dos pais chegar à conta para pagar um novo par de ténis que permitiria jogar sem o incómodo de sentir o piso entrar no calçado e livrar as meias do rasgão que os olhos das avós cosiam sob protesto.

Quando éramos jovens a paisagem urbana tinha esse saudável contentamento de nos ter a povoar o espaço público sem peso para o orçamento municipal, a cidade vivia-se em tantos pedaços e recantos que agora são meros espaços de travessia ocasional, locais mortificados; mas, como acreditamos na noção de eterno retorno, a esperança de revitalização dos bairros será, também ela, a última a soçobrar e um dia, mais perto do que longe, espera-se, retornará a vivência inteira e sã da cidade.

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