AveiroMag AveiroMag

Magazine online generalista e de âmbito regional. A Aveiro Mag aposta em conteúdos relacionados com factos e figuras de Aveiro. Feita por, e para, aveirenses, esta é uma revista que está sempre atenta ao pulsar da região!

Aveiro Mag®

Faça parte deste projeto e anuncie aqui!

Pretendemos associar-nos a marcas que se revejam na nossa ambição e pretendam ser melhores, assim como nós. Anuncie connosco.

Como anunciar

Aveiro Mag®

Avenida Dr. Lourenço Peixinho, n.º 49, 1.º Direito, Fracção J.

3800-164 Aveiro

geral@aveiromag.pt
Aveiromag

“Oliver Kitteridge”: nem só de heróis se faz um grande livro!

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Esta semana gostava de vos sugerir um dos últimos livros que li, “Oliver Kitteridge”, de Elizabeth Strout, e que me apaixonou pela singularidade de contar várias histórias, em redor de uma personagem central que quebra todas as regras literárias de construção de uma personagem. Habitualmente, encontramos nos livros dois tipos de personagens: as heroínas, santas ou encantadoras ou, pelo contrário, as cruéis, más e antipáticas e parece que o mundo se resume a estes antípodas, como se não fosse possível conceber uma personagem que reunisse caraterísticas dos dois géneros distintos. Essa foi, uma das razões pelas quais este livro captou, desde o início, a minha atenção, porque a personagem central, Olive Kittridge, não sendo uma personagem que nos cativa logo no início, pelas carateríticas tão humanas e reais que nos geram alguma antipatia, vai-nos cativando ao longo da história, porque nos vamos identificando cada vez mais com ela, ou com tantas das personagens com quem se vai cruzando.

Olive, para além dos defeitos e virtudes (muito bem escondidas e que se vão revelando no desenrolar da história), é uma personagem intensa e com um sentido de humor genial, mas é também uma pessoa muito humana e com uma enorme preocupação pelos que a rodeiam. Gosto de personagens (e pessoas) assim, intensas, verdadeiras e genuínas e Olive tem tudo isto e presenteia-nos com um sentido de humor, ironia e espírito crítico muito especiais.

Para quem gosta de personagens perfeitas, um poço de virtudes e que encantam desde a primeira à última página este não é, definitivamente, o livro ideal! Mas para quem gosta de encarar os livros como um retrato da sociedade e uma continuidade desta, este é o livro perfeito, real e verdadeiro, sem a pretensão de descrever a inalcançável perfeição humana.

Vencedor do Pulitzer Prize, “Olive Kittridge” é o primeiro de quatro livros desta autora que tem a genialidade de construir personagens de uma forma tão completa e irreal que é impossível não nos revermos em algumas das suas caraterísticas ou identificarmos pessoas com quem nos relacionamos.

O livro gira em volta da personagem principal Olive, uma professora de matemática reformada que vive com o seu marido Henry e com o filho Chistopher. Olive não é indiferente aos que a rodeiam e também não gera indiferença em ninguém. Se, por um lado, tem sempre opinião (muito forte, critica e até muito sarcástica, por vezes) sobre todos os que a rodeiam, desde a empregada da farmácia do marido (que considera sonsa e desinteressante), à primeira mulher do filho (com a mania que sabe tudo e demasiado snob), à segunda mulher do filho (um pouco burra e com uma figura pouco harmoniosa), Olive vai-nos contando o que pensa sobre todos aqueles que com ela se cruzam – e conta-o, muitas vezes, com um apurado sentido de humor.

Por ser intensa e verdadeira nas suas relações, Olive desperta nos outros algumas antipatias e até receio, como acontece com os ex-alunos que a temiam, mas também revela atitudes de muita humanidade e compaixão e é esta capacidade de reunir caraterísticas tão distintas que a tornam fascinante!

Crescemos a ouvir e ler histórias com uma moral, que nos impelem a adorar e imitar os bons e odiar os maus e isso gera esta tendência, tão humana quanto errada, de ver o mundo a duas cores e de estabelecer uma divisão entre pessoas boas e más, como se as boas fossem incapazes de maldades e as más, incapazes de atos bons. Ora, Olive é a prova – e a vida mostra-nos isso a toda a hora sem que o queiramos admitir – que ninguém é 100% bom nem 100% mau e que o facto de sermos humanos e vivermos vidas singulares e únicas faz com que esta dicotomia não seja estanque e que por vezes, resvalemos para o outro lado do muro, sem que isso nos defina.

Pela nossa educação judaico-cristã e pela visão do mundo que nos é incutida, Olive teria todos os requisitos para merecer a nossa antipatia, pois não sendo uma pessoa má, não é uma pessoa que tenha a menor preocupação de nos cativar, assumindo-se como é, sem preocupação em agradar. Mas, a verdade, é que mesmo sem ter esta preocupação, Olive vai-nos cativando ao longo da história porque, quanto melhor a conhecemos, mais apreciamos a sua humanidade, com a qual nos vamos identificando, ou pelo menos, percebendo e aceitando. E, por isso, este livro é também um apelo à nossa empatia e à nossa capacidade para aceitar tudo o que não se pauta pelos padrões de qualidades humanas habituais.

Olive Kitteridge vive em Crosby, uma pacata povoação costeira no Maine, com o seu marido, Henry, que é o oposto de Olive, um farmacêutico gentil, profundamente apaixonado e devoto à mulher, que faz as delícias das senhoras da cidade e até da jovem ajudante de farmácia que com ele trabalhou. Ao contrário de Olive, de quem vamos aprendendo a gostar, Henry encanta-nos desde o início, por ser a personificação da bondade, paciência, generosidade, empatia e doçura no trato. Algumas destas caraterísticas de Henry chegam mesmo a dar origem a algumas críticas, gozo e ate mesmo incompreensão por parte da mulher, sempre tão dura nas suas apreciações. Ela própria descreve o marido como uma pessoa “bastante irritante, com a sua ingenuidade inabalável, como se a vida fosse simplesmente como os catálogos da Sears a mostravam: toda a gente parada com um sorriso na cara”, a verdade é que, como acontece com todas as relações que beneficiam com a maturidade e com a partilha de uma vida em comum, assistimos à transformação da sua relação de uma forma enternecedora. “Ultimamente, divertiam-se muito juntos, mesmo muito. Era como se o casamento tivesse sido uma refeição longa e complicada e, agora, fossem brindados com aquela bela sobremesa”. Uma das coisas que gostei muito neste livro foi a forma como Olive vai crescendo e se vai tornando mais doce com a idade e com o convívio com aqueles com quem se vai relacionando, e percebemos que a sua frieza e dureza era, também, o reflexo dos problemas e traumas que enfrentou em criança e que a vida a vai tornando mais doce e aberta ao carinho e também ao amor.

Uma das pessoas que Olive mais amou foi, como acontece com todas as mães merecedoras desse estatuto, o filho Christopher. Olive sente que o filho é uma cópia de si e por isso não suporta quando este se casa com uma médica sabichona que Oliver detesta. “Porque Christopher não precisa de viver com uma mulher que julga saber tudo. Ninguém sabe tudo e ninguém deve achar que sabe.” A sua relação com a nora é muito cómica, pelas “partidas” e comentários de Olive à nora, demasiado snobe e segura da sua verdade!

O livro revela-nos o lado mais humano de Olive quando um ex-aluno seu perde a vontade de viver e Olive o ajuda; quando encontra a pianista alcoólica vítima de uma mãe castradora ou a vizinha que vive destroçada pelo crime hediondo do filho, e que Olive decide visitar, apesar de toda a sua antipatia. Este é o seu lado mais humano e atento, que não nega ajuda a ninguém, mas nem nessas alturas, Olive assume uma postura piegas, mantendo sempre o registo do espírito crítico e prático e do sentido de humor. “Mas são tão feias as palavras que essas pessoas inventam, Cynthia: processar, interiorizar, não sei o que depressivo. Deprimida ficaria eu, de tivesse de passar o dia inteiro a dizer essas palavras.”

Olive vai-se conhecendo e revelando através das suas relações com aqueles que ama, com aqueles que lhe são indiferentes e com aqueles que precisam da sua ajuda, e Olive não nega ajuda aos que a rodeiam e mistura a generosidade dos seus atos com o pragmatismo da postura. “Apeteceu-lhe dizer: “acontecem coisas más a toda a gente. Onde é que vocês vivem, numa caverna?”

À medida que o livro vai chegando ao fim e porque a vida lhe tirou muito, mas também lhe deu coisas muito boas, Olive torna-se menos preconceituosa, mais aberta ao amor e às amizades, mas sem perder o seu espírito crítico (que é tão peculiar!!) e lucidez, e sem nunca revelar a menor preocupação em “fingir” para cativar simpatia.

E se o marido, pela sua doçura e bondade e alguma ingenuidade até, lhe mereceu algumas críticas, quando fica viúva e encontra um “companheiro de caminhadas” com quem inicia um “namoro”, Olive não o poupa, também, às suas críticas, não só pelos preconceitos que o fizeram afastar a filha pela sua preferência sexual, como também pelo facto de ter votado em Trump para Presidente, atitude que acha pouco consentânea com a educação e estatuto do dito companheiro.

“- Votaste nele. Tu, o Sr. Harvard, o Sr. Intelectual. Votaste naquele nojento.

Ele soltou uma gargalhada roufenha.

- Meu Deus, tens mesmo as paixões e preconceitos de uma camponesa.

- Acabou. – disse Olive. Recomeçou a andar, desta vez ao seu ritmo. Por cima do ombro disse: - Pelo menos, não tenho preconceitos contra os homossexuais.

- Pois não. – ripostou ele. – Só contra homens brancos com dinheiro.

Podes crer que sim, pensou ela.”

Alias, Olive revela-se de uma sensibilidade e tolerância extraordinárias, no diálogo que tem com o amigo a propósito dos erros que cometeu para com a filha:

“- Sê sincera. Se o teu filho te dissesse que queria ir para a cama com homens, fosse mesmo para a cama com homens, se apaixonasse por um homem, vivesse com ele, dormisse com ele, construísse uma casa com ele... achas mesmo que não te ias importar?

- Não me ia importar – retorquiu Olive – gostaria dele de corpo e alma.”

Não sendo este um livro com uma moral, é um livro que tem um claro vencedor: o amor (nas suas mais variadas formas) e os afetos, pois apesar dos sofrimentos que a vida nos dá, também nos presenteia de forma inesperada, nem que seja com o desconhecido que ajudamos e se torna o companheiro de uma nova fase na vida.

“Ai, o que os jovens não sabiam, pensou ela, deitando-se ao lado daquele homem, com a mão dele no seu ombro, no seu braço, o que os jovens não sabiam... Não sabiam que corpos flácidos, envelhecidos e enrugados eram tão carentes como os seus corpos jovens e firmes, que o amor não era para se deitar fora descuidadamente, como se fosse uma tarte numa bandeja, a meio de outras que seriam novamente oferecidas. Não, se o amor estivesse disponível, uma pessoa escolhia-o, ou não o escolhia. E se a bandeja de Olive estivera cheia com a bondade de Henry e ela a considerara um fardo, e deitara fora umas migalhas e cada vez, era porque não sabia, na altura, o que todos deviam saber: que dia após dia era inconscientemente desperdiçado.”

“...o amor não era para se deitar fora descuidadamente, como se fosse uma tarte numa bandeja, a meio de outras que seriam novamente oferecidas.”

Espero que a Olive vos encante tanto quanto me encantou a mim! Boa leitura e muitas gargalhadas!

* Escreve, regularmente, a crónica literária "A Páginas Tantas"

Automobilia Publicidade

Deixa um comentário

O teu endereço de e-mail não será publicado. Todos os campos são de preenchimento obrigatório.