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650 metros: micro-ensaio sobre Portugal

Opinião

Portugal cumpre-se nas coisas mais pequeninas. Temos, claro, glórias de assombrar. As descobertas, o Cristiano Ronaldo e a via verde. O Guterres na ONU e os Jerónimos. O Siza e o caldo verde. O cão mais velho do mundo - a nação estremece de júbilo - talvez seja nosso. Uma notícia de jornal, porém, recomenda cautela: “Bobi perde título e é investigado pelo Guinness”. Aguardemos a peritagem antes de soltar as rolhas. Perante tamanho engenho, o mundo inclina-se com espanto.

Cada povo almeja a imortalidade. Uma colecção de vitórias e proezas constrói o orgulho colectivo dentro de cada fronteira. Mas há também as minúsculas particularidades. Percorro uma rua não muito longe de casa e reparo: um barbeiro e uma casa de vinhos na mesma loja. Se isto não é Portugal, o que é Portugal?

É domingo de manhã. Quando abro a porta, o ar asséptico do interior da casa é substituído por um cheiro tão inebriante e intenso que é quase como se fosse uma substância espessa. O jasmim, as glicínias, as camélias e as magnólias impregnam o ar, como se o planeta fosse um padrinho de casamento orgulhoso que tivesse posto a sua melhor água-de-colónia para a cerimónia. Há qualquer coisa de inverosímil neste dia. Parece demasiado puro para um mundo tão imperfeito.

Aos domingos o café do bairro fecha pelo que monto na bicicleta e pedalo em busca de outro poiso. Na mochila transporto o cadeado da bicicleta, um bloco e uma caneta. Acrescento um livro. Talvez encontre, neste dia perfeito, um recanto onde ler algumas linhas.

Num café a uns quatro quilómetros de casa sento-me numa mesa junto à janela. O dono surge das profundezas, agita uma sineta e anuncia natas quentinhas. Folheio os jornais, à medida que outros leitores os vão libertando. No quiosque em frente, um daqueles pequenos pagodes forrados a jornais e revista em vias de extinção, compro o meu próprio jornal.

Os fiozinhos pretos dos phones transportam Gary Valente e Carla Bley até aos meus ouvidos. Oiço “The Lord is listening to yah, hallelujah!” uma vez, duas, três. A perfeição existe.

Um bazar chinês e um banco, em cada esquina, formam como que um portal de entrada numa rua do centro daquela vila. Percorro lentamente os seus 650 metros. Olhar só a direito faz-nos perder tudo o que se afasta da linha recta. O mundo é feito de curvas, alçapões e ângulos mortos, de realidades fora do alcance do olhar imediato, e por isso dou ginástica ao pescoço e observo atentamente as casas, as lojas e as ruínas em ambas as margens da rua.

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Avanço lentamente com a bicicleta pela mão. Passa por mim um homem velho com uns olhos grandes do tamanho de moedas de dois euros. Uma velha casa senhorial foi recuperada pela Junta de Freguesia, com as bandeirinhas da praxe hasteadas no jardim. Mas esta casa, renovada depois de resgatada do esquecimento, é quase uma anomalia. Perpassa pela rua uma impressão de modesta majestade perdida. Vou fazendo os meus cálculos e concluo que perto de metade das casas estão vazias e abandonadas, algumas em ruína ou a caminho dela. Esta rua é um requiem em construção. O abandono é como uma guerra, deixa destruição e destroços no seu encalço.

As casas são quase todas de outros tempos. São bonitas, mesmo as devolutas. Muitas são modestas mas há também velhas casas senhoriais, que se distinguem das outras pelo tamanho, pela altura e pela riqueza de pormenores arquitetónicos. Há, porém, uma característica comum a quase todas: os magníficos azulejos que as revestem, com várias cores e motivos. Muitos, infelizmente, já caíram ou foram retirados, deixando as fachadas tristemente esventradas.

Algum comércio subsiste. Passo por um talho, pelo barbeiro e casa de vinhos, por um cabeleireiro. Outras lojas, porém, sucumbiram. No vidro de uma delas, aparentando estar fechada há longos anos, resiste ainda um autocolante da Matutano, já amarelecido.

Não faltam os cafés, claro. Entro num deles, mesmo no fim da rua, que é também uma pequena merceraria. A tv exibe imagens de uma rixa de trânsito.
Sento-me lá fora, na esplanada de uma única mesa, a beber um café ao sol abençoado das 11 da manhã. Saco do livro. Leio: "Vibraram pela primeira vez vivências desconhecidas e descartadas nalgum canto da minha existência ruim, e a esperança de um resquício de companhia, de calor, de humanidade encheu-me de um prazer estranho. Sim. Deveria haver um universo para os desesperados, para os abandonados. Para os bichos do sótão. Dormimos sem medo até ao amanhecer". Olho para a foto da velha argentina na badana e penso: gostava de saber escrever assim.

A concentração, necessária à leitura e aos pensamentos, é como uma fina lâmina de gelo no leito de um rio no Inverno. Quebra-se facilmente. É o que acontece porque junto à porta um homem conta uma história a outro que escuta enquanto fuma um cigarro. Todos a ouvem. Fala com uma voz bem alta e empregando o menu completo de obscenidades da língua de Camões - palavras começadas por f, por c ou por m são lançadas ao mundo a um ritmo frenético.

Cheguei ao final da rua e empreendo o caminho de regresso. É hora de almoço e entro no segundo café. Servem francesinhas e peço uma, que acompanho com dois finos. Ao balcão dois clientes jogam raspadinhas e outros bebem cervejas. Nos confins do estabelecimento vêem-se mesas de bilhar, outro objeto em obliteração.

Retomo o percurso e, a meio de uma bifurcação, repousa uma pequena capela, acoplada a um edifício, de pintura muito estragada, que uma tirinha pálida anuncia como a casa paroquial. Três gatos estão aninhados na janela de uma casa decrépita e num muro alguém escreveu em letras garrafais já gastas “espaço livre de energia nuclear, eucaliptos e outras trump’as”. Na porta de uma casa desabitada estão afixados três papéis com informações à comunidade, anunciando a próxima eucaristia, um falecimento e um almoço de angariação de fundos na Casa do Povo, com arroz de cabidela e galo estufado e animação do DJ Mabito.

Há uma casa à venda, reparo, e outra em obras, onde dias antes vira dois homens negros a trabalhar. Mas no geral este parece um lugar meio esquecido. Sinto-o como um lugar de marginalidade, mesmo que seja o centro de uma vila a cinco quilómetros de Aveiro. Há demasiados sítios assim, penso. Se queremos ver um Portugal a morrer, basta sair de casa.

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