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Um horizonte para a Pega: uma larga varanda panorâmica da cidade

Opinião

Virgílio António Nogueira

Recordo outros julhos, longínquos, em que a malta em férias seguia para o Poço de Santiago pela Rua da Pega e dessas memórias trago uma ambição para aquele local mágico.

Talvez então, nesses julhos já distantes, nos rebelássemos contra os limites dos cantos da casa e desafiássemos a tutela do algoritmo que previa as rotas seguras. Fugíamos da ortodoxia imposta pelos pais e da supervisão das avós idosas sentadas junto às janelas a fruir o sol, no processo de fotossíntese. Queríamos caminhos que nunca antes percorrêramos e sentir que os podíamos encarar sozinhos, e tal era ter coragem e abraçar o mundo com os braços e os sentimentos próprios, seria esse estado a irrepetível adolescência da maturidade.

Quando éramos jovens, a Rua da Pega fora já rasgada à natureza por um punhal e ficara como um arruamento em que os lavradores seguiam para as canseiras agrícolas, servia de trilho das gentes da ria para as tarefas da safra do sal ou as da pesca. Para nós, os garotos em férias escolares, eximidos de responsabilidades letivas ou laborais, aquele era o trecho misterioso do trajeto para o Poço de Santiago. Tratava-se da via mais rápida para a piscina natural que para nós que lhe desconhecíamos a dimensão, o comprimento e a largura, era olímpica. Mais ainda: não tinha o formato de retângulo e livrava-se da ideia de imutabilidade. Preferíamos a plasticidade das lamas que circundavam o poço, moldando os muros em afeição à meteorologia selvagem do inverno no litoral, se comparada à rigidez de cimento do aquário dos atletas de natação das olimpíadas.

Na época admirávamos o céu e a lonjura do horizonte com a pureza da luz que flutua sobre a laguna, sem átomo de obscuridade, e quando o verão secava as partículas de humidade o ar subia tão leve que receávamos que desafiasse a gravidade e nos deixasse asfixiados.

A arraia seguia no carreiro e a cidade dormente ficara para trás, as estátuas de João Evangelista de Lima Vidal e de José Estêvão aguardando que lhes trocassem a roupa de inverno, e o miúdo a tirar da sapatilha o pedaço branco da gravilha que entrara pelo buraco da sola comida pelo desgaste de quilómetros corridos a perseguir a bola de futebol. Depois, a sacar do corpo a camisola puída pela perfídia das lavagens e a revelar o tronco magro a crescer e a robustecer-se.

Hoje, o tempero da nostalgia acresce mais poesia à fonte e ao lavadouro públicos da Pega, agora que o som descompassado de taquicardia da máquina de lavar roupa substituiu a canção escorreita da corrente do rio que desaguava nos tanques. Neste momento, o pó da embalagem do detergente tenta copiar o odor do sabão que o esforço dos braços das visavós fazia soltar assim que com ele esfregavam os vestidos, as calças, as camisas, e todos os demais bocados de têxteis baratos que ficariam suspensos, a corar, na corda, com as molas a agarrarem-nos para que unhas larápias das nortadas fossem incapazes de os arrancar do estendal.

A força das mulheres, das lavadeiras, tinha o poder alquímico de transformar o pedaço sólido do sabão macaco na fragrância que apetece mastigar e o perfume inalado limpava o sangue, a hemodiálise estava feita.

A canalha seguia ladeada pelos milheirais verdes, mais espigadotes do que ela. A casa a meio do trajeto já era o edifício esventrado, o lar esvaziado de coisas e de lembranças, os segredos das vidas que albergou sujeitos à imaginação dos petizes e às trepadeiras que aproveitavam as paredes do esqueleto do imóvel para aumentarem e se multiplicarem.

No percurso, escutavam as aves derramar pios, olhavam essas flechas negras cruzarem-se acimas deles e os afazeres dos pássaros contrastavam com a languidez do calor que anestesiava os putos, enfeitiçados pela temperatura elevada e pelas fitas das alças das camisolas das meninas, tiras tão finas que cairiam facilmente dos ombros e mais deixariam adivinhar-lhes as colinas.

A moçada fazia-se à água e o sal marinho que se colava à pele restituía a energia e reajustava a tensão arterial. As crianças de volta ao útero, elas que achavam em cada charco a pretérita atlântida ou o regresso à molécula inicial que subiu ao topo da água e se engravidou pelo sol para dar vida à humanidade. As braçadas e as acrobacias na água tinham mais piada do que a teoria da evolução, e quando ali se divertiam o olhar teórico de Freud ou de Darwin era-lhes indiferente.

Quando o sol se inclinava e baixava para o lado das praias, voltavam ao ponto de partida, calcando o chão empoeirado. No fim da rua o pavilhão do Beira-Mar estava fechado e a porta que dava para o Lago do Paraíso poderia abrir-se à noite para o torneio de futebol de salão que opunha os jogadores da cidade que representavam as firmas comerciais locais. Amávamos aquele pavilhão em que jogáramos, que os espetadores enchiam ao fim de semana quando o clube e Aveiro eram de primeira divisão, no basquetebol, no andebol, no boxe, no judo, bem como no futebol profissional, jogado ali bem perto. Território que se fizera sagrado, cheio de graça, o solo dos adeptos peregrinos e o dos gloriosos atletas, técnicos e dirigentes.

A história, o património, a vida, extintos tão facilmente como os números errados da conta que a borracha na mão da criança apaga do caderno de matemática. Os inquilinos fizeram, por bizarro que fosse, a festa no dia do despejo, as entidades políticas terão encolhido os ombros. Sumiu-se, sem redenção, o templo do desporto e foi-se o pavilhão que fez felizes gerações de aveirenses, nos jogos, nas festas e nos bailes que ali se realizaram.

Um dia, no futuro, a Rua da Pega será para outros jovens o que foi para nós, um pedaço significativo da área de lazer e da alma ambiental de Aveiro. Aproveitará as condições de contexto para ser parque para a prática do desporto informal e inclusivo. Beneficiará delas para Aveiro dispor para os residentes e para os turistas de uma praia lagunar pública. Ademais, o local privilegiará a circulação de peões, de bicicletas e de outros modos de mobilidade suave, limpa e sustentável.

Conjugado com o interesse da Universidade de Aveiro e com o seu Campus universitário de Santiago, o projeto urbanístico trará, nesta ambição cidadã, modernidade à tradição de escutar os sons da fonoteca do ecossistema lagunar, afastado o ruído do trânsito automóvel e o beat das colunas dos carros que danificam irremediavelmente o sossego da zona panorâmica.

Retomar-se-á ali a antiga vocação de via de acesso às marinhas de sal, à piscina natural – ou a que seja artificial, possibilitando aos herdeiros do senhor Atita lecionarem aos candidatos a tubarões da ria os estilos da natação. Constituirá a Pega o alfobre de experiências sensoriais, a imensa botija de oxigénio para os mais idosos sorverem a memória da juventude. Advirá este lindo espaço da nossa cidade como o ponto de encontro de gerações, território para as famílias e os seus animais, livro aberto a histórias por escrever, cenário e palco que oferecem largo horizonte a antigos e novos sonhos e amores.

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