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Viagens na Nossa Terra: O Evereste de Aveiro

Roteiro

Michael Palin é garantidamente um dos meus autores de eleição. Este antigo Monty Python é um viajante intrépido e fecundo com o dom de transformar as suas viagens em livros (e documentários televisivos) abençoados, onde nos conta as suas aventuras à volta do globo. Os seus livros são como todos os livros deveriam ser: maravilhosamente bem escritos, informativos e divertidos. Sempre que o leio sou consumido pelo pecado capital da inveja: também eu gostaria de ter empreendido aquelas viagens; e também eu gostaria de escrever assim. Inveja em dose dupla, portanto, o que me faz temer pelo meu destino no purgatório, quando lá chegar.

Acabei de ler o volume em que nos relata a expedição que encetou aos Himalaias, a mais alta cadeia montanhosa do mundo. Imediatamente antes lera outro livro, chamado “O leopardo das neves”, em que o autor, Peter Mathiessen, também transporta os leitores pelos Himalaias, descrevendo todo o deslumbramento e brutalidade da montanha.

A ideia para este texto nasceu dessas leituras. Se Palin e Mathiessen vaguearam pelas montanhas mais altas do mundo, eu estava decidido a não lhes ficar atrás – treparia também eu por esse mundo acima. Que cometimento épico seria esse? Atingir o ponto mais alto… do distrito de Aveiro. Não sabia na altura onde esse lugar mítico repousava. Pouco importava – haveria de lá ir.

O título formou-se mesmo antes do texto. Inspirado naquele par de aventureiros, chamei-lhe “O Evereste de Aveiro”. Absurdo? Sim, mil vezes sim. Assumo até algum embaraço - mas é, digamos assim, um chamariz, e se está a ler estas linhas é porque resultou.

Nem era preciso consultar os números, mas façamo-lo na mesma. Os Himalaias albergam os picos mais altos do planeta, entre eles oMonte Evereste(8.849metros) e oK2(8.611metros). A maior elevação de Aveiro - a Pedra Posta, em Arouca - empoleira-se no alto dos seus humildes 1.222 metros. A máquina de calcular revela que entre o Evereste e a Pedra Posta existe um abismo de 7.627 metros de diferença. É o mesmo que ir de Aveiro a Ílhavo sempre na vertical ou empilhar 142 réplicas do Farol da Barra umas em cima das outras. O Evereste de Aveiro: como se dizia dantes, tá bem abelha…

Como Aveiro não é propriamente conhecido pelas suas montanhas majestosas, a minha primeira tarefa consistiu então em descobrir onde teria de rumar para poder cravar a minha bandeira como marca de uma epopeia bem sucedida. Não existe propriamente muita informação sobre o assunto e se fizerem uma pesquisa por “o ponto mais alto do distrito de Aveiro” verão que tenho razão. Mas parece que é a Pedra Posta – por isso, Pedra Posta aí vou eu.

Escolhi uma sexta-feira ensolarada para ir no encalço do cume do distrito. Parti inebriado com a ilusão de que estava a embarcar numa realização épica. Dominava-me a expectativa dos grandes empreendimentos. Imaginava os vastos mundos que teria a meus pés. Sentia-me como um explorador a caminho de terras incógnitas.

Até que acordei para a realidade - afinal de contas 1.222 metros são já ali. Mas que não restem dúvidas: vale muito pena uma visita ao teto do nosso pequeno mundo, em plena Serra de Montemuro.

Parti de Aveiro às 8h45 com o conta-quilómetros no zero – chegaria a casa com o contador quase a bater nos 200 quilómetros. A primeira etapa da viagem era simples e já conhecida: chegar a Arouca. A partir da vila, porém, foi preciso pôr o GPS a trabalhar e aqui vieram-me à memória tempos não muito distantes em que a ajuda aos viajantes desorientados era fornecida por grandes mapas em papel que era necessário desdobrar e interpretar demoradamente. Diga-se, ainda assim, que o GPS se baralhou em Alvarenga, empurrando-me para uma estrada sem saída.

Com as devidas pragas rogadas e o aparelho recalibrado, segui caminho em direção à Capela de São Pedro do Campo, onde tinha planeado deixar o carro para depois fazer a parte final do trajeto a pé, até ao topo. Nesta zona percorre-se uma bonita estrada de montanha, quase toda por minha conta dado que praticamente não me cruzei com ninguém. Nas pequenas aldeias ao longo do caminho também poucas pessoas vi nas ruas – chamam-lhe desertificação. Noninha, com uma bonita escola que parecia fechada e um aglomerado de caixas de correio à margem da estrada para não deixar os carteiros à beira de um ataque de nervos, é a última povoação antes da capela e daqui avistam-se as enormes torres eólicas que dominam a paisagem.

O caminho é, claro, quase sempre a subir e nos troços mais íngremes o carro só avança com a terceira ou mesmo a segunda engrenada. Num ponto da subida reparo num espesso manto de nuvens brancas que se formou no espelho retrovisor do automóvel, a um nível abaixo de mim. Encosto numa pequena reentrância da estrada e saio para observar, e só aí, com uma vista desimpedida da paisagem, tenho noção do quanto já escalei.

Atinjo a Capela de São Pedro do Campo e dou por terminada a segunda etapa do passeio. O pequeno edifício situa-se num bonito planalto a 1.136 metros de altitude, conforme está assinalado num marco junto ao templo.

Um conjunto de mesas e bancos de pedra convidam a piqueniques e numa delas alguém escreveu a tinta preta “Ocupado. Carlos”, numa espécie de reserva intemporal. Um conjunto de contentores do lixo macula a beleza e a integridade do sítio – sem descurar a higiene do espaço, talvez fosse possível uma solução mais em harmonia com o lugar.

No adro da capela ouço o som de badalos e ao perscrutar a paisagem avisto uma manada de gado a pastar a uns 200 metros de distância. As vacas e os bois cirandam livremente junto ao estradão de acesso à Pedra Posta, o que me leva imediatamente a verificar em que ponto estão os meus níveis de coragem. Não empreendi a viagem sem algum trabalho de casa prévio. Naquele momento forma-se uma vaga memória sobre uma das recomendações que me dei ao cuidado de consultar no site do Arouca Geopark, dirigidas aos utilizadores do trilho PR1 Caminhos do Montemuro. Tiro o telemóvel do bolso para verificar de novo e na secção “cuidados especiais e normas de conduta” encontro o que procurava. “Cuidado com o gado. Embora manso não gosta da aproximação de estranhos às suas crias”. Destas 15 palavras retenho uma: manso. Não tenciono aproximar-me das crias - nem dos respetivos progenitores, já agora - e por isso convenço-me que posso seguir caminho em segurança.

Estes belos bichos de pelagem castanha dispõem de chifres pontiagudos e podem atingir os 900 quilos de peso – mais 820 do que eu, o que tornaria a luta desigual -, mas não abdicarei do meu propósito sobretudo agora que estou tão perto do objetivo final. Respiro fundo, felicito-me por não ter ido vestido de vermelho e ponho-me em marcha. O tal grupo que vislumbrei a partir da capela, composto por uns 20 animais, permanece impassível à minha passagem, como se eu tivesse convocado com sucesso o superpoder da transparência. Faço os possíveis para não ser encarado como uma ameaça e a verdade é que vou à Pedra Posta e regresso sem qualquer incidente. Os meus anfitriões de quatro patas, uma massa bruta de osso e carne, foram tão hospitaleiros quanto eu poderia desejar, louvado seja Deus.

O caminho até ao pico é feito por um estradão de terra batida. O piso tem alguma gravilha solta e é bastante irregular em algumas partes mas o avanço é feito sem dificuldades, à parte uma ou outra ascensão um pouco mais árdua de ultrapassar, sem alguma vez ficarmos com os bofes de fora. O silêncio impera e praticamente só se ouve o som das pás eólicas a rasgar o ar e alguns pássaros a chilrear. As gigantescas lâminas das torres de vento são também responsáveis pelas sombras móveis que vão atravessando o caminho à medida que vou seguindo rumo ao topo.

Excrementos no chão, alguns frescos, denunciam a presença das bestas e mantenho-me alerta, com panorâmicas regulares de 360 graus para me ir certificando que a viagem à Pedra Posta não terá um fim prematuro e trágico graças ao ataque de algum bicho em fúria. Mas o mais que vejo são alguns animais à distância, completamente indiferentes a este intruso insignificante.

O carro marcava 19 graus à chegada a São Pedro do Campo mas sopra um vento fresco que me faz vestir uma camisola leve a meio do caminho. Em cerca de meia hora alcanço o cume – o sítio é assinalado por um modesto marco geodésico, cravado no cimo de uma rocha.

É uma área inóspita e frugal, sem árvores e apenas com arbustos, vegetação rasteira e pedregulhos de vários tamanhos e feitios. A vista é muito bonita e apodera-se de mim uma sensação de amplitude e liberdade. E dou-me conta que naquele preciso instante não há ninguém, uma alma que seja, acima de mim em todo o distrito e que tenho Aveiro a meus pés. Não é grande proeza nem uma história para um dia contar aos netos. Mas é um facto tão real como a chegada de Armstrong à lua, de Amudsen ao Polo Sul ou de Hilary ao Evereste – e aqui, neste texto, fica gravado para a posteridade. Parafraseando o Leonardo DiCaprio no “Titanic”, poderia ter aberto os braços e gritado em glória “i’m the king of Aveiro”.

Diz-nos o Arouca Geopark que do topo se podem “observar as paisagens graníticas da Serra de Montemuro, o vale do Rio Douro, a Serra do Marão, o Maciço da Gralheira e o vale do Rio Paiva, a sul”, e é isso que faço. Após uns minutos de contemplação e a absorver o ar puro das alturas, é tempo de regressar à capela, onde me ponho novamente ao volante. É hora de almoço e como a fome aperta decido parar na Boavista, atraído por um letreiro irresistível que diz “Restaurante Silva – Casa dos Bifes”, onde um naco de um qualquer primo dos animais da Pedra Posta não tarda a jazer no meu prato. Como na esplanada, apesar de algum frio e vento, e ao alcance da vista descortina-se a estrutura da ponte suspensa dos Passadiços do Paiva que por estes dias fazem a fama de Arouca.

À saída de Alvarenga, já depois de uma manada se ter atravessado na estrada à minha frente, obrigando-me a abrandar antes de retomar a marcha, paro junto à placa com o nome da localidade. À ida, pensei, ou lera mal ou tivera uma alucinação. Mas os meus olhos não me traíram. Lera bem: “Bem-vindo a Alvarenga, capital do mundo”.

Aceito o título com bonomia e bom-humor e prossigo viagem, voltando a atravessar Arouca e Vale de Cambra e passando ao largo de Oliveira de Azeméis e de Estarreja antes de ser devolvido a Aveiro. Para trás ficaram quase 200 quilómetros que dei por muito bem empregues. A Pedra Posta e todo o território à sua volta são um lugar bonito e que se presta à contemplação e ao contacto com a natureza. São também, parece-me, um segredo relativamente bem guardado mas que merece ser desvendado.

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