Há quem encontre nas águas da Ria de Aveiro um lugar de lazer, outros descobrem nelas um campo de desafio. Para João Loura, presidente da APCV – Associação Portuguesa da Classe Vouga, é sobretudo um espaço de pertença. Foi nas margens e nos canais da laguna que construiu a sua ligação ao desporto náutico: primeiro em modalidades a motor, como o ski aquático e o wakeboard; mais tarde, no kitesurf. Mas foi a vela que lhe deu uma perspetiva diferente do mundo – não apenas a competição, mas a contemplação; não só a técnica, mas a harmonia.
“Na vela, o vento, a água e o barco criam uma ligação direta e autêntica, onde tudo depende da sensibilidade, da técnica e da capacidade de leitura do meio envolvente. É uma experiência de liberdade e desafio que se renova a cada saída”, explica. Essa descoberta marcou uma viragem, que se transformou em paixão e, mais tarde, em missão: preservar o legado das embarcações Vouga e garantir que continuam a navegar.
Ao longo dos anos, João Loura foi colecionando memórias pessoais a bordo destes barcos e, hoje, fala dos Vougas com a naturalidade de quem não imagina a vida sem eles: regatas que juntam várias gerações de velejadores, passeios familiares que transformam tardes na Ria em momentos de convívio, e até eventos solidários, onde a embarcação se torna veículo de união e responsabilidade social. O Vouga tem essa capacidade rara: “unir pessoas, transmitir valores e contribuir para causas que vão muito além da náutica”.
O fascínio por um barco singular
O que distingue o Vouga de outros barcos não é apenas a sua elegância, feita de linhas clássicas e madeira polida. É, sobretudo, a identidade que transporta: trata-se da única classe de vela de origem portuguesa, nascida na Costa Nova, em Ílhavo, há quase cem anos. Para João Loura, é um símbolo maior da Ria de Aveiro. “O Vouga é uma síntese perfeita entre tradição e beleza”, resume. “Representa uma herança cultural que importa proteger, valorizar e transmitir às gerações futuras”.
Ao longo de quase cem anos, o Vouga soube reinventar-se, ainda que se mantenha fiel a algumas regras de ouro: o convés, o mastro, a retranca e a cana do leme têm de ser em madeira. Hoje, admite-se que o casco possa ser em fibra, mas a essência não se perdeu. Para João Loura, é uma embarcação que exige tanto quanto oferece. “Na vela não há travões nem motor, tudo depende da forma como interpretamos o vento e a corrente. Só sair do cais já exige cálculos: como posicionar o barco, como aproveitar a direção do vento, como atracar depois, com tantas embarcações em volta. E se alguma coisa falha na preparação em terra, mais cedo ou mais tarde paga-se caro na água”.
Essa exigência faz parte da aprendizagem. “Lembro-me de uma regata em que tive de desistir porque uma peça se soltou por falta de manutenção. Aprendi a lição: na vela, cada detalhe conta. Sempre que participo, mais do que ganhar, vou para aprender e para me divertir – já naveguei com tripulações dos 5 aos 83 anos”.
Costa Nova: o berço da classe
A história começa na década de 1920, com o mestre António Gordinho. De regresso à sua terra, depois de alguns anos nos Estados Unidos, de onde trouxe inspiração e conhecimento, este carpinteiro ilhavense começou a construir embarcações em madeira para famílias que passavam as férias na Costa Nova. Eram barcos de lazer, feitos à medida, com calado reduzido para deslizar sobre o moliço e as redes dos pescadores. Como não havia cais, usava-se o patilhão para encalhar na areia. Era prática comum dar às embarcações nomes de mulheres da família, eternizando mães e filhas na proa dos Vougas.
Mais tarde, dois ilhavenses residentes em Lisboa pediram a António Gordinho que replicasse alguns modelos. Por serem idênticos, decidiram propor a criação de uma classe. Assim nasceu a designação “Classe Vouga”, adotada oficialmente em 1939 e reconhecida pela Federação Portuguesa de Vela em 1944.
Durante décadas, o Vouga foi presença regular em competições nacionais, em particular no Tejo, onde a Mocidade Portuguesa o adotou como barco de treino. O Estado Novo via nele um emblema nacionalista, símbolo de uma produção integralmente portuguesa. No entanto, com a Revolução de Abril, a dissolução das estruturas ligadas ao regime e o declínio natural das práticas tradicionais, a classe perdeu protagonismo.
Ainda assim, nunca desapareceu. Nos anos de 1980, novos construtores retomaram a tradição na região de Aveiro e, em 2005, um grupo de entusiastas fundou a Associação Portuguesa da Classe Vouga.