
Salicórnia: a planta que tempera (saudavelmente) a nossa vida
A viagem de barco é relativamente curta, ainda assim suficientemente longa para nos ajudar a refrescar naquela tarde tórrida de Julho. Ninguém diria que estamos em plena Ria de Aveiro, esse espelho de água mais dado ao fresco do nevoeiro e das nortadas. Há já alguns dias que os termómetros andavam acima dos 30 graus – coisa raríssima neste ponto da costa atlântica portuguesa -, mas o dever tinha de ser cumprido. Era preciso tratar das encomendas de salicórnia fresca e Júlio e Júlia decidiram não deixar os créditos por mãos alheias. São parceiros de vida, mas também de negócio, insistindo nesse propósito de nos ajudar a temperar (saudavelmente) a vida. Dedicam-se à produção de salicórnia, essa erva carnuda que brota, espontaneamente, nas marinhas de sal, carregada de nutrientes e propriedades medicinais.
“Começámos com as primeiras experiências em 2016 e no ano seguinte criámos a empresa, a Horta da Ria”, introduz Júlio Coelho, quando estamos já em terra firme, em plena Ilha dos Puxadoiros, cuja existência remonta, pelo menos, a 1433. É ali que a empresa sediada em Ílhavo procede ao cultivo da salicórnia que vai fazendo chegar ao mercado, nas versões fresca ou desidratada. A primeira é colhida à mão, de forma a selecionar logo as plantas; a segunda já pode ser apanhada com a ajuda de uma máquina. “A apanhar à mão, os dois, um dia inteiro, apanhamos uns 80 quilos de salicórnia. Com a máquina, conseguimos apanhar uma tonelada por dia”, conta Júlia Cavaz.
No que toca à fase de crescimento da planta, o processo também não tem grandes segredos. A salicórnia vai germinando de forma natural, preenchendo os sapais de Março/Abril até Setembro/Outubro. “No nosso caso, a produção é sazonal. Há empresas que recorrem a estufas e conseguem produzir o ano todo, mas nós queremos manter o processo o mais natural possível”, afiança Júlio Coelho. Desta forma, respeita-se “o ciclo natural da planta” e dá-se uma ajuda à preservação das marinhas de sal de Aveiro. “Assim, ajudamos a manter as marinhas que são de extrema importância para a cidade”, frisa.
Mantém-se a naturalidade do processo, mas investe-se na inovação e na criatividade, tentando sensibilizar cada vez mais os consumidores portugueses para a riqueza desta planta. “Além do sal-verde, ou seja, a salicórnia em pó para ser usada como condimento, também já criámos outros produtos a partir desta planta”, refere Júlia Cavaz. Desde a cerveja ao chocolate, passando pela farinha com salicórnia, são já várias as propostas saudavelmente salgadas ao dispor dos portugueses. Seja qual for a opção, o propósito é o mesmo: ajudar os consumidores a reduzir a quantidade de sal que ingerem.

Júlia Cavaz e Júlio Coelho, proprietários da Horta da Ria
Se dúvidas houvesse quanto às características benéficas da salicórnia, as investigações académicas aí estão para o comprovar. Helena Silva, da Universidade de Aveiro, é uma das investigadoras que mais se tem debruçado sobre esta planta com o nome científico Salicornia europaea (anteriormente denominada Salicornia ramosissima). A salicórnia tem sido o seu objeto de estudo desde 1995. Numa primeira fase – ou seja, nos estudos conducentes à sua tese de doutoramento – “mais na perspetiva da biologia/ecologia da espécie”. Nos últimos 10 anos, “também na perspetiva das suas potencialidades nutricionais e medicinais”.
Os estudos científicos em torno desta espécie, alguns dos quais publicados pela equipa de investigação de Helena Silva, têm permitido atribuir à salicórnia várias características positivas, para além da sua suculência e sabor agradável. “Destaco a presença de alguns compostos, como a presença de Omega 3, e compostos fenólicos. A presença de outros compostos, para além da atividade antioxidante conferida pela presença de compostos fenólicos, sugerem atividade anti-inflamatória/anti-tumoral”, realça a investigadora da Universidade de Aveiro.
Helena Silva não hesita em juntar-se ao coro dos que defendem a necessidade de se tornar a salicórnia mais conhecida entre o público em geral. “Não só na forma fresca (saladas), como também desidratada, sob a forma de especiaria (conhecida como sal verde)”, aponta. “A sua divulgação junto das várias comunidades escolares, não só na própria degustação mas também na referência dos seus benefícios nutricionais e medicinais poderá ser uma boa estratégia de divulgação”, sugere, a título de exemplo. Contudo, a investigadora faz questão de notar que “é fundamental chamar a atenção para que a sua exploração/cultivo seja efetuada em condições sustentáveis, caso contrário poderemos estar a por em causa toda a área de salgado da Ria de Aveiro e suas respetivas potencialidades”.
Recomendada por quem percebe de cozinha
Quem já despertou, e há muito, para esta espécie nativa do Norte e Oeste da Europa – e que, em Portugal, se desenvolve nas zonas de sapal/ marinhas/salinas como a Ria de Aveiro, Estuário do Mondego, e a Ria Formosa, entre outros – foi a alta cozinha. Primeiramente lá fora, como é o caso da França, mas, alguns anos depois, também por aqui, neste recanto lusitano.
Nascido e criado em Trás-os-Montes, Duarte Eira, chef executivo do restaurante Salpoente, reconhece que foi quando se mudou para Aveiro que começou a fazer da salicórnia um dos seus ingredientes de eleição. Começou tarde, mas nunca mais a largou. “É um produto que tem várias aplicações. Tanto a usamos salteada com arroz, como para decorar e temperar pratos”, destaca.
O chef salienta-lhe também o sabor. “Faz-me lembrar, de certa forma, os grelos. Tem um certo amargor e o toque salgado”, repara. Por esta altura do ano, Duarte Eira usa-a na versão fresca, aproveitando a sua abundância na ria. Durante o inverno, opta pela versão desidratada, que continua a garantir-lhe uma dose extra de sabor e tempero aos seus pratos e petiscos. “Já fizemos, inclusive, uma manteiga de salicórnia, com a versão desidratada”, nota.
E mesmo para aqueles que não contam com dotes de chefe a salicórnia oferece umas quantas possibilidades de preparações simples. Desde a omelete com salicórnia fresca ao pão de trigo com salicórnia, há várias receitas que importa testar. Bom apetite!

Duarte Eira tem na salicórnia um dos seus produtos de eleição