
Raúl Brandão descobriu beleza e força nas mulheres da Ria de Aveiro
Afonso Ré Lau e Maria José Santana
“Todas as mulheres da beira marinha, são postas em destaque pela luz carinhosa que as envolve e protege. Criam-se nesta esplêndida paisagem de água e cor, ao mesmo tempo pacífica e delicada. No meu entender, a luz é o grande agente de beleza. A ria tem uma luz como nunca vi em parte nenhuma.” Há 100 anos, na viagem que encetou ao longo dos canais e esteiros da Ria de Aveiro, Raúl Brandão também olhou para aquelas que conjugavam os ofícios e a vida da laguna no feminino – n´Os Pescadores, o autor dedica um capítulo às mulheres, atribuindo-lhes um lugar de destaque nas diversas comunidades piscatórias. “As mulheres desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um sorriso de ternura. São como certas flores, criadas num momento feliz, que atingem a perfeição”, escreveu Brandão.
Rita Capucho, codiretora do Porto Femme, um festival internacional de cinema no feminino, enaltece a sensibilidade que o autor portuense revelou ao ter captado muito para além das caraterísticas físicas das mulheres da ria. “Ele vai mais fundo naquilo que vê, dá-lhe uma dimensão humana. Consegue perceber como é a vida dessas mulheres, mulheres que têm nos seus ombros todo o peso de terem de trabalhar, cuidar dos filhos, cuidar da casa. São elas que fazem com que aquele modo de vida funcione, são elas que além de trabalharem, cuidam da casa e permitem que os maridos vão para a pesca”, repara. O que não deixa de ser particularmente interessante, nota a promotora e programadora cultural, uma vez que “a leitura” que Raúl Brandão fez há 100 anos “ainda continua a ser um problema quando estamos a falar de igualdade de género”.
Na incursão pelo território lagunar, o escritor portuense chega mesmo a estabelecer amizade com uma mulher em particular, que apresenta como Ti Ana Arneira. “É um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal, e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho”, descreve o autor. “Raúl Brandão conseguiu perceber a vida que esta mulher tinha, uma mulher que teve de cuidar dos filhos sozinha. Conseguiu perceber toda a dimensão e toda a força que aquela mulher conseguia ter”, sublinha Rita Capucho, confessando que estes escritos dedicados à Ti Ana Arneira acabam por ser uma das suas partes favoritas do livro Os Pescadores.
Sendo natural de Ílhavo, a programadora cultural poderia sentir-se tentada a destacar a descrição que Raúl Brandão faz das suas conterrâneas. E até acaba fazê-lo, mas apenas em jeito de brincadeira. “Que me desculpem as outras mulheres da ria, mas concordo plenamente com Raúl Brandão (risos)”, comentava, em reação a essa parte do texto que descreve as nativas de vários pontos da laguna: “A mulher da Murtosa, dizem os entendidos, não se confunde com a de Ílhavo e de Ovar: é baixa e atarracada, e a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais. As de Ílhavo passam por as mais lindas, pelo sorriso que encanta, pelo olhar, e pela magia que exalam. Que o agradeçam à ria.”
Rita Capucho rende-se a esta ligação da beleza à ria. “Concordo com Raúl Brandão nesta ideia de sermos quase uma extensão da paisagem. Se visitarmos a ria em diferentes períodos do dia, ela vai ser sempre diferente. A nível das cores, da luz, está sempre em mudança. E isso é muito parecido com o que acontece com os seres humanos, com as pessoas: mantemos as nossas características, mas também vamos mudando ao longo do dia. Não só o nosso estado de espírito, como também os papéis que vamos representando ao longo do dia. A prima, a amiga, a profissional…”, comenta.
Numa conversa que teve como cenário o canal de Mira, em plena marginal da praia da Costa Nova, desafiámos a codiretora do Porto Femme a tentar imaginar o que Raúl Brandão escreveria hoje sobre as mulheres da Ria de Aveiro se cá voltasse. “Acho que iria continuar a olhar para elas com muita admiração, vê-las nessa dimensão humana como mulheres fortes, que conseguem fazer tudo e bem”, começa por equacionar. O que mudaria? “Se calhar já não usaria a expressão ‘como um homem’, mas sim ‘como uma mulher tão bem o faz’”, admite Rita Capucho.
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