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Shuggie Bain, uma história dura com uma mensagem de esperança

Opinião

A Páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Esta semana trago-vos um livro com uma história dilacerante que conjuga, de uma forma única, a dureza e a crueldade dos relatos de uma vida de dependência, de uma família a desmoronar-se, onde os vícios, as dificuldades e a falta de amor e de afetos têm como contraponto a beleza e a doçura do amor e dedicação de um filho à sua mãe, cuja destruição acompanhamos ao longo da história, bem como os seus efeitos na família. Douglas Stuart estreou-se com este livro que tem por inspiração a sua infância, e não se podia ter apresentado de melhor forma. Mais do que um belíssimo escritor, “Shuggie Bain” revela-nos o grande ser humano que cresceu, de forma inacreditável, no meio de uma vida dura e de destruição e ausência de afetos.

“Shuggie Bain” foi o justo vencedor do Man Booker Prize, um dos mais importantes prémios literários de língua inglesa, tendo ainda sido eleito Livro do Ano nos British Book Awards e finalista de muitos outros prémios de prestígio.

Os prémios que recebeu, mais do que merecidos, são o menor dos motivos pelos quais vos sugiro a leitura deste livro que me conquistou, não só pela escrita cativante e envolvente, como também pela criança corajosa, resiliente e cheia de amor que este livro me deu a conhecer e que me encheu de ternura, esperança e ousadia de pensar que há pessoas boas, mesmo que a vida tenha tudo para que não vingassem.

As histórias contadas com alma são sempre as mais bonitas e as mais inspiradoras e Douglas Stuart demorou 10 anos a escrever este livro, repleto de sentimento, que nos deixa entrar na sua intimidade e na da sua família, revelando-nos uma vida dura de vícios, sofrimento, miséria e tristeza que nos apresenta como o terreno fértil para um amor doce, puro, resiliente e comovedor do filho pela sua mãe.

Será que quem não teve colo, tem colo para dar? “Shuggie Bain” mostra-nos, com apenas 8 anos, que sim, que é possível dar o que não recebemos e que foi esta a sua vida e a sua infância. Este menino de sentimentos nobres nutriu pela sua mãe um amor verdadeiro e resiliente e que, mesmo quando esta o afastou, desistindo dela própria e dos seus filhos, ele nunca a abandonou e teve sempre esperança na sua recuperação – até mesmo quando era o único a acreditar pelos dois. O que vamos descobrir nesta história, e que nos vai encher de ternura e esperança, é um amor lindo e puro e uma dedicação sem limites de um filho à sua mãe.

A história de Shuggie Bain e da mãe, Agnes Bain, teve lugar na Escócia numa altura em que o Reino Unido vivia as consequências das políticas de Margaret Tatcher: muitas famílias ficaram desempregadas e foram deslocadas para os bairros sociais na periferia dos centros urbanos, onde se vivia na miséria e degradação e onde os vícios e as dependências e um consumo desenfreado que começava a aparecer, tomavam conta desta classe de proletários que, colocados no desemprego, desistiam dos seus sonhos.

Numa Escócia dividida entre os apoiantes do Celtic e dos Rangers, manifestação desportiva da divisão mais profunda entre católicos e protestantes, é-nos relatada uma sociedade onde esta divisão desportiva e religiosa ergue um muro social difícil de derrubar e origem de tantos conflitos. Agnes Bain, a mãe do nosso protagonista, é uma mulher bonita, vaidosa e sonhadora que alimentou sonhos e projetos de vida e que se separou do honesto e monótono pai dos dois filhos mais velhos, para se juntar a um taxista mulherengo e sedutor que lhe promete arrancá-la desta vida segura, mas entediante. Mas a promessa feita é o início da sua destruição e o “príncipe encantado” – para Agnes e tantas outras – fá-la descobrir um ciúme doentio que a levam a procurar conforto no álcool e no tabaco. Incapaz de lidar com os seus ciúmes e o vício da bebida, o marido tira-a do conforto da vida que os pais da classe média lhe proporcionavam e leva-a para um bairro social na periferia onde a deixa ficar com os filhos, dependente dos abonos sociais que rapidamente se esgotam nos vícios que a consomem.

Sozinha e com três filhos, Agnes Bain vê-se numa casa pobre e feia, num bairro social onde não conhece ninguém e ao qual sente não pertencer, tal é a pobreza, miséria e desleixo que vê à sua volta. A sua integração no bairro não é facilitada pela hostilidade com que os vizinhos a recebem e que, apercebendo-se do seu brio e vaidade a vestir, mas, sobretudo, da sua beleza, que não passa despercebida aos homens do bairro, rapidamente a tornam alvo de críticas e de afastamento por parte das vizinhas. Infelizmente, a única vizinha que se aproxima dela é também alcoólica e arrasta Agnes para um fosso ainda maior.

Num bairro que representa um degrau abaixo do patamar social em que vivia, com três filhos, dependente do abono do Estado e sem o homem por quem ainda continuava apaixonada e que continua a procurar insistentemente, o autor relata-nos a degradação de uma mãe que desiste de si e de todos os que lhe são próximos, até mesmo dos filhos…

“Faz o que tiveres de fazer, Agnes, mas não desistas, mesmo que não o faças por ti, mesmo que só o faças pelos teus filhos. Não desistas. É isso que as mães fazem.”

A filha mais velha, percebendo que nada consegue fazer para salvar a mãe, sai de casa e do país, acompanhada pelo marido e corta relações com a mãe. Mais tarde, é a vez do filho do meio que, resistiu enquanto pôde para apoiar o irmão, mas, percebendo que só se pode salvar se sair de casa, acaba por se salvar a si próprio.

Fica apenas Shuggie Bain, entretanto com 9 anos, o filho querido e mimado da mãe. Não podemos deixar de nos comover com o relato dos momentos de ternura e de dedicação desta criança, tão pequena, à sua mãe destruída pelo álcool. Como o relato do momento em que, depois de a encontrar desmaiada e sem reação, a penteia e toma conta dela como se de um pai se tratasse. A forma terna como o autor descreve estes momentos deixa-nos encantados e coloca em questão a ideia firme que temos de que amamos e cuidamos da mesma forma que o fizeram connosco. Pode não ser sempre assim, pode haver quem, como Shuggie Bain, tenha um coração capaz de dar mais do que recebeu.

E depois de sofrermos com a crueldade e dureza desta vida e de nos condoermos com a desgraça desta família destruída pelo vício, é comovente olhar para a dedicação deste pequeno menino à sua mãe e na esperança de que se alimenta, uma esperança enorme, esperança por si e pela mãe. “Estas duas pessoas, novas em folha, permitiram-se um minuto de silencio, de sonhos de paz.” Mas “uma coisa estava clara: ninguém tinha a oportunidade de ser novo em folha”.

Não posso deixar de considerar que, com este livro, o autor escreveu um emocionante hino à sua mãe, que sempre amou e de quem nunca desistiu, ao ponto de se esquecer da luta interna que vivia quando se apercebeu que não era igual aos outros meninos da sua idade. O seu brio, sensibilidade e cuidado na apresentação, bem como os gestos efeminados e o gosto pela dança fazem com que se sinta diferente dos outros meninos. Ridicularizado, segregado e gozado por ser diferente, Shuggie vive esta descoberta da sua identidade sozinho, sem ter com quem falar e sem se poder apoiar em ninguém. A par da dificuldade que é viver sozinho, na companhia de uma mãe dependente de si e do álcool, Shuggie Bain trava sozinho esta dura descoberta da sua sexualidade e da certeza que algo errado se passa com ele.

Ao acompanhar a luta desta família, e a destruição que os vícios causam, distinguimos duas formas de reagir a esta dura realidade: desistir dos que não têm salvação para nos salvarmos ou acalentar uma esperança sonhadora sem nos apercebermos que nos estamos a arrastar, porque a nossa esperança não pode dar pelos dois. “Bem, sabes o que penso? O que penso é que quanto mais amas uma pessoa, mais essa pessoa se aproveita de ti. Nunca faz o que precisas, só o que lhe dá na real gana.”

Terminei a leitura deste livro apaixonada por este escritor fantástico e sobretudo deliciada com esta mensagem linda de que a dura realidade em que viveu não o impediu de amar e de acalentar a esperança até ao fim e que mesmo quando tudo é mau, os gestos de ternura podem trazer o colorido da beleza ao cenário mais escuro e triste.

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A páginas tantas”
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