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"Uma Educação”: a vida de Tara Westeover deu um livro

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Poucos livros mexeram comigo como este que vos apresento esta semana e que não deixa ninguém indiferente. “Uma Educação” relata-nos a vida dura e o preconceito que dominaram a infância e adolescência de Tara Westover no seio de uma família ultraradical Mormon, de uma corrente conhecida como sobrevivencialistas, em que os filhos eram registados aos sete anos, obrigados a trabalhar de forma árdua e quase desumana, afastados do ensino oficial e do mundo real, a crescer numa realidade fabricada em que se preparavam para o fim dos tempos, para ver o Sol escurecer e a Lua pingar, sem saber que o Holocausto tinha existido, rejeitando a medicina e os médicos e medicamentos e a acreditar que a sua vida era “a verdade” e que todos os outros estavam enganados quanto às suas crenças, convicções e opções de vida.

Seria melhor se este livro fosse uma distopia, mas o facto de sabermos que este relato é real torna esta história de superação ainda mais dura. É difícil pensar como é possível superar todos os traumas e todos os efeitos de uma educação neste contexto, e como é possível viver nesta realidade paralela. Mas quando as nossas referências e a verdade que tomamos como certa vem daqueles que mais respeitamos e veneramos, nem ousamos pôr em causa tudo o que nos afasta do conhecimento e do mundo exterior. Sair dessa realidade exige, mais do que conhecer o que se passa para lá dos “muros” da nossa realidade e da nossa família, questionar e pôr em causa todos aqueles que lhe deram origem e que eram o nosso suporte. No caso de Tara, sair dessa realidade exigiu que se voltasse contra a sua família e este foi um processo que demorou, por sentir que, com isto, os estava a trair.

“Podíamos chamar muitas coisas a esta nova identidade. Transformação. Metamorfose. Falsidade. Traição.

Eu chamo-lhe educação.”

A crueza e a beleza da escrita de Tara Westover colocam-nos no lugar da protagonista e fazem com que nos sintamos revoltados com tudo o que sofreu. O detalhe e o realismo da sua escrita são soberbos e revelam uma pessoa de uma inteligência e complexidade emocional que nos fazem apaixonar pela menina/mulher que nos relata e revoltar contra todos aqueles que a magoaram.

Tara deixa claro que, sem nunca ter tido como objetivo principal criticar o Mormonismo – religião que abandonou em idade adulta – quer alertar para o obscurantismo em que alguns dos seus membros viviam e por toda a discriminação, violência, segregação que a Igreja esconde.

A menina lutadora que esta história nos apresenta revela-nos uma força que poucos têm e inspira-nos a lutar contra os dogmas, as verdades “fabricadas”, os mundos paralelos e as consequências do fundamentalismo. A vida de Tara é uma história de superação! Afastada do ensino público ate aos 17 anos, Tara entra, a partir desta idade, no ensino público, propondo-se a estudar e a estudar de forma autónoma para os exames de acesso. Bem-sucedida nesta primeira vitória e momento de emancipação, Tara acaba por se licenciar no Trinity College e, mais tarde, por ser convidada como docente em Harvard, acabando por se doutorar em História pela Universidade de Cambridge, aos 27 anos, precisamente com uma tese sobre uma comunidade utópica criada no século XIX inspirada na ficção que foi a sua vida.

Tara fala, na sua tese de doutoramento, numa comunidade utópica inspirada na realidade da sua família de Mórmones ultraconservadores, mas o que dói na sua história é percebermos o quanto demorou a perceber que a sua realidade era errada e a afastava de um mundo de direitos, de respeito por todos e de conhecimento.

O pai de Tara punha em causa o Governo e todas as instituições que o integravam e, por isso, apenas registava os filhos já próximo da adolescência. Tara só teve a sua certidão de nascimento aos 9 anos, facto revelador da alienação do mundo real em que vivia a sua família. Além do registo tardio, Tara, à semelhança dos seus irmãos, também não tinha boletim médico, porque o seu pai não acreditava em médicos, nem em hospitais e medicamentos. E mesmo em momentos de acidentes graves dos membros da família, recusava-se a recorrer aos médicos e hospitais, acreditando no poder curativo dos medicamentos que a sua mulher fazia com base nas plantas, ainda que isso pudesse representar o sacrifício da vida dos membros da sua família. Merece uma séria reflexão esta atitude negacionista e fundamentalista que coloca as crenças religiosas num patamar superior à vida humana e, com este livro, todas estas manifestações religiosas tornam-se presentes.

Com o passar dos anos, o pai de Tara, Mórmon sobrevivencialista, foi-se afastando e afastando a sua família do mundo real, vivendo completamente alienado da realidade. A mãe de Tara acaba por criar um negócio de sucesso de venda de plantas com poderes curativos, sendo, simultaneamente, parteira. A família acredita que, deste modo, está segura relativamente aos problemas de saúde dos seus membros e mantêm uma reserva de gasóleo e alimentos que lhes permitiriam viver sem precisar de ninguém. Afastados da comunidade e da vida real, Tara vive uma infância de trabalhos forçados e sem qualquer segurança, sendo forçada a trabalhar, tal como os seus irmãos, na sucata do pai. Numa família em que a mulher é vista como um ser inferior ao homem, devendo manter-se casta e afastada dos olhares dos homens, Tara foi vítima de violência excessiva por parte do irmão, que contava com a conivência dos pais e de toda a família. Com a justificação de que a estava a proteger e evitar que ficasse com “má fama” e que a violência usada era para seu bem, Tara demora muito a perceber que não merecia esta violência e que aquilo que lhe estava a acontecer não tinha qualquer justificação, nem perdão…. Mas Tara só toma consciência de que a violência do seu irmão não pode ter justificação quando toma conhecimento de outras vitimas dos mesmos atos e, por elas, Tara finalmente revolta-se.

“Como tinha aberto a boca quando devia ter ficado calada e como me calara quando devia ter falado. Era necessária uma revolução, uma inversão dos antigos papeis frágeis que desempenhávamos desde a minha infância. O que era necessário – aquilo que Emily precisava – era uma mulher emancipada do fingimento, uma mulher capaz de se revelar como um homem. Que manifestasse uma opinião. Que tomasse medidas, desprezando a deferência.”

Quando, contrariando a vontade do pai, Tara se candidata à escola publica, dá início à sua Educação, porque, mais do que querer aprender, Tara quer ter a acesso à Educação que lhe permitira afastar-se do mundo em que vivia e conhecer o mundo real que lhe era ocultado… essa sim, foi a sua verdadeira educação.

“Uma Educação” é a história apaixonante de uma mulher que se reinventa e o relato de uma família destruída pela dor, pelos efeitos perversos do fundamentalismo e pela mentira. Mas é também uma história de uma família e da dor e separação dos seus membros que não aceitam viver nesta escuridão. A verdadeira educação consiste em ver a vida com os olhos do esclarecimento e a vontade de conhecer a verdade e de nos afastarmos da mentira e do obscurantismo no seio da religião.

“Não ter a certeza, mas recusar ceder àqueles que afirmam tê-la, era um privilégio que nunca permitiria a mim mesma. A minha vida era-me narrada por outros. As suas vozes eram categóricas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorrera que a minha voz pudesse ser tão forte como a deles.”

Esta é também uma história de autoconhecimento e de descoberta interior e aceitação. “O bispo estava calmamente sentado atrás da sua secretária. Perguntou em que podia ajudar-me, e eu respondi que não sabia. Ninguém podia dar-me o que queria, porque o que queria era ser refeita.”

Esta é também uma história de como até a luta contra os preconceitos é mais difícil quando não se dispõe de independência financeira. “Aquele semestre fui uma aluna desprovida de curiosidade. A curiosidade é um luxo reservado aos financeiramente seguros: a minha mente estava absorvida com preocupações mais imediatas, como o extrato exato da minha conta bancária, a quem devia o que e se tinha alguma coisa no quarto que pudesse vender por dez ou vinte dólares”. “Levei semanas a conseguir encaixar este facto, mas, à medida que o ia fazendo, comecei a sentir a vantagem mais poderosa do dinheiro: a capacidade de pensarmos noutras coisas que não em dinheiro.”

A dureza deste processo de educação, faz com que Tara se revolte contra a realidade em que cresceu e que lhe era incutida pelos pais, obrigando-a a afastar-se de todos estes dogmas e a cortar os laços com a sua família. É verdade que é inspirador esta entrada no mundo da verdade e da luz, mas para Tara foi também um caminho de dor e traição, porque foi o caminho necessário e que a obrigou a afastar-se da sua família. Porque o que faz de nós pessoas completas é este crescimento e conhecimento que permite que sejamos nós os autores conscientes da verdade em que construímos a nossa vida.

“…. Sou atingida por uma verdade tão poderosa que não percebo como nunca a compreendera antes. A verdade é esta: não sou uma boa filha. Sou uma traidora, uma loba entre as ovelhas; há em mim algo diferente e essa diferença não é boa. Quero gritar, chorar com a cabeça enterrada nos joelhos do meu pai e prometer nunca mais repetir. Porém, como loba que sou, não desço ao nível da mentira em de qualquer maneira, ele farejá-la-ia.”

As marcas da violência e da dureza que foi a vida de Tara, fizeram com que crescesse afastada dos afetos e elogios e sem fé em si própria. “Tolerava qualquer forma de crueldade melhor do que a gentileza. Os elogios eram um veneno para mim, sufocavam-me. Queria que o professor gritasse comigo, desejava-o tão profundamente que a privação me deixava estonteada. A minha fealdade tinha de ser exprimida. Se não o fosse pela voz dele, teria de ser pela minha.”

A confiança em si e nas suas capacidades demorou a aparecer, e Tara fechou as portas àqueles que a quiseram ajudar neste caminho “Não és ouro falso, daquele que brilha apenas sob uma luz particular. Quem quer que venhas a ser, o que quer que te tornes, foi assim que sempre foste. Esse brilho sempre esteve em ti. Não em Cambridge. Em ti. Tu és ouro.”

Só consegue terminar este caminho quando aceita revelar a realidade em que viveu, perceber que fez parte da sua história e que não queria continuar a viver assim. Não podemos afastar-nos da nossa realidade enquanto não a aceitarmos.

É muito interessante e humano compreender que Tara, como todas as meninas e mulheres, também partilhava este anseio da beleza e das roupas que enchem a nossa vida de beleza. A beleza que lhe tinha sido sempre negada por ser diabolizada e mal vista na sua família e religião, são-lhe oferecidas como prémio desta libertação pela verdade. “Ela era apenas uma rapariga sem instrução num vestido bonito. Até acreditar em si própria. A partir daí, pouco importava que vestido usava.”

Vemo-nos nas próximas páginas.

Boas leituras!

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária "A Páginas Tantas"
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