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Desconstruir a “normalidade” e não desistir de ser feliz

Opinião

A páginas tantas

Filipa Matias Magalhães*

Antes de vos falar do livro, vou apresentar-vos a autora Bernardine Evaristo, uma britânica filha de pai nigeriano. Ousada e desafiadora a escolher os temas dos seus livros, utiliza a literatura para desconstruir mitos e preconceitos e fazer uma análise muito real da sociedade atual e tem uma capacidade inata de pegar em qualquer assunto e personagem e dar-lhe as características necessárias para nos identificarmos com as personagens e nos apaixonarmos pela história. Senti isso quando li o romance “Rapariga, Mulher, Outra” – vencedor do Booker Prize 2019 – e voltei a sentir ao ler “Mr Loverman”.

Uma das características que mais gosto nos livros de Bernardine Evaristo é a forma apaixonada como constrói as personagens e faz com que aquilo que nos distingue destas se esbata pelos traços em comum que vai criando.

Este livro tem como personagens principais dois homens de setenta anos que vivem uma relação amorosa desde a adolescência, que escondem sob a capa de uma vida “normal” – a adjetivação não é minha, mas sim da própria autora que, para se referir à máscara que os esconde, utiliza muitas vezes o adjetivo “normalidade”, um “almoço normal” – e que decidem aos setenta anos derrubar para viver o amor que os une.

Barry, o protagonista, nasceu na ilha de Antígua e emigrou para o Reino Unido nos anos 1960, onde prosperou financeiramente, construindo um bem-sucedido negócio de compra de casas que recupera para vender ou arrendar. A par da sua vida de sucesso, Barry não descura a sua paixão pela cultura e pelas artes e frequenta cursos de história de arte, literatura e outros. É um homem culto, bem-sucedido, com um grande cuidado na forma como se veste e como fala – introduzindo frequentemente citações de Shakespeare e outros autores no seu discurso. Barry é a personificação de um gentleman que não recusa uma boa festa onde a dança e a bebida – para desespero da sua mulher – estão sempre presentes.

Para “fugir” do rótulo e da discriminação que uma relação homossexual na sua cidade, Antígua, lhe traria, Barry casa-se com Carmel e emigra para o Reino Unido, achando que numa sociedade mais liberal estaria longe dos preconceitos. A verdade é que, nem em Inglaterra Barry consegue a coragem para assumir a sua homossexualidade e vive 50 anos casado com Carmel, de quem tem duas filhas e um neto.

A sua relação com a mulher, as filhas e até mesmo o neto, é-nos contada através da descrição dos episódios da vida diária de Barry e da sua família. Uma vida e uma família que podiam ser as nossas, tantas são as semelhanças que aproximam.

A autora consegue a proeza de nos colocar no lugar das personagens e, como estas, ter os pensamentos mais banais, sobre os aspetos mais simples da sociedade em que vivemos, como esta constante invasão da privacidade até à mais profunda reflexão sobre os relacionamentos.

“Hoje em dia, ponho o pé fora da minha casa e já estou a ser vigiado. O Grande Irmão entrou na vida da gente e nenhum de nós se manifesta contra. Nem burrié eu posso tirar do nariz sem que fique gravado para a posteridade.”

Barry não podia ser mais parecido com todos os pais que conheço, na tentativa, tantas vezes mal compreendida de aconselhar os nossos filhos. “Mas vou dizer o quê a ela? Não emprestes, nem peças emprestado. É esse o problema de todo o progenitor. A gente tem as nossas experiências, psicologia colhida em todo o lado e as nossas opiniões, e quer legar tudo isso aos nossos filhos, mas, quando tenta, eles reagem como se a gente estivesse a insultar.”

O humor e a verdade da sua relação com as filhas fazem com que qualquer leitor que também é pai se sinta sem comunhão de sentimentos com Barry. “(Vou ser sincero, não sei se teria matado pela Donna. Os pais dizem essas coisas que talvez sejam literais quando os filhos são bebés inocentes, mas depressa eles começam a responder torto e não sei se, nessa altura, a gente se mantém na disposição de mergulhar nos rápidos para salvar eles. Pelo contrário, talvez haja ocasiões em que de bom grado a gente os empurrava).” Estes momentos de pura empatia são tão especiais que é impossível não desejarmos o melhor desfecho para Barry e o seu companheiro Morris.

“Deus do Céu, que esses nossos filhos conseguem ser cruéis e desprezíveis. Acham sempre que foram eles a inventar os sentimentos e que nós não temos nenhuns”.

E como numa família que se quer o mais “normal e tradicional” possível, Barry tem um neto a quem paga os estudos e com quem tem uma relação especial, para contrabalançar com a prisão em que a mãe o quer ver para que o seu filho “não faça parte das estatísticas”.

Daniel, um excelente aluno, ambicioso e com um futuro promissor fica uma semana ao cuidado do avô e o filho exemplar que a mãe julgava ter, revela-se um adolescente curioso e rebelde na presença do avô.

“Apetece-me dizer-lhe: Danny-Boy, ao contrário de vocês, adolescentes que são todos uns iluminados, nós, adultos, somos uns palermas que se contradizem a toda a hora. Fazemos muita asneira. Desculpa se não somos perfeitos, meu caro, mas apenas estamos a tentar que vocês não repitam as nossas asneiras.”

Já com mais de 70 anos e depois de ter assumido a sua homossexualidade perante os preconceituosos amigos do neto e as duas filhas, Barry e Morris são apresentados aos amigos homossexuais da filha mais nova que os tratam como “espécimes em cativeiro” e uma “curiosidade digna de estudo”, querendo fazer da sua história um caso de estudo e incentivando-os a revelarem-se de forma mais incisiva. Mas Barry, sem nunca querer negar o amor que sente por Morris, está apostado em viver essa relação de forma plena e serena, contrariamente à forma exuberante como os mais novos vivem a sua homossexualidade.

“Eu também gosto da discrição, mas a sociedade nunca vai ficar mais igualitária não havendo um punhado de corajosos que sobem ao palanque e começam as revoluções, como aconteceu na Rússia, no México, na China e na França. É que, ao contrário de ti, que parece convencido de que é superior a quase toda a gente, eu acredito na igualdade. Nunca gostei de discriminação de nenhum tipo.”

A forma como a autora utiliza uma linguagem pouco cuidada para nos fazer entrar na personagem, fazem com que tudo o que nos está a ser contado, muitas vezes pelo próprio Barry, seja ainda mais real.

Mais do que um romance, esta é uma excelente lição de como nunca é tarde para viver o verdadeiro amor, que não existe isto do “normal” ou se existe, não temos todos que ter o mesmo quadro de “normalidade” porque quando os sentimentos são verdadeiros não têm género. Barry dá-nos também uma excelente lição sobre o desafio constante que é a paternidade e de como o amor pelos filhos, apesar de incondicional, por vezes nos faz desesperar e a honestidade com que nos fala da sua relação com as filhas faz-nos sentir a partilhar os mesmos problemas, alegrias e dilemas. A história de Barry e Morris é uma bonita lição sobre a resiliência e serenidade que permitem derrubar preconceitos e permitir que cada um viva a sua história e os seus valores. Mas o mais bonito de tudo neste livro é a forma bem-disposta e alegre como a vida dos dois e das suas famílias nos é apresentada.

Espero que se divirtam e desfrutem tanto quanto eu desta bonita e divertida história de vida e de amor.

Vemo-nos nas próximas páginas!

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A Páginas Tantas”
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