
Rádio, transmissão ao vivo
Virgílio António Nogueira
Outrora, antes da invenção, ter-se-ia falado de magia, de uma forma do demónio manipular a alma, de uma insanidade de quem a imaginava ou de uma fantasia, se entendida a ambição com benevolência. Em caso inverso, seria compreendida como uma loucura.
A rádio terá sido sonhada para aproximar as pessoas, torná-las menos distantes, redesenhando a geografia, a emocional pelo menos, que também ela possui picos montanhosos, vales profundos, planícies irrigadas por rios, desertos dourados, caminhos com outeiros e miradouros para os dias seguintes, percursos que os viajantes, as famílias, os amigos, fazem para se avistarem ou se reverem.
A rádio chorou logo no berço, revelando ter pulmões fortes e a voz foi crescendo, multiplicando-se noutras, muitas, milhares e milhares, um coro de diferentes línguas e dialetos, tornou-se no eco da polifonia dos lugares, das gentes e dos instrumentos. Talvez tenha sido a primeira a transformar o mundo na bola que cabe na mão que não precisa de ser muito larga e longa para a segurar.
A nossa amiga rádio está sob a mesa de cabeceira, ao lado do leito, adormece-nos desperta-nos, diz olá ou boa noite conforme a hora, pela manhã antecipa a chuva ou o calor; a que nos traz as notícias do fim da rua e as do fim do mundo, e cuja música nos lembra de exercitar os músculos que movimentam o corpo e os outros, os impalpáveis que movem a criatividade.
A tecnologia da rádio ofereceu uma inédita instantaneidade, a comunidade que sabe e que partilha ao mesmo tempo, que pode reagir, ser interlocutora. A rádio será a brisa ou a corrente de ar que se não veem, não se sentem, mas que por ventura causam um arrepio ou um estremeço benfazejos. Talvez seja ela o princípio da descorporização para que a história tende, essa consciência que sobreviverá sem esqueleto. Quiçá seja o primeiro fantasma comummente aceite nessa condição.
No passado dia 13 deste mês de fevereiro a rádio cortou a fatia do bolo, pois a data comemora-a, celebram-na todos os que a trazem nos ouvidos, a deixam atravessar as pontes suspensas intracranianas e a resguardam na habitação de paredes sólidas do coração.
A muitos de nós, da geração das chamadas “rádios piratas”, essa pirataria significou dispor e construir a liberdade: a de usar um meio público de forma autorregulada, com consciência cívica e espírito comunitário, sem trela da tutela estatal e dispensando o açaime de tutores do gosto. Depois, com a “legalização”, os piratas foram postos na ordem, uma vez mais combateu-se a lei e a lei ganhou.
Em Aveiro muitos de nós lembrarão a Rádio Oceano ou a Rádio Regional de Aveiro. Recordarão a programação tão rica quanto díspar, em que em poucas horas se corria pelo globo terrestre sem sair do assento: ouvia-se a música tradicional argentina, o jazz do sul dos Estados Unidos da América, as canções em punho do José Mário Branco ou os temas sombrios do pós-punk e as cançonetas dos top desse antanho. Horas de alegria e aprendizagem sem lições professorais, pedagogia cultural e artística informais, debates e informação, passatempos, rádios que se faziam ao etéreo sem amarras às playlist, dispensando as algemas e ficando com a veleidade de acederem a discos antigos e de trazerem dos nichos relíquias sonoras estimáveis, ademais, nos casos extremos, temas dos autores interditos; sempre se diria que para as almas gigantes não há canções malditas que amedrontem e sejam postergadas das escolhas, inexistem domingos sombrios que atemorizem os locutores ou o auditório como uma superstição azarada.
Nesta época e neste local, há radialistas no orfanato, canções a tocar nos sótãos das memórias, discos no luto do vinil, ouvintes a tentar sintonizar o que preveem seja “alguma coisa de jeito”.
O silêncio retoma de novo como essa pessoa anónima que nos aguarda no recobro após a cirurgia hospitalar. Figura que esperamos que se suma quando o som da rádio renascer e soar como o da chuva muito esperada depois um verão duradouramente seco.
Hoje no concelho aveirense há um silêncio no espectro radiofónico que promete ser interrompido pelo nascimento da rádio universitária que o presidente da Associação Académica da Universidade de Aveiro, Wilson Carmo, anunciou recentemente. Que a boa hora chegue e a nossa academia cumpra o seu plano com a audácia própria da inquietude dos jovens, da irreverência saudável e profícua de se aterem ao que o passado deixou, que não seja o cotão, e de arriscarem as páginas em que a linguagem vai testemunhar a novidade.
Como rasgar o terreno e abrir uma avenida, uma nova rádio dá-nos novos acessos, novos passeios, novos consumos, poderá até ser um arruamento mais luminoso, será sempre um caminho novo, com casas e moradores novos. É com inteiro otimismo que queremos dar as boas vindas ao novo vizinho!
Que a rádio continue a fazer companhia aos foragidos, aos que andam a monte, fugindo das estações de junky sound, o correspondente radiofónico da junky food da restauração. Que traga os códigos secretos aos ouvintes escondidos na solidão das metrópoles, esperando pelas palavras-chave ou pelas melodias que lhes renovem o ânimo, o oxigénio, o sangue. Ou que sirva de banda sonora ao convívio social. Estão longe de estarem esgotadas as possibilidades deste meio, entre outras, as potencialidades de cruzamento com outros meios e suportes de comunicação que não lhe desvirtuem a essência e a criação, a lavra específica da rádio.
A autoria em rádio comporta a aura que se atribui à obra de arte, na medida em que surpreende, em que é feita nos instantes “aqui e agora” que a emancipam da repetição, por serem únicos. Não são uma reprodução, uma gravação ou um podcast se a rádio for a “transmissão ao vivo” de que nos fala Transmission, a faixa da banda inglesa Joy Division que continua a “tatear a distância” e a chegar até aos tímpanos dos que a ouvem sem cansaço nem remorso. A rádio de autor tem mestria na conjugação da voz com a instrumentação e com as pausas, muito parecida, se não igual, à dos mestres que casam as cores e riscam na tela os traços com originalidade. No fim, uns e outros, interpelam e surpreendem o público, fazem-no exclamar, refletir, apreciar.
Parabéns à nossa amiga rádio e à filha que em breve nascerá.
Alvaniza Macedo
Uma crônica envolvente onde a cada linha escrita amplia a sede pelas informações ali contidas. Viajei, atravessei o tempo de minhas memórias e lembrei-me do rádio na sala onde meus Pais se inteiravam dos acontecimentos locais e mundiais. Parabéns Virgílio pela bela e envolvente crônica.