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Komorebi木漏れ日. O sol e as antigas árvores do Largo Capitão Maia Magalhães

Opinião

 

Há canções que ficam depositadas numa espécie de sótão neuronal, no cérebro humano, assomam em diferentes circunstâncias, como se a memória recorresse à música por ser emotiva e mais afeita à associação de ideias, de tempos, de circunstâncias. Esta é uma das canções, este é um dos casos da relação. Em 1965, os Beatles lançam “Rubber Soul”, o álbum que incluiu, entre outras pérolas sonoras, o tema “In My Life”, uma melodia, mais outra do quarteto de Liverpool, com estrutura graciosa e o virtuosismo que diverte com a passageira, mas rebuscada, sonoridade própria do grupo inglês e das melhores peças de Bach. Lançado o anzol e no mar de vinil, a agulha do gira-discos disfarçada de cana de pescar trouxe à superfície, entre outras, estas palavras: “There are places I´ll remember all my life, though some have changed. Some forever, not for better. Some have gone and some remain. All these places had their moments with lovers and friends, I still can recall. Some are dead, and some are living In my life, I´ve loved them all”.

A recordação do conceito nostálgico da canção surge ao passarmos no largo Capitão Maia Magalhães, um dos pequenos pulmões desvitalizados da cidade de Aveiro. Local que muitos aveirenses lembram com a saudade, ali vividos alguns dos dias perfeitos da juventude. Recordam as árvores frondosas, de troncos hercúleos, em frente da antiga escola primária do Adro. Elas marcavam as estações do ano, reconhecia-se o correr dos meses na fartura, ou não, e na cor, ou na ausência, da folhagem.

Os catraios não realizavam a perfeição daqueles dias e mal conheciam os vultos da música da época. Por exemplo, Lou Reed, que andaria, então, a semear os sons e as sensações que mais tarde os públicos colheriam. A referência ao cantor nova-iorquino surge porque no disco “Transformer”, de 1972, o segundo a solo pós Velvet Underground, integrava a sedativa e maravilhosa faixa “Perfect Day”. A música que liga os miúdos do largo, aos japoneses dos parques arborizados de Tóquio. Se as palavras seguintes não forem elucidativas para traçar o paralelismo, fica a sugestão: assistir ao filme “Perfect Days”, de Wim Wenders, obra de 2023.

Uma imagem congelada do pretérito redor do largo revela os carros de combate ao fogo repousando no edifício dos Bombeiros Novos, as mães grávidas entrando na Casa de Saúde, um berço de aveirenses e a prisão do Nicolau, o pinguim retido em cela solitária, pilhado à natureza polar e exibido como troféu exótico. Na Rua do Campeão das Províncias, artéria com o nome a homenagear o jornal homónimo, a notícia do fim da guerra colonial lia-se na página da frente, na casa habitada pelas famílias africanas que viajavam para Aveiro com a vontade de aprender o magistério primário e poderem, depois de encartados para exercer a profissão, regressar como professores aos seus países.  

Nas férias escolares os miúdos das imediações do espaço reuniam-se nos bancos de madeira de pés de cimento colados ao chão calcetado com pedras de calcário, ora brancas, ora azuis. Em alternativa, sentavam-se nos degraus rijos e frios da porta do estabelecimento de ensino. Trocavam palavras, mercadoria jocosa, riam-se para que o rio sonoro das gargalhadas continuasse a jorrar, arreliavam-se uns aos outros e depois partiam ao desafio. Jogavam com berlindes, bolas de vidro que se assemelhavam a olhos de répteis e lançavam as cavilhas de ferro com fúria para se enterrarem no chão de terra seca. Habilidades pessoais e metáforas da conquista de bens e de terras. Reproduziam, eles e elas, os polícias e ladrões, sem distintivos nem cadastros, apenas para se desencontrarem e se perseguirem com a tensão erótica apropriada à adolescência. Brincavam às escondidas para se enganarem, disfarçarem, silenciarem, quererem ganhar a invisibilidade e, claro, a entendê-la como condição impossível. Como cães, os rapazes, preguiçosos por não quererem ir à casa de banho, urinavam nos intervalos das unidades de betão do monumento de homenagem aos Bombeiros do Distrito de Aveiro. Apagariam o fogo logo ali, ignorando a devida reverência à estátua. Coisas da canalha, diriam as mães deles para absolvê-los do desrespeito e do cheiro duradouro do mijo na areia húmida.

As cachopas e os cachopos participavam na festa que se fazia no largo, no final de agosto, sem ainda saberem que no dia 24 desse mês, o moço, o diabo, era solto da capelinha de S. Bartolomeu. Acalmava-se o demo, esperando que a dose de liberdade aliviasse a vocação malévola do capeta. Esta terra de marés e de gentes em trânsito ama ser livre e até ao mafarrico é dado o prazer da libertação.

Os verões, passados no abraço do Capitão, teriam mais calor, dissipado em parte pelo telheiro verde das folhas. Os miúdos faziam, na língua de terra em que a europa finda a ocidente e se debruça sobre o mar, o mesmo que os japoneses nas suas ilhas longínquas: espreitavam o céu e acolhiam os raios de sol que atravessavam as folhas nos espaços aleatoriamente abertos pelo vento. O povo nipónico criou uma expressão propositada para esta atividade humana de contemplar o sol que escapa à vegetação e desfrutar da luz emanada: Komorebi 木漏れ日.

Poderiam, as crianças aveirenses frequentadoras do largo, ser, também elas, as personagens banais, sem heroicidade peculiar, de uma estória que o citado realizador alemão Wim Wenders trouxe para as imagens em movimento: a do homem japonês que abdicou da prosperidade financeira e do estatuto social, mas não da beleza das composições musicais que trazem nas letras a magia e a boa expetativa de cada alvorada. O que verdadeiramente contava para a riqueza do nipónico era a sensação da luz que passa as nuvens, esgueira-se da cobertura das árvores e beija-lhe os olhos.

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Estamos em janeiro de 2024. Nesta fase chove todos os dias. Os vidros sustidos nos caixilhos de madeira das janelas alojam as gotas pluviais, as lágrimas caídas dos olhos cinzentos do céu teimam em não secar, não deslizam para o parapeito da varanda. Persistem nos quadrados transparentes a pôr em causa a força invisível da gravidade. Chove sempre, a todo o tempo, em todo o espaço, como a chuva constante de “Blade Runner”, a obra-prima de Ridley Scott, de 1982. Ele olha para ti, adormecida, estendida no sofá azul riscado por traços dourados. A mesma música que Vangelis criou para a distopia derrama-se na sala de estar, o mesmo arrastado fantasma de neblina encobre, desta feita, os campos agrícolas adjacentes ao rio cujo leito frio reage aos ósculos dos dardos do imaturo sol da manhã. A melodia do compositor grego sabe a um xarope alquímico, à poção feiticeira processada nos sintetizadores. Som perfumado que irá emergir e circular nas casas, nas ruas, nas viaturas, nas salas de cinema, nas condutas dos vapores que ressoam a música.

“Philip K., este inverno cansa-me. Está muito frio e o sol continua tapado pelo cobertor negro. Semanas a fio. Sinto saudades da luz que ilumina as plantas, que banha os ferros e a cantaria nas fachadas das casas do centro, que se reflete na humidade das pedras, que acaricia as pétalas das camélias” – ciciou ela.  

Ele mirou-a e forçou a imaginação a recordá-la como a menina que ele amara pela primeira vez. A doença tornara-a esbranquiçada, o rosto afiado, carcomido, as pedras pretas das órbitas oculares a caírem no infinito sem que jamais escutemos o estrépito da queda.  

Ela que havia sido uma princesa moura esquecida no tabuleiro de xadrez de peças cristãs, o cabelo negro e grosso, a tez nascida de genes queimados pelos desertos abrasantes, os dentes resplandeciam a alvura do marfim.

Quando se conheceram eles davam as mãos e caminhavam pelas ruas estreitas, desenhadas a régua e esquadro, do bairro da Beira-Mar. Não tinha ele mais de quinze, dezasseis anos. Ela parecia um pouco mais nova. Ficavam abraçados algures nas imediações do Canal de São Roque, sem saber o que procurar no horizonte, que visto dali é generoso. Jamais esqueceu que ela cobria o tronco com uma camisola vermelha justa ao corpo, delineando os seios, e os calções curtos, pretos, com as três riscas da Adidas brancas, deixavam quase nuas as pernas de pele macia de cetim.  Anos depois, aprenderiam com Horácio que esses momentos no largo ou no canal haviam sido os melhores de todos, e que a ambição e a esperança tratam-se de sonsas e traidoras dos dias felizes, carregadas de falsa bonomia. Que lhes ensinou o poeta romano:

“Carpe diem

Tu não indagues (pois não é permitido saber) que fim a mim, que fim a ti os deuses terão dado, ó Leucónoe, nem babilónicos

cálculos experimentes. É melhor aguentar o que tiver de ser,

quer Júpiter conceda muitos invernos, quer seja este o último,

que agora desgasta o mar tirreno nos rochedos opostos.

Compenetra-te, decanta os vinhos e poda com breve espaço de tempo uma esperança longa. Enquanto falamos, terá fugido a invejosa idade. Colhe o dia, confiada o menos possível no de amanhã.”*

Por ora, o Largo do Capitão Maia Magalhães é a figura indigente, a quem outrora se contaram os segredos, em cujas roupas envelhecidas estão as lágrimas das mágoas e as das alegrias passadas. Derrubaram-lhe os filhos de madeira e deixaram-lhe um boneco no dorso para aliviar o sentimento de culpa pelo abandono a que o Capitão foi votado.

 

 

*(Horácio - Poesia Completa – Tradução de Frederico Lourenço, Quetzal Editores, 2023)

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