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As vidas de sacrifício dos pescadores da Ria que a paisagem e as caldeiradas ajudam a suportar

Património

 

Das trezentas e tal páginas que compõem Os Pescadores, Raúl Brandão não precisou de muitas para descrever os pescadores da Ria de Aveiro. Bastou-lhe embrenhar-se na Ria, embarcar com quem a sabia de cor e, por alguns dias, tornar-se um deles. Observou. Respirou. Anotou. E a prosa que resultou dessas vivências conseguiu elevar a aparente banalidade do quotidiano lagunar à condição de pintura, cântico e poesia.

Na Ria de Aveiro, movidos pela tradição familiar e pelo sentido de pertença a uma mesma comunidade, continua a haver rapazes que se fazem pescadores ainda antes de se fazerem homens. Foi isto que aconteceu a João Paulo Lopes, presidente da APARA – Associação de Pesca Artesanal da Região de Aveiro. À semelhança de Raúl Brandão, também João Paulo é filho e neto de pescadores e, por muito que, a princípio, até o tenha desejado, não pôde ignorar o apelo da faina na voz austera do progenitor. “Hoje, acho que foi o caminho certo, mas a verdade é que não tive outra alternativa a não ser tornar-me pescador”. Pesca desde que se lembra: aos 6 anos, já ia para a Ria com o pai, depois da escola; aos 11, começou a trabalhar sozinho para “uns espanhóis que precisavam de caranguejo” num dóri que o pai lhe cedera. “Eu era apenas uma criança, mas éramos seis filhos e ele sozinho a trabalhar para a casa. não se desperdiça a oportunidade de ajudar a entrar mais meia dúzia de escudos para fazer face às despesas da família”, aceita João Paulo Lopes.

No que à pesca diz respeito, é difícil comparar a conjuntura atual com aquela que Raúl Brandão experimentou, aquando da sua passagem por território aveirense, há 100 anos. Se, por um lado, a pesca está mais modernizada, por outro, há menos pescadores. Ainda assim, e apesar de a atividade piscatória já não ser a mais concorrida da região, a verdade é que continua a garantir o sustento a milhares de pessoas por toda a laguna. Só a APARA tem mais de quinhentas embarcações associadas – “Estamos a falar de centenas de famílias. Entre mil e duzentas e mil e trezentas pessoas ou talvez mais”, estima João Paulo Lopes. Isto, claro, sem esquecer a Vianapesca, uma cooperativa anterior à fundação da APARA, com sede em Viana do Castelo, à qual continuam associados algumas centenas de pescadores, principalmente, da zona Norte da Ria.

Em “As pescas em Portugal”, ensaio publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Álvaro Garrido atesta que, “na voragem do tempo presente, as pescas e os pescadores ora são objeto de invocações lendárias, ora se inscrevem numa atividade económica decadente, condenada ao declínio”. Para o investigador que, durante vários anos, assumiu as funções de diretor do Museu Marítimo de Ílhavo, “ambas as imagens são exageradas ou mesmo falsas”. A “questão das pescas” – como já é apelidada em vários fóruns de debate – tem motivado discussões complexas e apaixonadas que, por conjugarem estes atributos, se tornam particularmente difíceis de gerir.

De acordo com João Paulo Lopes, a contrariar os tais vaticínios de decadência, nos últimos anos, até têm aparecido alguns jovens a querer abraçar a profissão. Apesar de tudo, o presidente da APARA é o primeiro a admitir: “Não incentivaria um filho meu a seguir a vida de pescador. A pesca, para a juventude, não tem futuro”. No entender de João Paulo, a Ria tem vindo a alterar-se ao sabor dos interesses comerciais dominantes e, pouco a pouco, tende a transformar-se numa estância turística. “Os nossos governantes, ao contrário do que fazem com as atividades desportivas e de lazer, não estão interessados em apoiar a pesca nem em incentivar novas gerações de pescadores”, afirma, sem rodeios, confessando sentir que a “profissão é pouco valorizada”.

Pai de duas filhas, contudo, nunca teve de se deparar com o dilema de estas lhe quererem seguir as pisadas. Apesar de haver algumas mulheres a pescar na Ria, o setor continua a ser predominantemente masculino.

 

 

De todas as obras que Raúl Brandão deixou, Os Pescadores é, provavelmente, aquela que maior visibilidade pública trouxe ao autor, não só por ter sido o primeiro dos seus livros a ser editado pela Aillaund & Bertrand, mas também – dizem os entendidos – pelo facto de traduzir uma realidade palpável, que os leitores identificam e admiram. Tantos anos depois, ao ler algumas passagens d’Os Pescadores a pedido da Aveiro Mag, João Paulo Lopes consegue reconhecer-se naquele discurso. Quando Brandão enumera as espécies que, há 100 anos, habitavam a Ria, por exemplo, dá o mote perfeito para o pescador enunciar o que, nos dias de hoje, tem vindo à rede: “Hoje, a Ria dá, sobretudo, berbigão e amêijoa-macha. Na altura do choco, lá se apanham uns chocos; tainhas há muitas, mas não têm valor comercial; robalos ainda se vão encontrando, mas douradas são cada vez menos; e quem apanha meia dúzia de solhas ou linguados pode fazer uma festa. Este ano também foi fraco para a lampreia. A enguia, essa, é um mito”, resume, lembrando que, em criança, era comum apanhar enguias “em qualquer lado”. “Nas ilhas da Ria, por exemplo, a maré formava umas poças que vedávamos com lama para depois escoarmos. Quando a poça começava a ficar sem água, as enguias apareciam”. Também “junto ao atual cais do ferryboat, havia uma muralha e uma praia de areia com algumas pedras soltas. Eu era garotito, virava as pedras e as enguias estavam por baixo. Com uma redezita de ir às cabras (camarão-cabra), apanhavam-se uns bons baldes de enguias”.

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Ao falar, noutro excerto, das artes de pesca utilizadas àquela época, dá a dica essencial para João Paulo explicar que, hoje, “uma das poucas que vai perdurando é a arte de tresmalho, ainda que com qualidade superior e mais predadora”. “O tempo substituiu as antigas cortiças, que facilmente encharcavam e puxavam a rede para o fundo, por boias de plástico com maior capacidade de flutuação”. A sertela, por seu lado, foi uma das artes que se perdeu. “Há meia dúzia de anos, o Ti Conde ainda saía com um barquinho pequenino para pescar à sertela, mas ele já deixou a Ria”. Quanto à chincha, não se pode dizer que esteja extinta, mas hoje é mais utilizada para fins recreativos – “uma brincadeira de amigos” – do que propriamente para dela se tirar sustento.

 

 

A certa altura, Raúl Brandão observa que, “ levam ali dentro uma panela para a caldeirada, um cesto com batatas, uma esteira para dormir no toldo que armam à proa, e um saco de malha metido na água para a enguia e a tainha se conservarem vivas”. Mais à frente, completa a exposição com o parágrafo: “A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto. É dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado em tinta cinzenta do outro”.

Obviamente, João Paulo Lopes não tem idade para ter provado as iguarias que Raúl Brandão descreve, mas também ele recorda as caldeiradas que, antigamente, se confecionavam a bordo das embarcações e cujas lembranças do seu “cheirinho puro” ainda hoje lhe fazem crescer água na boca. “Não havia bateira que não tivesse uma panela e uma artimanha para o fogaréu. Em qualquer lado se juntavam duas ou três embarcações e se fazia uma caldeirada com o que tínhamos pescado naquele dia”, recorda o pescador, relatando comezainas memoráveis de peixe fresco saído da Ria para o tacho.

Hoje em dia, seja por altura das festas de São Paio, na Torreira, da Senhora dos Navegantes, no Forte da Barra – com a tradicional “procissão” de embarcações pela Ria – ou da Senhora da Saúde, na Costa Nova, ou mesmo por ocasião do Festival da Sardinha, organizado todos os anos pela APARA, oportunidades não faltam para os pescadores se reunirem, improvisarem uma mesa e partilharem uma refeição. “A maior parte dos pescadores gosta desses momentos de convívio. Na pesca há muitas rivalidades, mas à volta da mesma mesa isso esquece-se”.

Com vidas pautadas pela incerteza e pelo sacrifício, além desses festins de confraternização e camaradagem, os pescadores da região de Aveiro continuam a ter na paisagem da Ria, salgada pelo suor do seu trabalho, uma espécie de recompensa perversa. “Apesar de tudo, trabalhar num cenário destes é um privilégio”, reconhece João Paulo Lopes, dando nota das várias vezes que dá por si, sozinho, em plena laguna, com o imenso espelho de água iluminado pela luz da aurora ou do crepúsculo. Por breves instantes, a vastidão das águas e aquele brilho dourado são tesouros de um homem só, mas logo João Paulo, munido de um telemóvel com câmara fotográfica, trata de captar o momento, eternizando-os em imagens que costuma divulgar com a legenda: “Da janela do meu escritório”. “É maravilhoso, é qualquer coisa fora de série”, frisa, com um sorriso.

 

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