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Viagens na nossa terra: Uma viagem em câmara lenta

Roteiro

Há sempre uma primeira vez para tudo. Aconteceu-me há uns anos dispor de uma sala de cinema só para mim. Sentei-me onde quis e pude atirar-me sem pudores a um balde de pipocas como se o futuro da humanidade dependesse da velocidade e do barulho com que as mastigasse. Desta vez foi no comboio. Uma carruagem inteira completamente vazia à excepção de mim próprio. Algum dia tinha de ser.

Chego à estação de Aveiro às 9.30h com o objectivo de apanhar o comboio das 9.54h para Macinhata. Duas das oito linhas são dedicadas à Linha do Vouga. Numa delas, a 7, uma velha composição aguarda pelas 10.55h para partir rumo a Sernada, parecendo um menino com quem ninguém brinca no recreio da escola.

Naquela manhã de sábado de início de setembro pouca gente circula pela gare. Meia-dúzia de pessoas formam uma pequena fila diante das bilheteiras, outras fazem tempo no café da estação, um barbeiro ocupa-se de um cliente. A caminho da linha 8, passo por um cabeleireiro para mulheres que merece o prémio de melhor nome de sempre: Império das Majestosas. Até eu que não sou mulher nem majestosa e já me sobra pouco cabelo fico com vontade de me entregar aos seus cuidados.

Ao chegar à plataforma da linha 8, dez minutos antes da hora, quatro pessoas esperam pacientemente pela chegada do comboio. Um casal conversa descontraidamente sentado num banco, um adolescente não tira os olhos do telemóvel e uma mulher fuma acocorada encostada a uma parede. Às 9.49h entra na linha uma composição vinda de Sernada, despejando umas 30 pessoas em Aveiro.

Os passageiros que saem são substituídos por outros que entram, mas menos. Conto oito, nove comigo. A distribuição pelas duas carruagens é desigual – todos, menos eu, optam pela da frente. Tenho dezenas de bancos por minha conta e escolho um à janela, de frente para o caminho. A carruagem é confortável, com as cadeiras almofadadas, e limpa – apenas o exterior dos vidros parece precisar de alguma água.

Entre a chegada das 9.49h e a partida seguinte, cinco minutos mais tarde, a máquina é mantida a trabalhar. Sentado enquanto espero que a composição se ponha em movimento, sinto uma ligeira trepidação que me embala e faz estremecer os assentos, como se estivéssemos a ser brandamente sacudidos por um tremor de terra quase imperceptível.

O horário da largada é escrupulosamente cumprido e o par de carruagens põe-se a caminho. Passo por sítios familiares, como as escolas de Esgueira ou a Associação Industrial, que já cruzei tantas vezes de carro ou de bicicleta, mas a bordo do Vouguinha a perspectiva das coisas é outra.

A Linha do Vouga proporciona uma viagem em câmara lenta e a paisagem desfila pelas janelas com todo o vagar. Ao passar por Eirol a linha segue a par com a estrada e dois automóveis ultrapassam o comboio sem esforço. Mas uns metros à frente estão parados num semáforo, pelo que a composição volta a tomar a dianteira. Declaremos um empate.

Se outros comboios são silenciosos, este não é. Chia e range como gente grande. Quando acelera sente-se o esforço da máquina – se fosse um velho homem a correr e lhe medíssemos os batimentos cardíacos, era bem provável que ficássemos assustados.

Mas em que outro comboio é possível viajar com as janelas abertas? O operador ferroviário apenas tem um pedido a fazer, e logo em quatro línguas diferentes: não atirar objectos pela janela. A silhueta de uma garrafa cruzada por uma risca vermelha reforça o aviso.

Uma parte da viagem é feita por zonas rurais pelo meio de campos de cultivo e floresta. Mas também se atravessam áreas habitadas. A lentidão da marcha e a proximidade com as casas quase nos faz ver o que se passa no seu interior. No apeadeiro de Casal do Álvaro, onde paramos, três pessoas estão estacadas à entrada de uma casa a não mais de três metros de mim, quase criando uma intimidade entre desconhecidos. Por uns segundos, eu olho para elas e elas olham para mim - talvez seja isto que sintam os animais do jardim zoológico.

Atingimos Águeda às 10.28h e os companheiros de viagem que partiram comigo de Aveiro saem aqui. Na sua vez entram três passageiros, carregados com sacos de compras. Numa das paragens seguintes uma mulher entra na minha carruagem. Somos agora dois para 56 lugares, que eu contei um a um quando aquele vagão ainda era um reino só meu.

Num dos pontos do percurso, pouco antes da chegada a Macinhata, fico com a sensação que alguém vislumbra uma oportunidade de negócio com os clientes da Linha do Vouga. Numa tabuleta afixada nas traseiras de uma casa, que só os passageiros do comboio conseguem ver, lê-se “Vende. Próprio” com um número de telefone ao lado. Nunca se sabe se alguém de visita a Macinhata ou a Sernada não acaba a viagem como feliz proprietário de uma nova casa.

Para além destes classificados para passageiros, não falta o que observar para quem segue a bordo. Pela janela vejo quintais, hortas, campos de cultivo, uma quinta com cavalos e burros. Há outros pormenores que não escapam a quem for atento. O apeadeiro da Aguieira, por exemplo, fica na apropriadamente baptizada Rua do Caminho-de-Ferro. Isto interessa para alguma coisa? Talvez não, mas é como se tivesse tirado uma fotografia e a estivesse a exibir aos leitores.

Macinhata é a 16ª estação ou apeadeiro do trajecto a contar de Aveiro, embora o comboio não pare em todas elas. A explicação encontra-se no site da CP: “só efectua paragem quando houver passageiros para embarcar ou desembarcar, devendo neste caso prevenir antecipadamente o revisor”.

Macinhata é a estação terminal deste horário. A outras horas a composição avança mais uma estação, até Sernada. A partir daí a circulação ferroviária encontra-se interrompida, havendo um serviço alternativo de táxi até Oliveira de Azeméis, onde a parte funcional da Linha do Vouga é retomada até Espinho. O que significa que Albergaria-a-Velha, Urgeiras, Albergaria-a-Nova, Branca, Pinheiro da Bemposta, Figueiredo, Travanca e Ul não são actualmente servidos.

A viagem seguinte na direção de Aveiro tem início 21 minutos após as duas carruagens estacionarem em Macinhata, e é nessa que vou. Ocupo o tempo numa rápida deambulação junto à estação, onde um pólo do museu ferroviário tem as suas portas abertas. Passo por uma florista e por uma farmácia e deparo-me uns passos adiante com o Mini Mercado Colmeia, que, bem vistas as coisas, é bem mais do que um mini-mercado. Peço ao balcão um café e um bolo de arroz e vou lendo os vários avisos escritos à mão com que os donos informam os clientes de tudo o que eles podem fazer por nós. Para além de comprar mercearias, é possível comer tremoços e azeitonas, encomendar leitão e tirar fotocópias. Mas não se pode fumar, como avisa um letreiro da Chupa Chups onde se lê: “proibido fumar, permitido chupar”. Como e bebo na companhia de duas mulheres que estão sentadas a falar e na esplanada um homem lê o jornal aproveitando o ameno sol da manhã.

De regresso à estação, vou reparando em vários cartazes afixados em paredes ou montras onde se anunciam vários acontecimentos que são uma riqueza do nosso querido Portugal: uma concentração de motos e motorizadas “com especial destaque para fabricadas em Águeda”, organizada pelos Descarrilados – Amigos Das Duas Rodas Com Motor; a exibição do filme “O rato que ruge” no Clube Macinhatense; o Festival Peixe do Rio promovido pela Associação Desportiva e Cultural de Jafafe; a Festa em Honra de São Geraldo, em Silveira. Aparentemente não falta o que fazer por estes lados.

Antes de voltar a subir a bordo penso em como esperava encontrar as automotoras com as suas superfícies exteriores totalmente cobertas com grafitis mas a verdade é que estão quase imaculadas, tirando uma ou outra mancha colorida. Desta vez partilho a carruagem com um homem de meia idade de mochila às costas que carrega uma bicicleta para bordo. Às 11.11h a máquina põe-se novamente em movimento e o revisor no seu fato cinzento não tarda em vir conferir os bilhetes – reparo ao longo do trajecto que todos os bilhetes são comprados ao próprio funcionário; eu, que os adquiri online, sou a excepção.

Como o dia foi aquecendo há várias janelas abertas, em que a secção superior desliza até à metade de baixo ao destravar-se uma tranca metálica. Com o nariz de fora cheiro o fumo que a automotora a diesel vai libertando. Apesar do andamento lento, Águeda está já ao virar da curva – chegamos às 11.30h e saio. Em contrapartida, muita gente entra.

Águeda gosta de se assumir como uma cidade colorida e quem chega pela estação encontra provas disso mal põe os pés fora do comboio. As travessas de madeira onde assentam os carris estão pintadas de várias cores e as paredes da gare estão também elas ornamentadas. O largo fronteiro está em obras e bem precisa porque a estação é bonita e merece uma envolvente a condizer.

Tenho viagem marcada para Aveiro às 13.55h pelo que disponho de mais de um par de horas para passear por Águeda. Vêem-se muitas pessoas despreocupadas nas esplanadas e a baixa da cidade, junto ao rio, está bem composta de gente. Passeio calmamente pelas ruas do centro e almoço sem pressa. Ao subir para a zona da estação, um pequeno espaço comercial é agora ocupado por dispensadores automáticos, que a troco de algumas moedas fornecem comida ou bebida. Mas não só. Também há preservativos e testes de gravidez no catálogo. Se alguma vez quiser comprar algum destes produtos de forma anónima, já sei onde ir.

Decido ocupar o tempo que me sobra na própria estação. A pequena sala de espera já viu melhores dias: há alguma sujidade no chão, um dos bancos tem as tábuas soltas e o mostrador electrónico das partidas tem o ecrã rachado e está fora de serviço. As paredes cheias de rabiscos também conferem ao espaço um ar de desmazelo.

À medida que se aproxima a hora da partida vão-se acumulando passageiros na plataforma. É feio ouvir conversas alheias mas escuto uma mulher a falar da vida ao telemóvel, com um tom algo azedo. “Não dizes que ela tem sempre razão? É sempre a mesma conversa”. Há quem fume, há quem olhe para o telemóvel, há quem brinque com uma filha pequena. Cerca de 20 pessoas entram e o comboio parte à tabela, não sem antes outro comboio, vindo do litoral, deixar várias pessoas em Águeda. Alguns outros clientes da CP vão entrando: uma mulher em Travassô, uma família de quatro em Eirol, outro casal com dois filhos em São João de Loure e mais uns quantos. Um passageiro transporta um malão que graças aos seus pequenos rodízios desliza até junto da senhora de Travassô. “Não estroba”, diz a sorrir.

Em Eirol o comboio imobiliza-se por vários minutos sem eu perceber porquê, até que vejo o Comboio Histórico do Vouga fazer a sua entrada triunfal e parar na linha do lado, proveniente de Aveiro. Pelo que dá para perceber do interior do meu comboio para o interior do comboio vizinho, as composições levam a bordo muitos entusiastas dos caminhos-de-ferro.

Esta paragem acaba por atrasar em alguns minutos a chegada ao destino final. Ao seu ritmo pachorrento, o Vouguinha dá entrada na estação de Aveiro às 14.42h. A viagem, na qual gastei 6,85 euros, chega ao seu fim.

Talvez o tom jocoso usado em algumas partes do texto dê uma ideia errada, mas esta é uma declaração de amor aos comboios e à Linha do Vouga. Nos últimos anos este serviço centenário tem vivido à beira do precipício e debateu-se mesmo com a ameaça de encerramento. O espectro desse trágico desfecho parece afastado e os decisores políticos mostram-se agora empenhados na modernização do serviço. Da maneira como eu vejo as coisas não podia ser de outra maneira. O Vouguinha é um património histórico valioso e tem todas as condições para desempenhar um papel relevante no sistema de transportes da região. Não se move com grande destreza e não tem os luxos de outros comboios – mas é, à sua maneira, uma coisa maravilhosa.

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