
Talvez sim, o teatro na Rua das Tomásias
Virgílio António Nogueira
Talvez sim, na rua estreita, apertada, nela mal cabendo um automóvel. As casas próximas umas das outras, alguns telhados contíguos, as lareiras a respirar pelas chaminés. O hálito exalado dos tachos da cozinha a esgueirar-se dos domicílios pelas janelas entreabertas.
Talvez sim, a rua semeada de pedras que enrijeceram com o peso dos transeuntes e se poliram com as solas dos sapatos dos caminhantes. O arruamento que seria, com menos meia dúzia de centímetros de largura, a viela da senhora velhinha que estava à porta com a ternura da longevidade a assomar aos olhos quase cegos. A idosa resignada à sua única vida, sem invejar as sete vidas do gato. O felino que ela, na soleira, aguardava que regressasse a casa, repetindo a espera que fazia ao marido, que a doença levou.
Talvez sim, entre as paredes tão justas, parecendo duas margens do ribeiro que o calor do verão quase secou, o sol cabia em todo o esplendor astronómico e deixava ali, a dormitar durante o dia, a luz leve que banha o bairro da Beira-Mar. A luminosidade que areia o corpo com o desvelo de quem limpa as pratas que ficaram do passado e constituem memórias de familiares, de pessoas estimadas e de acontecimentos felizes, que não se querem corroídas pela oxidação que a passagem do tempo traz e lhes deixa as marcas do luto.
Talvez sim, a Rua das Tomásias desenhava-se aos miúdos como traço encantatório no mapa afetivo da cidade. O chão empedrado surgia igual ao dos caminhos em que marchavam os militares romanos que eles viam nos filmes da televisão ou no cinema. A imaginação infantil fazia-os acreditar que o solo lhes outorgava o poder das pedras mágicas e assim se transformavam em soldados da legião. Eram os conquistadores que participavam na ampliação do império vindo do Tibre e que chegava ali ao Canal de São Roque, o coliseu local cujas feras exibidas seriam, se tanto, os caranguejos. A moçada tinha a pueril simpatia por aquele carreiro urbano aconchegado e tímido, como se pode gostar do dedo mindinho da mão ou do cachorro mais frágil e acanhado da ninhada.
Talvez sim, porque descendo a Rua D. Jorge de Lencastre (vindo do Largo da Apresentação) e depois de se passar a Rua Antónia Rodrigues, viram-se as asas para esquerda e é em voo, porque se anseia chegar depressa, que se sobem as bancadas de madeira que foram erguidas dentro da casa em que habita gente disfarçada, muito divertida, que entretém os catraios e os faz rir. Alguém se lembrará da antiga entrada para o bolso do CETA?
Talvez sim, haveria espanto e ironia na contradição entre a proporção de universo da ruela e do teatrinho de algibeira e os mundos, os países, as cidades e as aldeias que os atores e as atrizes traziam ao palco sito nas Tomásias. Figuravam gente de outras partes, de tradições longínquas, de gostos e ambições diferentes, mas que choravam ou riam por motivos nada diferentes dos que assistiam às peças em cena. Às histórias alegres sucediam outras menos felizes, os enredos desenrolavam o fio dos novelos que as mães tricotavam: a ambição dos casais jovens consumarem o amor, a justiça feita para honrar os difamados; os mais velhotes a ressarcirem-se dos erros com a bonomia possível, transformando a experiência dos equívocos cometidos em exemplo, para que os vindouros saibam reagir sem a raiva assassina ou dispensando atirar com palavras que podem ter efeito letal na consciência do agressor ou dos agredidos.
Talvez sim, todas essas crianças e púberes continuem ali sentados, nos bancos do CETA, e o Godot, o prometido de Beckett, que nunca mais vem! Tantos anos à espera e o raio do homem não aparece. Virá na barca gilista do inferno? Ter-se-á perdido na longa marcha para o esquecimento? Ficou a lutar na revolução de Brecht, terá preferido um aposento na Roménia em que pudesse escutar a cantora careca, ou andará a perseguir os fantasmas shakespearianos, ou ainda, esse maroto do Godot, se deixou fascinar por uma mulher nórdica à procura de uma cura para as dúvidas vitais, que Strindberg lhe apresentara?
Talvez sim, o teatro da Rua das Tomásias, abrigado no edifício simples e quase clandestino, constituía o ponto de encontro com a história trágica e servia de berço de tragédias afiliadas das da Grécia antiga. Ou era o recanto de comédias e do absurdo que transformam a existência humana no esforço ridículo dos avarentos ou na labuta inglória para os que foram atraiçoados pela demência quando finalmente dispunham de tempo para colocar a cana à pesca e banquetear os cabelos na refeição soprada pelo vento na orla da ria.
Ainda batem as três pancadas no interior do imóvel e ressoam na cabeça dos nostálgicos dessas horas teatrais provindas da infância e da adolescência. Com as batidas no chão, Molière avisava a abertura do pano e solicitava o silêncio à plateia, condição para que o público se pudesse alienar, para se perder no tempo, aceitar a realidade fingida como se fora verdadeira, e para sorrir, chorar, temer ou assustar.
Talvez, sim. Talvez gostem do logro, do ludíbrio, e esse prazer do engano comece na tenra idade, com a bondade da menina do capuchinho vermelho e a perfídia do lobo mau; convém colocar o adjetivo para proteger da malícia humana os lobos.
Talvez sim, talvez tenha sido o ímpeto de uma leitora do jornal O Litoral que impulsionou os então rapazes Arlindo Silva, Artur Fino, Jaime Borges, Jeremias Bandarra, José Júlio Fino e Rui Lebre a avançarem para a fundação do Círculo Experimental de Teatro de Aveiro – CETA. A comunidade deve ao Litoral a homenagem que provavelmente nunca se lhe fará, por ter sido o hub (anglicismo da moda), o polo cultural que originou a coletividade teatral, mas por tantas mais e boas razões. Os fundadores do CETA justificam largo aplauso. Se Aveiro conheceu, desde 1959, os grandes dramaturgos portugueses e estrangeiros e, claro, as suas peças, tal possibilidade decorreu do conhecimento que os criadores do Círculo Experimental tinham da produção teatral nacional e mundial. Essa oportunidade de testemunhar as mais prestigiadas dramaturgias precisou de trabalho e de meios para a encenação e a produção teatrais, necessitou da capacidade e da coragem destes homens. Durante todos os anos até 1974, até à revolução de 25 de abril, lutaram pela liberdade de expressão, bateram-se pelos direitos humanos e pela democracia, afrontando o regime e o lápis azul da censura. Sim, sem talvez, merecem estes aveirenses a distinção do Burgo, e que venha ela antes de Godot.
Talvez sim, agora que se aproxima o Dia Mundial do Teatro, 27 de março, seja redobradamente importante celebrar-se a efeméride da arte que nos fala ao ouvido e nos olha nos olhos. A montante, desse espaço e tempo em que os atores e os espetadores partilham a mensagem no mesmo espaço físico, o dramaturgo verteu no papel as emoções, escreveu a peça, os diálogos do texto nasceram da conversa com o alter-ego. Passou para as personagens a vida, como se lhes transferisse o sangue que ativa o organismo. Cada peça de teatro mantem alumiada a jornada vivida ou sonhada. Exprimiu o escritor, também, o manifesto subversivo, ou caricaturou a realidade e zombou dos patifes que achou por aí. Pode dizer-se, de igual modo, que o improviso também faz cenas. Certo!
Talvez sim, para não dizer seguramente, a imaginação do encenador passa a licença de habitação às palavras, dá-lhes uma cadeira em que se possam sentar, traz a mesa e os alimentos para que as personagens se reconfortem. Cria cenários para envolver o espetador na trama. Coordena os passos de dança, sejam vulgares ou exijam destreza. Usa a geografia afetiva para dispor os atores e as atrizes no local exato do palco, nos poucos metros quadros disponíveis. Ajuda a definir o som e o silêncio na sala, adormece ou acorda o cenário, com mais ou menos luz. Agradecem o sonoplasta e o técnico de luzes a tutoria cénica, do resto tratam eles e com aptidão para reproduzir o trovão e o relâmpago pela perícia no exercício das táticas estudadas e das tecnologias que estão ao serviço.
Talvez sim, talvez a memória tenha sido verdadeira, talvez aqui ou ali bêbeda, possuída pelo vinho que sobrou na garrafa da juventude. Mas, se é plausível, a que transformou o passado para dele colher a melhor sementeira, haverá juiz a tolerá-la, quiçá a absolvê-la. Mais do que sujeitar-se a lembrança da rua ao polígrafo, este preito ao teatro, na rua a que ele nos levou, interessará para realçar o contributo que esta forma artística aporta à humanidade: entretenimento, pedagogia, sociabilidade, ética, estética, entre tantos outros. Prática ancestral e global o teatro é uma das mais belas criações humanas, um fenómeno de cultura que continua a entusiasmar os que o amam. Seja na Broadway, seja na Rua das Tomásias.