Depois de um inventário das mais pitorescas “Alcunhas d’Aveiro” (2020) e de um roteiro pela memória das mais tradicionais “Tabernas d’Aveiro” (2021), eis um novo livro sobre a alma aveirense - um compêndio de alguns dos mais conceituados “Artistas d’Aveiro”. Apresentada ao público no passado dia 23 de setembro, esta coleção de mais de uma centena de personalidades aveirenses que, através das suas obras, têm ajudado a elevar o nome da cidade e da região, é fruto da “inspiração” de Armando Regala – cartoonista aveirense que ilustrara as obras anteriores - e da “transpiração” de Manuel Pacheco, que tratou de estabelecer os contactos e de recolher os depoimentos necessários à concretização deste projeto.
“Não foi fácil”, admite Manuel, a propósito do processo de produção desta obra. Uns “fizeram-se de mortos”, outros “prometeram e falharam” e até houve quem, não compreendo o propósito deste empreendimento, lhe exigisse contrapartidas financeiras. Foi “uma empreitada complexa e morosa”, que só a inabalável persistência de quem “corre por gosto” conseguiu contrariar. Ainda assim, Manuel Pacheco sente-se um privilegiado. O trabalho trouxe-lhe a oportunidade de conhecer “espólios imensos”, de visitar “casas que são autênticos museus” e de constatar a “generosidade” das famílias de alguns artistas já desaparecidos que se mobilizaram para participar do projeto. Uma coisa parece certa: não fosse a sua insistência, mais tarde ou mais cedo, algumas das “histórias mais inspiradoras” que Manuel conseguiu reunir neste livro, ter-se-iam perdido nas orlas do tempo. Só por isto, já valeu o esforço.
Manuel Pacheco nasceu na rua António Rodrigues, no coração do bairro da Beira-Mar, em Aveiro. É cagaréu de corpo e alma, por dentro e por fora, dos pés à cabeça. Aos 73 anos, não lhe faltam recordações daquele labirinto de ruas e vielas onde cada recanto esconde um tesouro por desvendar e cada umbreira a promessa de uma história por contar. Ainda se lembra da primeira vez que, às escondidas da mãe e dos avós – o pai falecera, vítima de tuberculose, quando Manuel tinha apenas 5 anos -, se juntou a uma arruada de São Gonçalinho e foi, pela primeira vez sozinho, ao Rossio. “A agitação era enorme, pessoas de um lado para o outro, foguetes a bater nos telhados...”. Afoita, mas desacautelada, a escapadela valer-lhe-ia uma reprimenda ao voltar a casa. Mas nenhuma palmada poderia desvanecer a marca de libertação, independência e conquista que aquele pequeno passeio lhe deixara. É em momentos como este que uma criança cresce verdadeiramente.
À medida que a adolescência ia tomando o lugar da infância, também Manuel ia conquistando novos espaços e habilidades. “Jogávamos à bola no areal da antiga lota e começávamos a aprender a nadar junto à Ponte de Carcavelos. O grande desafio, que incitava os mais crescidos e deslumbrava os mais novos, era ir saltar à ponte de São João”, conta.
A guerra ultramarina afastou-o de Aveiro durante três longos anos. Na correspondência que, a partir de Angola, fazia chegar à família e amigos, lembra-se de ter partilhado mais do que uma vez a “saudade do cheiro a maresia”, o inebriante perfume da água, do sal e do lodo que, por cá, tomamos como garantido, mas que a distância transforma em fragrância quase-divina.
Manuel Pacheco estudou no Instituto Comercial e formou-se em Contabilidade e Administração no ISCA. Nunca ponderou abandonar Aveiro. Muito por causa da sua mãe, D. Maria da Conceição, é certo, mas também por este amor inexplicável que sente pela terra que o viu nascer. E quem diz terra, diz, obrigatoriamente, as pessoas. “O melhor de Aveiro são os aveirenses”, atesta. É, aliás, por eles e para eles que, uma vez mais, se propôs a um projeto editorial de preservação da alma e da memória.
Em entrevista à Aveiro Mag, Manuel Pacheco explica que este “Artistas d’Aveiro” é “independente de qualquer organização ou coletividade cultural ou artística”, com vista a “evitar tentativas de interferência ou pressão”. A seleção dos artistas a incluir “assentou nas nossas memórias pessoais – minhas e do Armando - e é fruto das nossas vivências e estímulos”, sublinhando que este não é, nem ambiciona ser, um trabalho completo. Desde os artistas com maior projeção pública, àqueles que são menos conhecidos, “haverá sempre alguém em falta”. É, contudo, indesmentível que esta obra vem estabelecer um novo ponto de partida “incontornável para estudiosos e curiosos”. Quem o referiu, aliás, foi Alberto Souto, antigo presidente da câmara de Aveiro, perante as largas dezenas (centenas, porventura) de pessoas que se juntaram na Praça do Peixe no passado dia 23 de setembro para a primeira apresentação desta obra. “É um legado que deixamos à nossa cidade. A nossa contribuição para a preservação do património imaterial”, diz Manuel Pacheco.
À semelhança das anteriores publicações - a receita proveniente das vendas do primeiro livro reverteu a favor do Centro de Alcoólicos e Recuperados do Distrito de Aveiro (CARDA) e do Estabelecimento Prisional de Aveiro; as do segundo, por sua vez, foram oferecidas à congregação “Criaditas dos Pobres” e aos Bombeiros Novos de Aveiro -, também a obra “Artistas d’Aveiro” tem um fim solidário. Desta vez, a verba angariada terá como destino o Clube dos Galitos onde, em tempos, o autor foi atleta. “Passei pela natação e pelo basquetebol”, partilha, recordando “tempos fantásticos de liberdade, convívio e aprendizagem”. Em 1964, Manuel Pacheco foi campeão regional de natação na prova de estafeta de 4 x 100 metros livres e, três anos depois, sagrou-se campeão nacional de basquetebol (juvenis). “A primeira vez que eu comi um iogurte ou provei um cachorro-quente foi numa prova de natação, tal como uma das primeiras vezes que fui a Lisboa foi para nadar nas piscinas do Nacional , em São Bento”, elenca. “Todos os que tiveram a oportunidade de representar o Galitos têm memórias extraordinárias dos momentos que viveram no clube”, assegura, explicando que esta contribuição não é mais do que uma “tentativa de devolver ao clube” aquilo que o clube lhe deu.