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Os Invisíveis II: “Ora bem, sonhar...sonho”

Sociedade

Os jornalistas pressentem o estado de espírito de quem está à sua frente pela maneira como respondem às suas perguntas. Muitas das respostas de António, nome fictício, foram monossílabos ou frases curtas. Não foi fácil ganhar-lhe alguma confiança. Este homem vive na rua e defende-se suspeitando de quem se aproxima.

Chego a uma zona da cidade que é uma micro comunidade de desvalidos, com tendas e roulottes velhas. Através de uma janela, interpelo uma mulher no interior de uma roulotte. Conta que durante anos viveu junto à Ponte de São João, debaixo do viaduto da A25, antes de se mudar para ali.

A uns 20 metros está armada uma tenda isolada. António está deitado no interior, de tronco nu. Sai para conversar comigo. Muda de posição várias vezes por causa das dores nas costas – fala comigo em pé, de cócoras, sentado. A sua história prova como é ténue a linha entre a terra firme e o abismo.

 

Que idade tem?
59 anos, quase a fazer 60.
 
Nasceu aqui em Aveiro?
Nasci.
 
Onde?
Na Vera Cruz, na antiga casa de saúde, que já não existe.
 
Sempre viveu cá?
Não. Vivi uma parte do tempo em Aradas e uma parte do tempo em Esgueira. Entretanto a minha companheira faleceu, fiquei sem casa e tive de me arrumar.
 
Mas antes disso. Teve uma infância normal?
Foi normalíssima.
 
Brincava na rua, essas coisas…
Tudo.
 
O que é que os seus pais faziam?
A minha mãe trabalhava para a antiga Direcção-Geral dos Desportos, que hoje é o INDESP. Está reformada. O meu pai já faleceu há uns anos.
 
Trabalhava?
Trabalhava. Era motorista de transportes públicos.
 
O senhor tem irmãos?
Tenho. Mas não têm capacidade de me ajudar.
 
Mas sabem que está nesta situação?
Sabem. Mas não têm capacidade.
 
E tem filhos?
Tenho dois.
 
E sabem que está assim?
Não.
 
Se calhar já não tem contacto com eles…
Há algum tempo.
 
O senhor fez a escola?
Fiz até ao sétimo ano, na Escola José Estêvão, lá em cima, no Bairro do Liceu.
 
Era bom aluno?
Não. Era um aluno mediano.
 
E não prosseguiu os estudos…
Não fiz mais porque senti necessidade de ir trabalhar, e deixei. Entretanto tentei o Qualifica, há cerca de dois anos, mas estava-me a sentir um bocado aborrecido com aquilo e acabei por desistir.
 
[O Programa Qualifica é, segundo a sua própria descrição, “um programa dirigido aos adultos com percursos de educação e formação incompletos e tem por objetivo melhorar os níveis de qualificação dos adultos, contribuindo para a progressão da qualificação da população e a melhoria da empregabilidade dos indivíduos”]
 
Quando saiu da escola foi trabalhar?
Isso. Fui trabalhar para uma farmácia.
 
O que fazia?
Era ajudante técnico de farmácia. Entretanto resolvi mudar de farmácia. Passei para Águeda e lá ganhava muito bom dinheiro. Mas fazia muitas muitas horas. Até que desisti e fui para os Estados Unidos.
 
Que idade tinha?
Nem sei. Isto já foi há muitos anos. Voltei há uns oito anos. Ora bem: em 2007 deu-se o crash lá e depois o trabalho começou a escassear e eu resolvi vir. Asneira a minha. Aqui estava pior.
 
[A crise financeira de 2007 e 2008 teve impacto a nível global]
 
Lá nos EUA o que é que fazia?
Carpintaria.
 
Em que cidade?
Nova Iorque.
 
Foi uma empresa que o empregou?
Passei por umas quatro. Sempre na área da carpintaria.
 
E gostava de lá estar?
Sim sim sim. Se o trabalho não estivesse a escassear… Porque depois aquilo começou a ser mais ou menos como isto: um dia trabalhava o senhor, um dia trabalhava eu, um dia trabalhava o senhor, um dia trabalhava eu.
 
Não havia trabalho para todos…
Não.  E então eles optaram por fazer assim. Para não estarem a despedir, resolveram fazer isso. Teve de se aceitar.
 
Era bem pago?
Cheguei a ganhar excelente dinheiro. Excelente dinheiro.
 
Onde vivia? Num apartamento?
Vivia em Yonkers, uma cidade grande, numa casa arrendada.
 
[Yonkers é uma cidade localizada no estado de Nova Iorque. Tem perto de 210 mil habitantes, sendo a terceira cidade mais populosa do estado]
 
Vivia sozinho?
Sozinho. Depois arranjei a primeira mulher, que era americana. Ajudou-me a tratar dos papéis para me legalizar e entretanto resolvemos comprar uma casa. Deu borrasca. Não correu bem. Pagámos um preço muito alto. Até que resolvi vir embora de vez.
 
Teve filhos na América?
Não não. Nada. Tive esse cuidado. Já cá tinha dois.
 
Quando foi para a América já tinha cá dois filhos?
Isso mesmo.
 
Quando regressou a Portugal veio fazer o quê?
Olhe, basicamente nada.
 
Não arranjou nada?
Nada.
 
Procurou emprego?
Procurei. Assim como continuo à procura, embora não esteja em condições de trabalhar. Agora só dia 13 é que tenho uma consulta… A ver se consigo a pré-reforma.
 
Quais são os seus rendimentos agora?
O RSI.
 
[O Rendimento Social de Inserção é um apoio destinado a proteger as pessoas que se encontrem em situação de pobreza extrema]
 
Umas migalhas…
237 euros. Não dá para nada.
 
Não consegue arranjar um quarto com esse dinheiro?
Não não. Estão a pedir 400 euros ou assim. Não me vou hipotecar.
 
Tem instituições que o ajudem?
Tenho. Estou a ser acompanhado pela Cáritas.
 
Há quanto tempo está aqui, a viver na tenda?
Há uns meses.
 
Antes de estar neste sítio já vivia na rua?
Não. A minha companheira faleceu, entretanto fui para o CESDA, no Paço. Têm lá instalações para pessoas sem casa. Estive lá um ano.
 
E depois?
Depois vim para a rua.
 
Porquê?
Porque acabou-se o prazo.
 
E veio para aqui?
Ainda estive uns meses em casa de uma pessoa amiga, fez-me um preço simbólico, e depois é que vim para aqui.
 
Como é viver nestas condições?
Não é bom.
 
Nem consigo imaginar…
Como é que hei de dizer… Ainda não experimentei o inverno. Mas o verão é quente. O inverno vamos lá ver como corre.
 
O frio, a chuva…
Pois. Com o frio, com a chuva…
 
Como faz para tomar banho?
Para tomar banho tenho sítio. Lá em cima no bairro de Santiago…
 
No balneário das Florinhas do Vouga…
Sim. Ou vou a casa do meu irmão.
 
E para comer?
Para comer também tenho lá em cima a cozinha social ou o meu irmão.
 
Nunca se imaginou nesta situação…
Nunca. Nunca. Jamais.
 
Teve uma vida muito normal, como as outras pessoas todas…
Ora bem. Tive uma vida regular. Mas pronto, tenho de me habituar.
 
O que é mais difícil de estar nesta situação?
O mais difícil… Para já estou isolado. Depois é o facto da doença que eu tenho. Eu para me movimentar vejo-me atrapalhado. Tenho problemas de coluna. Não sei como é que isto aconteceu. Francamente não sei.
 
Tem acompanhamento médico?
Tenho. Tenho uma consulta no dia 13 de setembro. Antes ainda tenho uma consulta no hospital, porque estive lá hospitalizado cinco dias e meio. E agora vou embora um mês.
 
Vai embora para onde?
Para o hospital. Vou ficar internado. Já me chamaram.
 
Fora isso, estar isolado é o mais complicado…
É. O isolamento, estar aqui sozinho.
 
Mas há outras pessoas a viver aqui, não há? Em roulottes, em tendas…
Sim. Há uma senhora na roulotte, ali à frente creio que há outra…
 
E não havia mais tendas?
Havia. Mas a Cáritas arranjou-lhes lugar. Aliás a Cáritas já me chamou, eu é que não quero. Enquanto puder estar aqui estou. Quando chegar o Inverno talvez me vá embora.
 
Chamaram-no para um quarto?
Sim.
 
E não prefere um quarto do que estar numa tenda?
Para já não. Porque eles têm horários muito rigorosos… E pronto, enquanto puder vou estando por aqui, quando não puder, quando começar a ficar frio e tal, vou falar com a doutora a ver se ela me arranja um espaço.
 
Quem é que morava aqui ao seu lado?
Eram outros dois. Aliás, eram três.
 
E dava-se bem com eles?
Um bebia muito, outro pedia dinheiro a toda a gente, nunca pagou, nem a mim… O outro, muito francamente não tenho nada a dizer dele.
 
Como é que passa os seus dias?
Olhe, de manhã andei ocupado. Fui ao banco, levantar dinheiro, fazer os pagamentos à Segurança Social.
 
Tem dinheiro no banco?
Tinha. Levantei-o todo. Tinha 210 euros. Cada vez que faço um levantamento são seis euros, é muito dinheiro. Mas teve de ser, tinha de ir à Segurança Social, tinha de pagar uma outra dívida. Teve de ser.
 
Tem de gerir o dinheiro ao cêntimo…
Tem de ser muito bem esticadinho, até porque tenho muita medicação a tomar. E isso tem custos.
 
Quanto gasta em remédios por mês?
54 euros e qualquer coisa.
 
E como ocupa mais os seus dias?
Há sempre um giro… Vou até Esgueira, onde tenho mais gente amiga, porque morei lá oito anos. Vou almoçar a casa do meu irmão e tomar lá banho. E assim passo o dia. Quando o sol se põe, há que dormir. Durmo cedo e acordo cedo. Seis, seis e meia da manhã já estou acordado. E saio logo.
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Sonha com alguma coisa diferente para si?

Ora bem: sonhar sonho, mas ainda não se concretizou nada.

 

O que gostava que lhe acontecesse?

No mínimo um quarto, uma coisa decente, porta fechada… Mas com um preço acessível. Para mim era quanto bastava. Depois com o tempo resolvia as coisas.

 

E gostava de voltar a trabalhar?

Não sei. Não sei se vou voltar a conseguir. Não sei por causa disto que eu tenho.

 

Gostava de retomar o contacto com os seus filhos?

É quase impossível. Um é muito dedicado à família. O outro já não falamos há muitos muitos anos.

 

Sabe se tem netos?

Tenho. Sei. Tenho um de cada um.

 

Deve ser duro…

De facto é. Mas pronto, paciência. É o que está.


Acredita que vai conseguir sair desta situação?

Com a ajuda deles, da Cáritas, sou capaz de conseguir.

 

É um homem de fé?

Sou, bastante.

 

Sente que Deus o abandonou?

Não sei. Pelo menos anda esquecido. Mas todos os dias vou à igreja, ali a Esgueira.

 

Vai rezar?

Vou lá fazer os meus pedidos, pedir perdão…

 

Fez coisas más na vida? Todos fazemos…

Todos fazemos. Mas peço perdão por isso.

 

Há alguma coisa que faria diferente, se pudesse?

Aquilo que pretendo é ter um local para viver. Depois tudo se arranja.

 

E hoje, como vai ser o resto do seu dia?

Olhe, tenho muito que fazer durante a tarde. Aí até às 8 horas da noite tenho que fazer. Mas sinto-me cansado. Sinto-me bastante cansado.

 

Cansado fisicamente ou cansado da vida que tem agora?

Das dores, disto tudo…

 

Onde arranjou a tenda?

Deram-ma. Até me deram aquela verde também [aponta para uma tenda da qual já não restam senão uns farrapos].

 

É pequenina, não é?

Vai servindo.

 

Não tem medo de estar aqui sozinho à noite…

Não. Tenho ali a vizinha, se acontecer alguma coisa…

 

Passa fome?

Não. Nunca passei.

 

Onde é que vai jantar hoje?

Tenho aí já.

 

O que é que vai comer?

Vou comer um empadão de carne.

 

Arranjaram-lhe?

Comprei.

 

Tem saudades da vida que levava dantes?

Obviamente.

 

Fazia aquilo que as pessoas fazem… Ir ao cinema, essas coisas?

Isso não, raramente. Entretia-me com o computador. Televisão muito pouco, ou nada. Nos tempos livres…

 

Sempre foi um homem de trabalho?

Sempre fiz qualquer coisa. Ultimamente estava numa formação, no centro de emprego, de padaria e pastelaria. Mas não acabei por causa do número de faltas que tive da primeira vez que estive no hospital. Já não me aceitaram mais.

 

Gostava de ter concluído o curso?

Gostava. Era uma situação em que dá bastante saída. Mas cheguei lá e não me aceitaram.

 

Olhe, que tudo lhe corra bem… Que as coisas melhorem para si…

Obrigado. Vamos lá ver. Eu tenho esperança.

 

As dores nas costas atormentam-no. António cambaleia até à tenda e deita-se, como quando o encontrei uma hora antes. Com um olhar furtivo reparo que no interior se acumulam roupa e peças de fruta. O tecido da tenda não é mais do que uma fina membrana translúcida que pouco filtra a luz da rua. Em dois metros quadrados cabem o quarto, a sala e a cozinha de António. É esta a sua casa. Pergunto-lhe se aceita uma maçã que tenho no carro. Diz que sim. Vou buscá-la e entrego-lha. Porque fiz isto? Por altruísmo? Para aliviar a consciência? Para me sentir bem comigo próprio? Não tenho a certeza. Sei que uma maçã para António é muito mais do que uma maçã para mim.

No nº3 de Os Invisíveis, converso com uma mulher que é quase a última habitante de uma aldeia perdida na serra.

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