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Teatro Griot traz "O Riso dos Necrófagos" à Casa da Cultura de Ílhavo

Artes

A 3 de fevereiro de 1953, em Batepá, freguesia da Trindade, em São Tomé e Príncipe, uma revolta de trabalhadores nativos contra a exploração dos colonos portugueses nas roças do cacau e do café culminou num sangrento massacre ordenado por Carlos Gorgulho, à época, governador-geral daquele arquipélago.Foi este brutal episódio de violência – que ficaria para História como Massacre de Batepá ou Guerra da Trindade – que esteve na origem do espetáculo “O Riso dos Necrófagos” que a companhia Teatro Griot traz ao palco da Casa da Cultura de Ílhavo no próximo sábado, dia 15 de abril.

Zia Soares, responsável pela direção e encenação, não devia ter mais de 10 ou 11 anos quando ouviu falar do Massacre de Batepá pela primeira vez. “Tinha dois colegas que eram são-tomenses, que tinham ouvido falar deste acontecimento em casa e que o partilharam com a escola. Lembro-me de ter ficado espantada”, recorda, em entrevista à Aveiro Mag. A verdade é que a narração daquele acontecimento haveria de a acompanhar ao longo dos anos, reavivando-se quando a atriz e encenadora integrou o Teatro Griot. “Ao pensar a programação da companhia volto a este acontecimento, começo a investigá-lo e resolvo fazer uma residência artística em São Tomé para perceber, no lugar, os fragmentos e resquícios daquele episódio que permanecem na memória dos são-tomenses”, explica Zia Soares. “É a partir dessa residência (realizada em conjunto com o músico Xullaji) que começam a aparecer as primeiras possibilidades de criar um objeto artístico”.

Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram no Massacre de Batepá, mas há relatos que dão conta de mais de um milhar de vítimas. Os mortos foram amontoados em valas comuns, no fundo do mar ou no meio do fogo. “Um exercício de violência perpetrado pelo invasor que acreditava que ao despojar os mortos dos seus nomes os condenava ao esquecimento”, pode ler-se na apresentação do espetáculo.

Em memória do massacre, o dia 3 de fevereiro é feriado nacional em São Tomé e Príncipe e, todos os anos, é assinalado como Dia dos Mártires da Liberdade. É, aliás, neste dia que tem lugar uma marcha de homenagem e celebração que percorre várias horas de caminho, desde o centro da cidade de São Tomé até à praia Fernão Dias. Esta marcha, na qual Zia teve a oportunidade de participar, "foi um dos pontos fundamentais para a criação do espetáculo”, revela. “Aquela população, maioritariamente jovem, faz aquele percurso de quatro a cinco horas em que, progressivamente, a passada vai ficando mais cadenciada, as vozes e os cânticos são cada vez mais audíveis e frenéticos e, na minha vivência, mais delirantes”. A marcha termina na praia Fernão Dias, onde, aquando do massacre, foi montada uma prisão a céu aberto. “Também a praia e os castigos que foram infligidos aos prisioneiros naquele lugar” terão influenciado a criação deste espetáculo. “Um desses castigos era esvaziar o mar. Fiquei obcecada com esta ideia. É que para cumprir esta tortura, nalgum momento, é preciso acreditar que é mesmo possível esvaziar o mar”, reflete a encenadora. Outras influências terão passado pelo “Tchiloli" – teatro popular são-tomense – e, claro, "os sons da ilha e as músicas cantadas pelas lavadeiras no rio, recolhidas pelo Xullaji”, enumera.

“O Riso dos Necrófagos” é, maioritariamente, movimento e expressão corporal, mas, a certa altura, a performance também faz uso da palavra. O texto – da autoria de Zia Soares – coabita com excertos da obra das são-tomenses Alda Graça do Espírito Santo (1926-2010) e Conceição de Deus Lima. Ainda assim, para a encenadora, é importante reforçar que o espetáculo nasceu das impressões e dos sons recolhidos, respetivamente, por Zia e Xullaji, em São Tomé, que foram trabalhadas ao longo de vários meses pela equipa artística por detrás desta criação. "Só mais tarde é que, como consequência natural e orgânica da sonoridade, do movimento, da expressão do corpo, surge o texto".

Esta não é a primeira vez que Zia Soares trabalha o passado colonial e a memória dos povos colonizados com objeto artístico das suas criações, mas para a criadora, este espetáculo pode ser lido além do contexto colonial que lhe serviu de mote. “O espetáculo trata do presente e do futuro, não é uma cronologia histórica. Estamos a falar de pessoas como eu e de realidades como as que vivemos na atualidade, como a da Cláudia Simões, em Lisboa, ou a do George Floyd, nos Estados Unidos da América”, nota a encenadora, salvaguardando que “cada espectador saberá como vê o espetáculo, como é que ele lhe toca e que reflexões lhe motiva”.

Na opinião da encenadora, “em Portugal, ainda se lida mal com o passado colonial. Recorde-se que a independência dos países africanos ainda não tem 50 anos. É uma história recente e há feridas profundíssimas, escavadas durante muitos anos, que estão abertas”. Zia reconhece que, nos últimos anos, tem existido “uma tentativa de reconhecimento desse passado por parte da sociedade. Dá passos em frente, passos atrás e passos ao lado, mas começa a ser mais audível do que era há 10 anos”. Há, todavia, “coisas que devem ser ponderadas de forma mais profunda”, considera Zia Soares. “Para que se verifiquem passos mais concretos e com repercussão na vida quotidiana das pessoas racializadas, tem de haver uma maior profundidade nesta reflexão. E isso implica que esta reflexão seja feita transversalmente na sociedade”.

Nesta reflexão, a arte (e este espetáculo) pode desempenhar um papel importante. “A arte está muitas vezes na vanguarda daquilo que são as reflexões mais importantes de uma sociedade, uma vez que tem a possibilidade de explorar as questões de variadíssimos prismas, o que permite o entendimento de pessoas diversas de meios diversos”, entende Zia Soares, considerando que “é fundamental que a arte tenha esse lugar e posição”.

Para Zia, a experiência de levar este espetáculo a várias salas e a vários públicos tem sido “incrível”. “De certa forma, o espetáculo reflete aquilo que foi o processo criativo. Durante um bom tempo, o verbo não aparece e isso deixa um espaço muito mais amplo para o entendimento do público”. “Temos recebido relatos de espectadores que dizem que é como se o espetáculo os fosse asfixiando até que chegam a um certo ponto em que percebem que estão metidos num determinado ambiente sem perceberem, no entanto, como foram lá parar. Disseram-nos isto em São Tomé, em Lisboa, em Milão. É um ponto comum interessante que tem sido mencionado nos vários sítios por onde temos passado”, revela a encenadora.

Distinguido como “Melhor Espetáculo 2021-2022” pelo Premio Internazionale Teresa Pomodoro do Spazio Teatro No’hma de Milão, em Itália, “O Riso dos Necrófagos” conta com a interpretação de Aoaní Salvaterra, Benvindo Fonseca, Daniel Martinho, Lucília Raimundo, Mick Trovoada, Neusa Trovoada, Xullaji e Zia Soares.

O espetáculo está marcado para as 21h30 do próximo sábado e os bilhetes estão à venda na Casa da Cultura de Ílhavo, na Fábrica das Ideias da Gafanha da Nazaré e, online, na BOL.

*Foto da capa: Afonso Ré Lau

**Fotos do espetáculo: João Duarte

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