Fado Malvado

A “malvadez do fado que é a vida” destes músicos já deu lugar a um disco

Fado Malvado

 

 

Ao ouvir Fado Malvado pela primeira vez, é provável que se surpreenda pelo facto de a música deste grupo aveirense não se enquadrar no género a que estamos habituados a chamar fado. Em entrevista à Aveiro Mag, António Justiça e Davide Amaral, elementos da banda, explicam: “Além de poder referir-se ao género musical, a palavra ‘fado’ significa ‘destino’ ou ‘sorte’. A primeira sessão de gravação daquele que viria a ser o nosso disco de estreia aconteceu em dezembro de 2019, precisamente, nas vésperas de irmos todos para casa. Com a pandemia, lá se foi o estúdio e, durante muitos meses, os nossos planos tiveram de ser adiados. O disco acabou por demorar muito tempo a gravar… foi um ‘fado malvado’ que nos aconteceu”.

 

Em Fado Malvado, António Justiça toca guitarra e faz coros; Davide Amaral divide-se entre o baixo e a guitarra de 7 cordas e também assegura os coros, tal como Filipe Ricardo Silva que, além disso, toca acordeão; Ricardo Neves dá voz ao projeto. Para a gravação do primeiro disco, o grupo contou ainda com a participação do percussionista Quiné Teles.

 

À exceção de “Tempo”, o tema com o qual o grupo se deu a conhecer na primavera de 2021, e cuja letra é da autoria de Dénis Conceição, em Fado Malvado o verbo fica a cargo de António Justiça. E se o clima de sufoco e incerteza do primeiro ano de pandemia inspirou o single de estreia, “as restantes letras refletem as nossas vivências, as nossas inquietações” e “alguma da malvadez do fado que é a vida”, refletem os músicos. Quanto à composição musical, todos participam no processo. “Um lança uma ideia, todos contribuem para ela e, quando chegamos ao final, a música raramente se parece com a ideia inicial”, brincam António e Davide.

 

António Justiça (natural de Ílhavo) e Davide Amaral (natural de Barrô, em Águeda) conheceram-se no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Aveiro, onde ambos tiveram formação em guitarra clássica, na classe do professor João Moita. A frequentar o mesmo estabelecimento, o também aguedense Filipe Ricardo Silva enveredou pelo saxofone, ainda que hoje o conheçamos principalmente como acordeonista.

 

Estes três músicos viriam a encontrar-se, mais tarde, e já como professores, no Conservatório de Música de Águeda. É lá que formam o Trio Porteño: “Tocávamos sobretudo tangos de [Astor] Piazzolla, [Carlos] Gardel… Encarávamos aquilo como um projeto académico. O desafio passava por pegar em repertório originalmente escrito para grupos alargados e tocá-lo com duas guitarrinhas e uma concertina”, explica Davide Amaral. À medida que o projeto se vai desenvolvendo, “uma das guitarras passa a ter 7 cordas”, “os [temas] originais surgem naturalmente” e, logo a seguir, a vontade de “evoluir para a música cantada”. “É aí que aparece o Ricardo”.

 

Fado Malvado

 

 

O quarto elemento dos Fado Malvado chama-se Ricardo Neves. Dos quatro, é o único que não seguiu profissionalmente a área da música – é investigador em biomedicina, na universidade de Coimbra, e trabalha com células estaminais –, ainda que tenha feito o conservatório em canto. “O Ricardo vem de uma família de músicos de Fermentelos”, informa António Justiça. Com pouco mais de 3 mil habitantes, a vila de Fermentelos, no concelho de Águeda, tem duas bandas filarmónicas centenárias – a Banda Marcial e a Banda Nova –, o que faz com que boa parte da população tenha ligações à música. Ricardo não é exceção. “Além disso, esteve na origem da Magna Tuna Cartola da universidade de Aveiro”, acrescenta Davide Amaral, dando nota de um concerto que a antiga tuna, que se despediu dos palcos em 2018, estará a organizar para o ano de 2023, como forma de celebrar o 30.º aniversário da sua fundação. “Vão juntar-se todos para matar saudades”, antecipa Davide.

 

Tal como Ricardo, também Davide contou com a influência da família para o seu despertar para a música. No seu caso, as primeiras memórias musicais têm como palco a igreja: “Os meus pais andavam no coro e lembro-me de os acompanhar aos ensaios”. Além disso, foram os pais que, querendo proporcionar-lhe uma oportunidade de formação paralela à escola, lhe propuseram o caminho da música. Filipe Ricardo, por seu turno, “começou na música popular tradicional”. Quanto a António Justiça, não deveria ter mais de 10 anos quando formou a primeira de várias bandas que viria a ter ao longo da adolescência e da juventude – algumas mantém-se em atividade nos dias de hoje. “Eram bandas de amigos. Compúnhamos originais, mas tocávamos tudo de ouvido. Quando entrei no conservatório, já com 18 ou 19 anos, fui aprender o bê-á-bá”. Ao explorar a coleção das suas memórias mais antigas, o músico recorda as vezes em que ouvia o pai a tocar, os discos que este lhe dava para ouvir e as viagens ao Algarve que fazia na sua companhia – e em que um pequeno aparelho a pilhas fazia a vez do rádio com que o carro ainda não vinha equipado. “O meu pai comprava uma remessa de pilhas e íamos a viagem toda a ouvir uma cassete dos Rolling Stones. Volta e meia, lá tínhamos de trocar as pilhas”. Por casa, o ilhavense lembra-se de ouvir “os vinis do James Brown, do Ottis Redding e do Elvis Presley… também ouvíamos Roberto Carlos e Dire Straits… e uma compilação de compositores clássicos – Mozart, Beethoven, Brahms, Wagner”.

 

Com vasta carreira no mundo da música, António, Davide e Filipe Ricardo participaram de variadíssimos projetos musicais ainda antes de formarem os Fado Malvado. Filipe Ricardo é membro-fundador do grupo Danças Ocultas. António já passou pelos Vulto, pelos Caracóis com Cio e, mais recentemente, toca com os Patinho Feio. Do seu percurso destaca-se ainda o grupo de música contemporânea Síntese, a composição de músicas para teatro de marionetas e o duo de guitarras que forma com Davide Amaral. Davide, por sua vez, tem-se dedicado à composição de bandas sonoras para livros infantis – “Jota Ginja, o Quase Ninja” e “A misteriosa coleção de bolinhas de cotão do umbigo” são alguns dos títulos que o aguedense já musicou. No entender de Davide, à semelhança de todos estes projetos e bandas, “Fado Malvado representa a nossa vontade constante de sair da nossa zona de conforto e de explorar coisas diferentes”.

 

O primeiro single dos Fado Malvado foi lançado em abril 2021, numa altura em que o país começava timidamente a desconfinar, a máscara ainda era de utilização obrigatória e decorria a primeira fase da vacinação contra a Covid-19. “Tempo” – assim se chama o tema de estreia – serviu de homenagem a todos aqueles que trabalham na área da cultura – não só artistas, mas também pessoal técnico e assistentes – que viram as suas vidas paradas devido à pandemia. O vídeo de apresentação foi filmado no Centro de Artes de Águeda e contou com a colaboração e participação de alguns funcionários daquele equipamento cultural.

 

Em dezembro de 2022, chegou a vez de apresentarem o álbum de estreia – “Pontos de Passagem”. Uma seleção de 10 músicas (5 temas instrumentais, 5 temas cantados) que tocaram ao vivo, a 26 de março deste ano, na Fnac de Aveiro. “Tínhamos a loja cheia. Depois de termos demorado tanto tempo a gravar, a sensação de finalmente apresentar este disco foi muito boa”, avança Davide. “Posso dizer que me arrepiei”, confessa, esclarecendo que “aquela ideia de que, como já andamos a ‘virar frangos’ há muitos anos, cada concerto é só mais um concerto, está errada”. António é da mesma opinião: “Eu fico sempre uma pilha de nervos”. “A cada projeto novo parece que estamos a começar do zero e, com a idade, parece que a responsabilidade [de garantir uma boa prestação em palco] é ainda maior”, considera Davide.

 

Fado Malvado

 

 

Seja com Fado Malvado ou qualquer outro projeto em que participem, quem não perde uma oportunidade para acompanhar estes músicos são os seus alunos. Recorde-se que António, Davide e Filipe são professores de música no Conservatório de Música de Águeda, que Davide e Filipe também lecionam no Conservatório de Música da Bairrada e António na Academia de Artes de Chaves. “[Os alunos] acompanham-nos com alegria. Acho que é importante para eles verem que os professores não estão parados. Isto ajuda a desfazer aquele conceito do professor inalcançável. Estes veem que professores experimentam como eles, expõem-se ao erro como eles”, refere António. “E também ajuda a desmistificar a ideia de que, lá porque estão a aprender guitarra clássica, têm de seguir o caminho da música erudita. Nada disso! Nós damos-lhes ferramentas para que eles possam explorar aquilo que quiserem no que à música diz respeito”, completa Davide. “Para mim, essa é a mensagem mais importante que podemos passar com a nossa vida artística”, reforça. Tendo por base a sua experiência como professor, António faz questão de elogiar as novas gerações de músicos: “Nunca tivemos músicos tão bons, cada vez mais novos, fruto do investimento no ensino artístico. Temos alunos de 16 anos a tocar guitarra como, há 30 anos, só grandes mestres tocavam. É impressionante!”, reconhece.

 

Para os Fado Malvado, os próximos tempos servirão para “apresentar o disco e levá-lo ao maior número de pessoas”, afirma António Justiça, admitindo que, além das “várias músicas que ficaram de fora”, já há “composições novas” capazes de assegurar um segundo registo de longa duração.

 

 

 

*Fotos: Inês de Carvalho

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