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“Mataram a cotovia”, de Harper Lee

Opinião

Filipa Matias Magalhães*

Sei do que os preconceitos se alimentam, mas penso muitas vezes como nascem e se a sua origem poderá, alguma vez, ser eliminada, pois sei que isso seria o início de uma era de paz social uma vez que os maiores problemas do mundo e da sociedade têm na sua origem preconceito e a ideia de superioridade de uma pessoa, um grupo ou um povo, relativamente a outros.

Hoje trago-vos um livro que retrata muito bem o racismo e a segregação racial, fazendo-o numa perspetiva singular, na perspetiva dos “privilegiados”. Como é que aqueles que estão no lado dos “privilegiados” encaram o racismo e todas as manifestações e se é uma inevitabilidade aceitarmos os preconceitos sociais ou se podemos viver contra eles? Este é também um livro que apela ao lado bom de todos nós e à inocência das crianças e ao modo como desconstroem os preconceitos e vivem de acordo com o lado bom.

Não é um tratado de filosofia nem, muito menos, uma monografia sobre o preconceito, o racismo, a luta de classes, a força da comunidade e o poder da integridade e da ética, mas aborda de uma forma muito bonita, embora por vezes dura e triste, todas estas questões que, infelizmente, mantêm toda a atualidade. “Mataram a cotovia” venceu o Prémio Pulitzer em 1961 e é um dos romances mais bonitos sobre o racismo visto e sentido pelos olhos daqueles que estão do lado dos “privilegiados”, mas que vivem de acordo com princípios e valores de ética e integridade que não os deixam indiferentes relativamente ao facto de os direitos humanos não serem para todos. Se somos aquilo que lemos, este livro é um excelente contributo para melhorarmos a nossa empatia, tolerância, respeito e solidariedade.

A história principal assenta nas aventuras, travessuras, conversas e brincadeiras de três crianças que vivem na cidade imaginaria de Maycomb, no Alabama, durante a Grande Depressão e que nos vão mostrando os dilemas e os problemas dos países sulistas onde a supremacia branca era encarada como lei incontestável.

Scout, a protagonista desta história, e o irmão Jem, vivem com o seu pai viúvo, Atticus Finch, um advogado honesto e muito reputado que as incentiva a questionarem e refletirem sobre tudo o que veem à sua volta e a viverem contra a ignorância e o preconceito. Atticus Finch simboliza a integridade e a força das convicções, é um intelectual com um enorme sentido de justiça, que não só pratica, como também passa para os seus filhos, que cria com sólidos fundamentos de justiça, falando com eles como se compreendessem tudo o que lhes quer transmitir – é curiosa a forma como os filhos o ouvem e seguem, sendo que, por vezes, Atticus fala como um intelectual! Nos antípodas de Atticus está Bob Ewell, um homem violento, agressivo, preconceituoso e mentiroso que acaba por perseguir Atticus por este ter aceitado defender Tom Robinson, acusado de violar uma menina branca.

Com apenas seis anos, Jean Louise, conhecida por Scout, questiona os preconceitos e as desigualdades sociais da comunidade em que vive, não compreendendo a maldade dos adultos, tão contrária a tudo o que o pai lhe ensina a ela e ao irmão.

“Democracia,

- O que achas que significa, Jean Louise?

- Direitos iguais para todos, nenhum privilégio especial para ninguém – citei de cor”

O livro tem também momentos muito divertidos e cómicos quando nos relata as brincadeiras e peripécias das aventuras de Scout e do seu irmão mais velho Jem e de Dill, o amigo que vem passar os verões a casa da tia que é vizinha de Atticus Finch, com quem investigam a estranha vida de Boo Radley, o vizinho que só deixa a sua casa durante a noite e que quase ninguém conhece ou consegue ver. Uma daquelas lendas e mistérios que muitas terras acabam por ter.

Órfãos de mãe, Scout e Jem são criados pelo pai e pela cozinheira da família Calpurnia que, à semelhança de Atticus, os tenta educar para agirem sempre de acordo com as suas convicções, para questionarem e terem espírito critico e não se deixarem contaminar pelo pensamento racista e intolerante da comunidade em que vivem. De vez em quando – mais vezes do que desejariam - a tia Alexandra vem visitar a família e empenha-se em ensinar Scout a agir como uma senhora. Esta tarega, como devem calcular, para alem de impossível, vai ser o mote para momentos muito divertidos, pela natureza rebelde e desafiadora de Scout.

O grande desafio profissional e até pessoal de Atticus surge quando, este honesto, integro e muito respeitado advogado, é destacado um dia para defender Tom Robinson, um negro acusado de ter violado uma jovem branca. Mais do que um processo judicial, este processo acaba por ser um marco na vida de Atticus e dos seus filhos na medida em que o processo encerra a grande questão da sociedade racista e preconceituosa de Maycomb e aporta todos os princípios que Atticus defende e ensinou aos filhos.

Infelizmente – ou a história não tivesse o seu palco na sociedade sulista de então, onde o direito à defesa era enviesado pelo preconceito - a determinação e argumentação de Atticus não são suficientes para absolver Tom, que acaba por ser condenado e linchado, sofrendo também Atticus e os seus filhos as consequências desta defesa.

Tudo porque, “A perseguição vem de gente que é preconceituosa” e, na sequência da condenação de Tom, uma grande parte dos habitantes da cidade acabam por se virar contra Atticus, intimidando-o e ameaçando-o a ele e aos filhos que sofrem também na escola as consequências por não aceitarem a supremacia branca que a sociedade lhes impõe.

«(…) vais ver sempre homens brancos a enganar homens negros, mas deixa que te diga uma coisa que nunca mais vais esquecer… sempre que um homem branco fizer algo a um homem negro, independentemente da sua natureza, posição, riqueza ou linhagem familiar, esse homem branco nada mais é senão lixo.»

Parte da beleza desta história reside no facto de nos mostrar que a força das convicções e uma educação de tolerância e respeito são as sementes de uma sociedade mais justa, e fá-lo não na perspetiva da luta por parte dos negros pelos seus direitos, mas sim dos brancos privilegiados que ousam defender direitos iguais para todos. “Acho que só há um tipo de pessoas. Pessoas!”

Mesmo sendo um romance, a autora não perde a oportunidade de nos mostrar, de uma forma tão dura quanto atual, como os preconceitos minam toda uma sociedade e aniquilam até um dos mais elementares princípios da sociedade – a justiça.

Com apenas seis anos, Scout, uma menina inteligente e curiosa que olha o mundo que a rodeia e questiona o que vê no mundo dos homens, recorda-nos que nada é intrinsecamente bom ou mau, mas que devemos sempre seguir o caminho que seja mais justo para todos, e não o mundo que alguns definiram e que negam os direitos aos outros.

A escolha do título – que corresponde à tradução literal do original “To kill a mockingbird” - encerra a mensagem principal deste livro e é explicada pela frase que Atticus Finch dirigida aos filhos: “Mata quantos corvos quiseres, se os conseguires apanhar, mas lembra-te: é pecado matar uma cotovia”. Tal como Tom Robinson – acusado, sem provas, de ter violado uma rapariga branca – foi condenado e linchado apenas e só com base no preconceito de uma sociedade racista, também a cotovia – que significa a pureza e inocência e a delicadeza da justiça – se for morta será a vitoria do preconceito e do racismo sobre a justiça.

Este é um bom livro para incluírem na vossa mala de viagem.Boas leituras!

* Escreve, quinzenalmente, a crónica literária “A páginas tantas”
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