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Viagens na Nossa Terra: A velocidade oculta, a lentidão revela

Roteiro Ler mais tarde

 

De carro não o teria visto. Num recanto de uma praça de Eirol reparo num velho sentado num muro baixo. Usa roupas pardacentas da cor da pedra e está tão imóvel que a sua silhueta é difícil de distinguir. Dirijo a bicicleta até ele. Apertamos as mãos e ele não larga a minha durante um minuto, segurando-a com força como se não me quisesse deixar fugir. Apesar do calor, veste uma camisola interior, uma camisa e uma camisola. Percebo logo, e ele também mo diz, que vê mal e ouve mal. Colo a minha boca ao seu ouvido para que me perceba. Mesmo assim o diálogo é como uma corrida de obstáculos.

- Que idade tem?

- Hã?

- Que idade tem?

- Diga?

- Que idade tem?

- Que idade acha que tenho?

- 70.

- Hã?

- 70.

- Ponha-lhe mais seis em cima. Tenho 96.

Diz num tom lúgubre que é o habitante mais velho de Eirol. É um daqueles homens que já não esperam nada da vida e para quem algumas palavras trocadas com um desconhecido são uma dádiva inesperada e preciosa. Uma vida que chega a esta idade é uma construção impressionante. Mas ter 96 anos é estar num lugar frágil. A última respiração vem a caminho. Este homem sabe disso e fala da morte com uma naturalidade resignada.

No Cais da Cambeia dos Cardosos vislumbro um homem a olhar para os pequenos barcos atracados na margem. Aproximo-me dele e faço-lhe uma pergunta banal que ele acolhe como uma oportunidade para falar. Este velho de 86 anos, com um boné com a palavra “Portugal” estampada por cima da pala, apanhou moliço e foi pescador a partir de vários portos, incluindo na Alemanha, onde a mulher trabalhou numa fábrica de conservas e onde ainda têm filhos e outros descendentes. “Há bisnetos que não conheço”, diz. Depois dedicou-se à pesca na ria. “Pescava tudo”: chocos, enguias ou lampreias, que a mulher vendia na praça de Pardelhas e ele na lota de Aveiro.

No recinto da Capela do Senhor da Ribeira, no Esteiro de Veiros, uma mulher transporta flores numa cesta, que irá depositar nas campas do marido e de um filho. A nós junta-se um homem, também a caminho do cemitério. Os dois falam sobre Veiros, a capela, as doenças. O homem diz: “eu sou viúvo, esta senhora também é viúva, e quando encontramos alguém simpático pomo-nos a falar a falar a falar e não paramos mais”. Rimo-nos os três.

Os encontros vão-se sucedendo: em Frossos, um vendedor ambulante que, depois de anos como motorista de autocarros, conduz agora uma carrinha de fruta e peixe; em Salreu, um antigo coveiro que vende velas à porta da igreja; em Angeja, uma velha que varre a soleira da sua pequena loja no rés-do-chão de uma das casas mais bonitas da vila, revestida a azulejos com motivos florais.

Os passeios lentos são um exercício de observação e de escuta. A velocidade cobre a realidade com um véu, uma cortina. A lentidão é como uma máquina que materializa o invisível no visível. A natureza, o homem ou Deus fabricaram um mundo mais abundante para os que deambulam sem pressa. Vemos árvores, capelas, caminhos, pessoas que não veríamos de outra maneira. É como se tivéssemos cinco olhos.

Visito vários lugares da região de bicicleta. A partir de um centro comum, a minha casa, rumo em feixes irregulares a São João de Loure, Cristelo (ambos em Albergaria), Macinhata do Vouga (Águeda), Requeixo (Aveiro) e Bezarém (Murtosa). Bezarém é onde a bicicleta me leva mais longe: 50,6 quilómetros. Mas a viagem a Macinhata do Vouga, quase tão extensa, é a mais exigente - a zona serrana da região tem aqui as primeiras elevações e numa subida íngreme tenho mesmo de levar a bicicleta pela mão. Ofereço-me uns minutos de descanso no café e mini-mercado Colmeia, onde bebo uma água à sombra de um toldo enquanto observo uma excursão a entrar no museu ferroviário. Compro ainda um tubo de Pintarolas, doping para o caminho de regresso.

Os passeios proporcionam pequenos prazeres além da viagem em si. No Parque da Boca do Carreiro, em Frossos, devoro meio quilo de cerejas sentado num banco de madeira, cuspindo os caroços para o tronco de um carvalho e observando um talhão de terreno alagadiço semeado com arroz, onde um cata-vento cravado a meio produz um som metálico para afugentar os pássaros. Em São João de Loure compro um pão ainda morno numa velha padaria onde vários moradores se abastecem para o almoço de domingo, comendo-o no Baloiço da Barca a olhar para uma pequena praia fluvial no Rio Vouga. No bar do Centro Social e Cultural da Horta almoço meio frango grelhado apesar de serem apenas 11h30 da manhã. Silvados densos que ladeiam caminhos de terra batida providenciam amoras carnudas e doces, do tamanho de berlindes grandes. Nos campos do Baixo Vouga troco um olhar fugaz com uma doninha, que foge quando me aproximo. Bebo uma Coca Cola numa esplanada em Serém de Cima, a olhar para os carros que passam velozes no IC2. E por aí fora.

Também enfrento provações. Um inseto corpulento atinge-me junto à boca, como uma pedra arremessada por um atirador com boa pontaria. Num caminho de terra batida um jipe apressado levanta uma nuvem de pó fino e seco que me cobre de uma pátina esbranquiçada e me faz parecer uma criatura albina. Um furo em Cristelo, a 25 quilómetros de casa, faz-me temer o pior, mas um homem interrompe a jardinagem para me encher o pneu com a ajuda de um compressor. Sou ultrapassado por vários ciclistas amadores que parecem um mostruário itinerante de equipamento desportivo - capacetes, óculos, sapatilhas, calções, luvas, cotoveleiras -, tudo com um ar tão sofisticado e aerodinâmico que me faz parecer um mero diletante do século XIX. Resgato, porém, o orgulho dos abismos da vergonha e da derrota: ultrapasso uma velha de uns 90 anos que pedala com tanto esforço que poderia ir a Vilar Formoso e voltar antes de ela chegar ao seu destino; e ultrapasso ainda um trator carregado de abóboras do tamanho de três cabeças, que se arrasta pesadamente pela rua de uma aldeia. É um prémio consolador que o carro não me proporcionaria - passar à frente de um trator com o meu Citroen seria o mesmo que ganhar uma corrida de cem metros a um adversário sem uma perna.

Acontecem igualmente episódios curiosos e insólitos. Um homem conduz uma mota com um cão no regaço. Num papel afixado ao lado do cartaz de uma festa popular uma empresa chamada Partir à Descoberta não publicita viagens a Punta Cana ou Agadir mas terraplanagens, transportes e obras públicas. Na Murtosa, a placa da Rua Dr. Oliveira Salazar está esquecida há 50 anos na fachada verde de uma casa. Também na Murtosa, as manifestações de fervor religioso, patriótico e clubístico sucedem-se casa sim casa sim, com painéis de azulejos, bandeiras ou estátuas a exibirem devoção a santos, países e clubes. À vinda de Bezarém, vou almoçar à tasca Telheiro, em Vale da Rama. Transponho a Linha do Norte no apeadeiro de Salreu usando a armação metálica com os pés pousados em cada lado da via ferroviária e uma travessia aérea entre eles. Na estrutura foi colado um letreiro sinistro: “utilize as escadas, evite o elevador”. A recomendação podia ser alargada a outros serviços: “faça chichi na rua, evite as casas de banho” ou “vá a pé, evite os comboios”.

Cruzo extensas culturas de milho em que as plantas têm o dobro ou o triplo da minha altura, hirtas e perfiladas com uma geometria irrepreensível como se um general estivesse a passar revista às tropas. Encontro um país em festa, um arraial contínuo. Presto atenção aos cartazes colados nas paragens de autocarro, nas lojas, nas capelas, nas juntas de freguesia, em postes e troncos anunciando a Festa das Almas, a Festa da Senhora da Saúde, a Festa de Santa Eulália, o Encontro de Música Tradicional Portuguesa, a Festa de São Pedro, a Festa de São Bartolomeu. Dedico-me também a ler os cartazes musicais: Função Públika, Orquestra Magma, Grupo Chiclete, D’Alma e Corazón, Xeques Orquestra, DJ Pipoca, 3D, Classe Média, Dark Void, Lux, Banda Prata, Menta Freska e, o meu preferido, Roncos ao Alto. Em Canelas, na Festa da Senhora da Saúde, um altifalante despeja no mundo uma canção sobre uma “grande cavalona” em tão altos decibéis que se projecta a quilómetros de distância.

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Há coisas maravilhosas. O edifício Arte Nova ao lado da igreja de Salreu. Um sobreiro com 600 anos no adro da Capela de São Geraldo, em Veiros. As belezas naturais. Até o nome das ruas, como em Angeja: Viela do Rebelo, Viela do Talho, Viela da Florinda, Viela Esteves da Eira, Viela dos Outeiros, Viela do Ferreiro, Viela Moura, Viela Ramalha, Viela Caldinho, Viela Matoso, Viela do Arco.

Mas nem tudo é perfeito. A magnífica Vila Francelina, em Frossos, consumida pelos incêndios de 2024, parece segurar-se com dificuldade. Uma quinta arruinada em Requeixo, numa ruazinha que desce até ao rio. Outra quinta em Serém de Cima, construída no lugar de um primitivo convento franciscano e da qual também só restam algumas paredes. A igreja de Requeixo, que parece sofrer de uma doença de pele. O forno romano de Eixo que, sem qualquer painel informativo, é uma peça histórica incógnita. O cheiro ácido que se liberta da estação de tratamento de lixo de Eirol. Casas abandonadas onde caberia um país inteiro, desordenamento urbano, zonas queimadas, manchas gigantescas de eucaliptos, montes de lixo e de entulho. Depositar colchões velhos na rua parece um passatempo nacional – vejo tantos à minha passagem que dariam para fornecer um hotel de cem quartos. Tenho os sentidos despertos em busca de algo que provoque uma comoção positiva, mas várias vezes penso "isto não devia estar assim", "isto não devia estar aqui". Em vários aspetos parece um país em decomposição, a esboroar como um pedaço de madeira com caruncho.

Capto todas estas realidades porque me movo lentamente. Fazendo o balanço, convoco o sublime e o miserável, o intacto e o deformado, para concluir como é feito de contrastes este mosaico imperfeito chamado Aveiro. Mas vislumbram-se sempre, por entre as máculas na paisagem, algumas formas de redenção - como quando pedalo num perfeito dia de fim de primavera, com céu azul e 25 graus, e testemunho, sentado num banco na Ribeira de Veiros, a impressionante horizontalidade desta terra, como se tivessem pousado uma lâmina na superfície do planeta.

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